Doze contribuições reflexivas sobre o que é ser um estudante de Direito

10/03/2016

Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino - 10/03/2016

A coluna dessa semana é uma homenagem a todos que são, eternamente, estudantes de Direito. Na verdade, o que insisto em descrever nesse momento é a importância e a função social na qual exerce todo e qualquer estudante nas diferentes áreas dos saberes humanos. É partir dessa postura do conhecer(-se), do reconhecer as limitações individuais e do mundo que cada um avança, passo a passo, rumo ao horizonte no qual se possa rasgar o véu das certezas habituais, dos preconceitos, ou, como afirmava Scheler[1], de diluir o gelo inquebrável constituído pelo nosso orgulho.

A busca pelo contínuo aperfeiçoamento, pela Excelência Intelectual[2], ao se rememorar Aristóteles, não é uma tarefa fácil. Muitos desistem dessa tarefa árdua, seja por motivos pessoais, profissionais ou financeiros. O esclarecimento provocado pela Educação nem sempre é imediato. Tem o seu próprio tempo. Por esse motivo, o habito de estudar nem se torna persistente.

No entanto, o ato de se educar, a decisão de se educar com o auxílio das instituições públicas ou privadas, aos poucos, não se exaure como algo pessoal, mas vai além porque têm a capacidade de empoderar as pessoas. Essa é a contribuição da Educação para alguém que se reconhece como um eterno estudante: as utopias já não são mais abstratas, vazias, porém vivas, concretas, capazes de tornar o viver sempre mais desejável.

A Educação, seja qual for o seu nível, mas, especialmente aos Estudantes de Direito, não deve se concentrar tão somente em trazer conhecimentos puramente técnicos. Qualquer pessoa – principalmente para quem tem acesso à tecnologia – pode buscar, identificar, conhecer e compreender temas técnicos, não obstante surjam algumas dificuldades na sua interpretação. Não! Essa não a tarefa principal da Educação. Não se trata de apenas “transferir” conhecimento para os arquivos mentais de cada pessoa, o qual, possivelmente, permanecerá ali fechado, sem a capacidade de dialogar com o mundo. Já se tem, em todos os lugares, uma verdadeira deformação educacional no estilo “bancário[3]”.

Educar(-se) significa admitir a profundidade de nossa ignorância e, ao mesmo tempo, articular todos os conhecimentos obtidos a fim de aperfeiçoar o “Eu” junto com o “Tu” no mundo. É esse ir e vir o qual deve causar verdadeiro desconforto daquilo que nos embrutece todos os dias e nos incapacita para todos se tornarem mais sensíveis com todas as formas de privações e violências causadas no mundo.

O Estudante de Direito, seja da Graduação, Mestrado ou Doutorado não pode se tornar satisfeito com os “conhecimentos dados”, mas sempre buscar na sua incompletude aquilo que oportuniza humanizar a humanidade. Esse é o ponto, a verdadeira reivindicação do Estudante de Direito por uma Educação[4] capaz de sensibilizar: não basta que as universidades, as faculdades tragam conhecimentos técnicos, mas ajude, contribua, para se compreender, minimamente, como o “Eu” se posta dentro da rede de relações da vida. Essa é uma aposta sem qualquer garantia de ocorrência, porém, a sua insistência, mesmo no plano microscópico do cotidiano, implica em significativas mudanças sociais, políticas, jurídicas, científicas, tecnológicas, entre outros. A função social exercida pelo Estudante de Direito quando esse se educa de modo permanente é uma utopia concreta a qual transforma o dia-a-dia.

Por esses motivos, não vou apresentar ao Estudante de Direito “deveres” os quais precisa seguir para ter êxito na sua formação acadêmica, mas proposições para a sua reflexão na medida em que a Educação o permita des-cobrir, camada por camada, essa esfinge chamada humanidade que não está apenas no “Eu”, mas habita o Outro.

1) Comece, ainda que com um primeiro passo, pelo desafio mais longevo apresentado na entrada do Oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo e, como desdobramento dessa epifania, cuide[5] de si;

2) Cultive, de modo permanente, a humildade científica[6] a fim de evitar as cegueiras epistemológicas e as arrogâncias das certezas habituais, especialmente as profissionais;

3) Participe, na medida do planejamento de seu tempo, de atividades acadêmicas como Grupos de Estudo, Grupos de Pesquisa para que tenhas maior acesso a obras as quais não é possível conhecer, seja na Graduação, Mestrado ou Doutorado. Aqui, esses grupos têm uma tripla função: 3.1) conhecer o que é a vida acadêmica; 3.2) ampliar as leituras que não se exaurem pelos conteúdos em sala de aula; 3.3) criar parcerias para elaboração de produtos jurídicos científicos acadêmicos científicos e acadêmicos não científicos[7];

4) Participe, o mais cedo possível, de atividades de estágio – sejam os profissionais extracurriculares, no caso da graduação, sejam os de docência, especialmente nos Programas de Mestrado. Todos oportunizarão conhecimentos práticos, os quais podem ser contrastados com a teoria apreendida;

5) Não estranhe se a Educação te causar um (imenso) desconforto existencial. A sua função é exatamente mostrar os limites de nossa percepção e cognição;

6) Jamais despreze a sabedoria na qual surge da vida cotidiana. É a partir daquilo que as pessoas consideram indispensável para a promoção do bem comum, da sua Consciência Jurídica[8], que as legislações se tornam vetores de concretização da Dignidade Humana;

7) Cultive, junto ao exercício da Consciência Jurídica, a Sensibilidade Jurídica[9] para “sentir-algo-junto-com-o-Outro-no-mundo”, sair das fronteiras do ego e reconhecer as vulnerabilidades dos seres, das organizações sociais, dos estilos de convivências, das diferenças culturais, entre outros. Eis o fomento para uma Estética da Convivência[10];

8) Cultive, sempre, o hábito da leitura, especialmente as obras clássicas. Se alguém não te indicar um livro porque “a linguagem ou conteúdo é de difícil acesso”, sugiro: leia!;

9) Todo conhecimento adquirido – seja por meio de leituras, experiências, diálogos, elaboração de artigos, Monografias, Dissertação ou Tese – não pode se restringir ao benefício pessoal, porém deve ser socializado, especialmente se o Estudante de Direito, após cumprir todas as exigências dos graus acadêmicos, se torna Professor(a) e/ou Pesquisador(a)[11].

10) Nutra todas as inquietudes[12], todas as angústias para manter sempre acesa – seja no âmbito acadêmico ou profissional – a chama da pesquisa científica. Todo Estudante de Direito incapaz de duvidar, de renovar seu conhecimento, não trará contribuições significativas para um Direito em constante mutação;

11) O senso crítico sempre deve se manifesta em dois momentos: 11.1) como proposição de dúvida e reconstrução de cenários humanos os quais sejam profundamente influenciados pelas misérias e desigualdades; 11.2) como síntese de articulação entre conhecimento científico e inteligência – sempre orientados pela serenidade[13] – no intuito de aperfeiçoar e esclarecer esse vinculo humano comum expresso pelo sujeito na sua dimensão individual, social e como espécie;

12) Como última recomendação: nunca deixe de viver as perplexidades, de se maravilhar com a condição de ser um eterno Estudante de Direito. Essa é a garantia histórica de humanização do Direito.     


Notas e Referências:

[1] SCHELER, Max. A reviravolta dos valores. Tradução de Marco Antonio dos Santos Casanova. Petrópolis, (RJ): Vozes, 1994, p. 28.

[2] ARISTÓTELES. Ética a nicômacos. Tradução de Mário da Gama Cury. 3. ed. Brasília: Editora da UnB, c1985, 1999, par. 1103 a.

[3] “[...] Nela, o educador aparece como seu indiscutível agente, como seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é ‘encher’ os educandos dos conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que se engendram e em cuja visão ganhariam significação. [...] A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá ‘enchendo’, os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixem docilmente ‘encher’, tanto melhores educandos serão. [...] Na visão ‘bancária’ da educação, o ‘saber’ é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual esta sempre se encontra no outro. O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe, enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processos de busca”. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 65-67.

[4] “A educação deve contribuir para a autoformação da pessoa (ensinar a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se tornar cidadão. [...] Somos verdadeiramente cidadãos, [...], quando nos sentimos solidários e responsáveis. Solidariedade e responsabilidade não podem advir de exortações piegas nem de discursos cívicos, mas de um profundo sentimento de filiação [...], sentimento matripartiótico que deveria ser cultivado de modo concêntrico sobre o país, o continente, o planeta.” MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reformar, reformar o pensamento. 10. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 74.

[5] Um modo-de-ser não é um novo ser. É uma maneira do próprio ser de estruturar-se e dar-se a conhecer. O cuidado entra na natureza e na constituição do ser humano. O modo-de-ser cuidado revela de maneira concreta como é o ser humano.  Sem o cuidado, ele deixa de ser humano. Se não receber cuidado, desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender, acabará por prejudicar a si mesmo e por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o cuidado deve ser entendido na linha da essência humana (Que responde à pergunta: o que é o ser humano?). O cuidado há de estar presente em tudo”. BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do humano – compaixão pela terra. 19. ed. Petrópolis, (RJ): Vozes, 2013, p. 38/39.

[6] Sugiro a leitura de texto elaborado para o “Empório do Direito” em parceria com o Professor Dr. Cesar Luiz Pasold: http://emporiododireito.com.br/elogio-a-humildade-cientifica-e-a-sua-necessidade-nas-profissoes-juridicas-por-sergio-ricardo-fernandes-de-aquino-e-cesar-luiz-pasold/

[7] “[...] não é o fato de se realizar um trabalho na escola ou na academia que o torna científico, mas sim porque o seu autor cumpriu os paradigmas lógicos, axiológicos e metodológicos da Ciência Jurídica; [...] dentro da Escola ou Academia como, evidentemente, também fora dela, podem ser gerados Produtos Jurídicos Não Científicos. Isto ocorrerá sempre que os paradigmas lógicos, axiológicos, metodológicos da Ciência Jurídica não forem integralmente cumpridos”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11. ed. Florianópolis: Millenium/Conceito Editorial, 2008, p. 77.

[8] “Aspecto da Consciência Coletiva [...] que se apresenta como produto cultural de um amplo processo de experiências sociais e de influência de discursos éticos, religiosos, etc., assimilados e compartilhados. Manifesta-se através de Representações Jurídicas e de Juízos de Valor”. MELO, Osvaldo Ferreira de. Dicionário de Política Jurídica. Florianópolis: Editora da OAB/SC, 2000, p. 22. Grifos originais da obra em estudo.

[9] Por esse motivo, compreende-se essa categoria no seguinte conceito operacional: é o ato de sentir algo junto à pluralidade de seres, lugares, momentos e linguagens que constituem a vitalidade e dinâmica da Terra, cujas diferentes maneiras de cumplicidade denotam condições de pertença e participação, as quais precisam ser expressas pelo Direito [continental ou global] para assegurar condições - históricas ou normativas - sobre a importância do des-velo da Alteridade no vínculo comunicacional entre humanos e não-humanos.

[10] “Para que o direito assuma o seu mais importante papel, que é o de harmonizar conflitos e, com isso, estetizar as relações humanas, será preciso estar ele fundamentado em princípios e valores capazes de sustentar adequadamente as estratégias necessárias para esse objetivo”. MELO, Osvaldo Ferreira de. O papel da política jurídica na construção normativa da pós-modernidade. In: DIAS, Maria da Graça dos Santos; MELO, Osvaldo Ferreira de; SILVA, Moacyr Motta da. Política Jurídica e pós-modernidade. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009, p. 91.

[11] “O pesquisador é um membro-chave do crescimento social e do desenvolvimento cultural, intelectual, científico e tecnológico do meio ao qual se vincula. Sua função é exatamente contribuir, pela via do conhecimento, para superação desse status quo em que medra a escravidão. Seu compromisso social reside na necessária dispersão que deve ser dada aos possíveis frutos e proveitos sociais decorrentes de sua investigação”. BITTAR, Eduardo C. B. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática da monografia para os cursos de direito. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 174.

[12] “[…] os juristas se mostram com uma inquietante incapacidade de escutar os sentimentos das pessoas. Esses sentimentos se encontram encobertos por camadas de representações ideológicas que são escutadas, porém, de um modo mais estridente que impossibilita qualquer outra escuta. Os juristas terminam só escutando, de modo autorreferencial, as vozes e crenças de sua ideologia funcional ou institucional; as escutam e ficam fascinados por elas a ponto de gerar um processo em que terminam devorando-se a si mesmos por conta de suas ideologias”. WARAT, Luis Alberto. A rua grita Dionísio!: direitos humanos da alteridade, surrealismo e cartografia. Tradução de Vívian Alves de Assis, Júlio César Marcellino Júnior e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 50.

[13] “[...] a serenidade é o contrário da arrogância, entendida como opinião exagerada sobre os próprios méritos, que justifica a prepotência. O indivíduo sereno não tem grande opinião sobre si mesmo, não porque se desestime, mas porque é mais propenso a acreditar nas misérias que na grandeza do homem, e se vê como um homem igual aos demais”. BOBBIO, Norberto. Elogio da serenidade: e outros escritos morais. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora da UNESP, 2002, p. 39.


. Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com.


Imagem Ilustrativa do Post: North Reading Room // Foto de: Sharada Prasad CS // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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