Dr. Bactéria: a função do juiz e do gari

01/02/2016

Por Alexandre Morais da Rosa e Fernando de Castro Faria - 01/02/2016

Esclarecimento inicial: não há nenhuma conotação pejorativa na exposição a seguir, seja qual for o ponto de vista, seja em relação a quem for, ao juiz ou ao gari. São apenas algumas reflexões críticas sobre o papel do juiz criminal no Brasil em que boa parte do senso comum entende que o lixo humano deve ser recolhido e destruído.

Há muito se fala que o sistema penal brasileiro é seletivo, escolhe determinados sujeitos e classes como alvos de sua voracidade. Exemplos não faltam. Furtar objetos de pequeno valor, muitas vezes para o sustento do vício em drogas ilícitas – um problema de saúde pública, pode representar o encarceramento. Para muitos, não interessa se se trata de um fato insignificante ou dito de ‘bagatela’, tampouco que tudo tenha sido recuperado e que não tenha havido prejuízo algum. Por outro lado, temos a inusitada extinção da punibilidade em caso de pagamento do valor devido a título de impostos sonegados, mesmo após o recebimento da denúncia. Nessa hipótese, a seletividade é inversa, pois favorece justamente um segmento que aufere renda passível de tributação, no qual, certamente, não estão incluídos aqueles que praticam pequenos furtos. A escolha do Poder Legislativo foi cuidadosamente pensada. Desigualdade no tratamento? Óbvio. E quando se denuncia os sonegadores são os donos de padaria, açougues, pequenas empresas. As grandes são raras.

Feito esse breve comparativo (e tantos outros poderiam ser feitos), qual a relação que pode ser feita entre o juiz e o gari?

Bem, o gari, cuja função é essencial para todos nós, faz uma faxina nas ruas e recolhe todo o lixo que poderia causar problemas às pessoas. O juiz criminal, cuja função primordial, vale lembrar, é zelar pelos direitos e garantias fundamentais de todos nós e fazer observar as regras do jogo processual (vide Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos – ROSA – 2013), também tem feito, muitas vezes, uma espécie de “faxina social” ao mandar recolher a sujeira que pode causar algum problema à coletividade. Tudo isso movido por muita ingenuidade e pela crença de que é pela via penal e com sua bondade que se põe as coisas no devido lugar. (Complexo do Nicholas Marshall).

Numa segunda fase do trabalho, o gari, obediente que é às regras do sistema, leva o seu produto para o lixão, tal como também faz o juiz. Sim, nessa metáfora improvável é perfeitamente possível afirmar que nossas prisões estão mais para lixões do que para estabelecimentos que cumprem os mandamentos constitucionais e da Lei de Execuções Penais, com o devido respeito à dignidade da pessoa humana privada de sua liberdade (muitas vezes, de todos os demais direitos – e quem conhece um pouco a rotina das prisões bem sabe que muitos apenados lutam diariamente pela própria sobrevivência). Vale lembrar, ainda, que, segundo mutirões e censos do CNJ, divulgados pela mídia recentemente, são mais de setecentos mil presos no sistema penal, incluídos aí os que cumprem penas domiciliares. Só não devemos cair na trampa da privatização, dado que é a fraude maior. A prisão privada aparentemente é mais limpa e atende aos direitos dos presos, mas a lógica é perversa e noutro artigo falaremos disso.

A diferença entre as importantes funções exercidas pelo gari e pelo juiz, todavia, está na terceira fase do processo, pois o lixo coletado pelo gari é, em boa parte, reciclado; o do juiz criminal, não. A missão (res)socializadora da pena é a falácia na qual ninguém pode acreditar, ao menos se estiver com um mínimo de boa vontade ou com razoável juízo de compreensão. Não perceber tal obviedade é não enxergar a desigualdade no processo penal, não observar que há uma coleta seletiva e acreditar, nem sempre de má-fé, que se age como aquele médico da televisão, o Dr. Bactéria, que nos encheu de neuras com seus TOCs higiênicos. Há um sem-fim de Doutores Bactérias Sociais por aí pregando a assepsia. Vale tudo nessa luta contra o mal, que não é invisível como os micro-organismos, pois tem rosto e classe social. E o instrumental utilizado é vasto. Há desde simples alvejantes que prometem a limpeza total a um custo mínimo a embustes teóricos travestidos de sofisticados antibióticos, todos adquiridos sem receita.

Além do déficit hermenêutico denunciado por Lenio Streck, a colaborar com o desrespeito aos Direitos e Garantias Fundamentais, temos ainda o império das metas de produtividade, fazendo com que juízes fiquem mais preocupados com seus mapas estatísticos (astrólogos). Acabam, assim, exercendo um verdadeiro movimento peristáltico com os casos a eles submetidos, na tentativa de dar eficiente vazão a todos eles. Peristaltismo, vale mencionar, é aquele “movimento vermiforme, progressivo, da musculatura de órgãos ocos, e que impulsiona para diante o conteúdo desses órgãos, em certos casos (fezes, urina), eliminando-o para o exterior”, conforme definição de Aurélio Buarque de Holanda.

Não se pode perder tempo. Fazer diferente é demorado, exige tempo de estudo e compreensão. A meta é preparar o quimo por meio desse peristaltismo, mesmo sem que se saiba, muitas vezes, qual a matéria-prima ou o produto, afinal o que interessa é o número (se possível, acima do ponto mediano). A preparação ou a formação continuada do juiz contemporâneo pouco importa. A regra é produzir, ainda mais quando os assessores (que decidem boa parte das questões no Poder Judiciário do Brasil, em regra, procuram a manutenção do mesmo). No mapa astral jurídico, o que importa é a quantidade. Difícil é estabelecer o “selo democrático de qualidade” da decisão, em substituição ao atual “controle sumular de qualidade”.

Decisão é ato de compreensão. Não adianta perguntar ao acusado o seu grau de estudo, se teve oportunidades sociais e sobre sua renda mensal, por exemplo, se isso não será levado em conta adiante. Chega a ser cínico. Alteridade para quem? De nada servirá ler as garantias constitucionais do acusado se, em desrespeito a essas mesmas regras, o juiz atua como verdadeiro produtor da prova destinada à condenação. Faxinar é preciso.

O juiz defensor dos Direitos Humanos, todavia, não tem compromisso com a assepsia social. Seu compromisso é com os direitos e garantias fundamentais. Isso não significa que ele não dê a mínima para a vítima de um grave crime. Ele não é indiferente a ela. A premissa de que defensores dos Direitos Humanos não se importam com as vítimas e que são defensores dos “bandidos” é absurdamente falaciosa. “Queria ver se fosse com teu filho” é o argumento preferido para externar a indignação da “turma do bem” contra o humanista. Nada mais impróprio. É evidente que na condição de pai, mãe ou outro parente próximo da vítima muitos queiram se voltar diretamente contra o agressor, mas é por isso mesmo que se exige um terceiro imparcial e preparado para o julgamento, não o familiar da vítima. Juiz que quer se vingar é um charlatão democrático.

Não é dele (defensor dos Direitos Humanos) a responsabilidade pela não criação de normas que deem algum suporte a ela (vítima); não foi ele quem direcionou todo o aparato penal apenas para processar e condenar o acusado, esquecendo-se, no mais das vezes, das possibilidades de composição fora da órbita da esfera penal. A prioridade, como dito, é o dito criminoso, a assepsia. E isso embala os sonhos de boa parte da população, adubado pela mídia escorre sangue.

A quadra não é boa e ficará ainda pior se não nos voltarmos contra o senso teórico comum (Warat), que no âmbito penal crê no encarceramento como primeira política. O ensino do Direito na graduação vem perdendo qualidade e há décadas se fala no Exército de Bacharéis, muitos sem a menor noção do papel que irão desempenhar nos casos forenses, ainda que nos fronts de batalha (aqui).

Merecem atenção também os concursos para as carreiras jurídicas (juiz, promotor, delegado e defensor/advogado). É preciso selecionar e bem. Para além da mera capacidade de memorização de leis, súmulas e conceitos, é preciso saber como pensa o candidato, qual o seu comprometimento com a causa democrática e com os Direitos Humanos. Mas talvez os ingênuos sejamos nós: o sistema precisa recrutar quem não pensa.

O que se quer das carreiras jurídicas é o seu comprometimento com a garantia dos Direitos Fundamentais, o que implica na luta corajosa e diuturna contra as arbitrariedades. Do contrário, perderemos a chance de fazer com que o Direito dê sua efetiva colaboração para a construção de um país livre e democrático, sem a formação de novos lixões e sem as faxinas sociais de sempre. Aos Drs. Bactérias resta a ingênua e mortífera tarefa de aniquilar o lixo humano. Contra isso devemos dizer: não participamos.


 

. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com  Facebook aqui .


Sem título-1. Fernando de Castro Faria é Mestre em Ciências Jurídicas, Professor de Direito Eleitoral e Juiz de Direito (SC). Autor do Livro: A Perda de Mandato Eletivo: Decisão Judicial e Soberania Popular. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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