Dos Princípios da Boa-Fé e da Confiança nos Processos Eletrônicos    

04/12/2020

Projeto Elas no Processo na Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Em março de 2020, decidiu a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, sendo o relator o Ministro Mauro Campbell Marques, que a indicação equivocada de vencimento de prazo recursal registrada em andamento processual disponibilizado na internet configura justa causa [2], sendo assim justificativa para a prorrogação da contagem do prazo nos termos do art. 183 §§ 1º e 2º, do CPC/1973 (que hoje está prevista no art. 223, §§ 1º e 2º do CPC/2015) [3].

Trata-se de decisão de extrema importância, consolidando a aplicação dos princípios da boa-fé e da confiança nos processos eletrônicos.

A proteção da confiança possui uma estreita correlação  com a presunção de legalidade dos atos emanados do Poder Público, pois, a partir desta construção legal, extrai-se um mecanismo de incentivo para que os seus destinatários compreendam aquele ato como legítimo e confiem no seu teor como perfeitamente válido, mesmo sem adentrar em uma análise meritória mais aprofundada. Valter Shuenquener de Araújo destaca que a confiança depositada pelos particulares nos agentes públicos gera “uma maior probabilidade de seu reconhecimento como uma autoridade legítima, e, por conta disso, aumentam as chances de que seus atos sejam cumpridos num ambiente de cooperação” [4].

Rafael Maffini aponta que o princípio da proteção da confiança legítima seria um desdobramento do princípio da segurança jurídica e também do Estado de Direito, tendo-se por finalidade a preservação da “estabilidade, previsibilidade e calculabilidade dos atos, procedimentos ou simples comportamentos estatais”, trazendo consigo “deveres comportamentais mediatos que impõem a preservação de atos estatais e de seus efeitos”. [5]

O CPC de 2015 consagrou expressamente a boa-fé no seu art. 5º [6]. Há quem retrate a positivação do princípio da boa-fé como um dos reflexos do movimento neoprocessual, a partir do qual o formalismo liberal é atenuado tendo-se como pressupostos valores éticos, elevando-se ao seu lado, os princípios da cooperação e da vedação da prática de atos contraditórios [7]. Neste ensejo, Fredie Didier Jr. ressalta a importância de se eliminarem assimetrias nas posições dos sujeitos processuais para que se chegue a uma condução cooperativa do processo [8].  Daniel Mitidiero alerta para o fato de que a cooperação deve alcançar todos os momentos processuais, devendo estar presente na condução do processo, no diálogo processual, mas, principalmente, no momento da decisão [9]. Isto autorizaria, igualmente, uma participação das partes de maneira mais ativa na gestão adequada do processo pelo magistrado. E é exatamente este ponto que se conecta com a decisão do Superior Tribunal de Justiça em análise.

São inúmeros os trabalhos doutrinários acerca da boa-fé objetiva entre os sujeitos processuais. Todavia, o decisum aborda o aspecto da cooperação para além da relação posta em juízo. Não se espera neste caso uma simples boa-fé objetiva a partir de uma ação da parte processual. A confiança esperada relaciona-se com a prestação jurisdicional pelos meios eletrônicos, que constantemente pode ser de alguma forma comprometida por falhas técnicas ou dificuldades encontradas a partir do manuseio dos recursos tecnológicos. Fecha-se, assim, uma relação de confiança triangular, ficando evidente que o juiz também deve agir promovendo confiança e cooperação juntamente com as partes.

De acordo com o art. 139, e incisos, do CPC de 2015, o juiz exerce um papel muito importante como gestor do processo [10]. O processo é um instrumento para que o magistrado possa formar a sua convicção com o maior número de informações possíveis, assegurando-se que as partes possam influenciar positivamente na construção de uma melhor solução para a controvérsia instaurada.

É importante notar que a decisão do STJ contempla a possibilidade de se considerar uma informação equivocada lançada pelo Tribunal de origem nos autos eletrônicos como parâmetro para aferição da tempestividade recursal, pois ao induzir a parte em erro, fez com que seu comportamento pautado na boa-fé e na confiança fosse orientado por aquele ato processual praticado por um membro do Poder Judiciário. O jurisdicionado agiu presumindo como verdadeira a informação lançada no processo eletrônico, em total observância do princípio da presunção da legalidade dos atos praticados pelo Poder Público.

A presunção da legalidade dos atos eletrônicos praticados pelo Poder Judiciário pode ser extraída dos artigos 196 do CPC [11], combinado com o regramento descrito no art. 4º da Lei nº 11.419/2006 [12], chancelado pelo Conselho Nacional de Justiça na recentíssima Resolução nº 345, de 09 de outubro de 2020, que dispõe sobre o Juízo 100% Digital, destacando-se, por oportuno, a redação do seu art. 1º, e parágrafo único, segundo os quais os Tribunais poderão autorizar a prática de todos os atos processuais no meio eletrônico, por intermédio da rede mundial de computadores.

Vale destacar que o próprio STJ possui outros importantes precedentes em igual sentido, a exemplo do julgamento do Recurso Especial nº 1324432/SC, no qual o Relator, Ministro Herman Benjamin, asseverou que a divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação sobre a tramitação do feito, e por isso mesmo, a confiança da parte nos dados fornecidos pelo próprio Poder Judiciário não poderia trazer-lhe prejuízo. Por esta razão, entendeu aplicável o afastamento do rigorismo na contagem dos prazos processuais pelo fato de se tratar de um erro induzido pela informação disponibilizada no processo eletrônico [13].

Esta construção dá ensejo a uma série de relativizações importantes na condução dos processos eletrônicos por parte do magistrado. Como gestor, ele deve atentar para o que está reproduzido no “mundo dos autos”, e não exatamente no que seria hipoteticamente correto. O parâmetro comportamental não deve ser algo que não se possa extrair naturalmente da dinâmica processual.

Assim, o magistrado deve ter a cautela de decidir pautado em uma avaliação criteriosa sobre as possíveis condutas das partes diante de situações de falha no sistema ou de atos eletrônicos que as induzam em erro. Observado um comportamento adequado diante do que se efetivamente concretizou na marcha processual, o julgador deve fazer amplo uso do art. 139 do CPC, combinado com o art. 223 do CPC, e principalmente o art. 194 do CPC [14], que estabelece expressamente que os sistemas de automação processual respeitarão as garantias da acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações no exercício da jurisdição. E todo este exercício hermenêutico se coaduna perfeitamente com os artigos 20 e 21 da LINDB em sua nova redação [15].

Não raro, são reportadas dúvidas razoáveis pelas partes sobre algumas incongruências ou lacunas decorrentes da informatização dos processos, que devem ser imediatamente supridas pelo magistrado, por meio de decisões que minimizem e neutralizem eventuais prejuízos.

Leonardo Greco faz uma interessante crítica à virtualização do processo, na medida em que algumas exigências decorrentes do uso da tecnologia poderiam acarretar o “nefasto efeito da elitização da advocacia” [16].

Resta assim evidente que, ao menos neste estágio inicial da informatização dos processos, existe uma situação de vulnerabilidade natural decorrente da inserção gradual da tecnologia, que somente com a prática e o constante aperfeiçoamento dos sistemas irá desaparecer. Portanto, enquanto esta condição de instabilidade perdurar, em constante processo de aprimoramento e adaptação dos meios digitais até que se alcance um estágio avançado que permita sua razoável consolidação, a atenção do magistrado deverá ser redobrada, assim como também os seus níveis de tolerância diante de aparentes erros ou descumprimentos de deveres e obrigações processuais pelas partes, para que as garantias processuais se mantenham devidamente resguardadas, principalmente no que tange à garantia do acesso à justiça e do devido processo legal.

 

Notas e Referências

[1] Myrna Alves de Britto, advogada, pós-graduanda em Processo Civil - UCAM, pesquisadora na área de Negócios Jurídicos Processuais e Processo Coletivo e Cristiane Rodrigues Iwakura, Doutora e Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procuradora Federal lotada na Comissão de Valores Mobiliários atualmente em exercício como Coordenadora da Escola da Advocacia-Geral da União na 2ª Região. Professora convidada em Programas de Pós-Graduação do CEPED/UERJ e FGV/Direito Rio. Instrutora de Direito Processual Civil da EAGU. Pesquisadora na área de Processo e Tecnologia. Membro do Projeto Linguagem Jurídica Inovadora / Visual Law da PGF. Gerente de Projetos do Escritório de Inovação da Coordenação Geral de Projetos e Assuntos Estratégicos da Procuradoria Geral Federal. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual - ABDPRO, do Instituto de Direito Sancionador – IDASAN, e do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro - IDARJ.

[2] STJ - Processo EAREsp 688.615-MS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Corte Especial, por unanimidade, julgado em 04/03/2020, DJe 09/03/2020.

[3] CPC. Art. 223. Decorrido o prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, ficando assegurado, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa. § 1º Considera-se justa causa o evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário. § 2º Verificada a justa causa, o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe assinar.

[4] ARAÚJO, Valter Shuenquener de. Princípio da Proteção da Confiança. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/principio-da-protecao-da-confianca/4364. Acesso em: 25/11/2020.

[5] MAFFINI, Rafael. Princípio da proteção da confiança legítima. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Direito Administrativo e Constitucional. Vidal Serrano Nunes Jr., Maurício Zockun, Carolina Zancaner Zockun, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/120/edicao-1/principio-da-protecao-da-confianca-legitima. Acesso em: 22/11/2020.

[6] CPC. Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

[7] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009, p. 71-73.

[8] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015, p.125.

[9] MITIDIERO, Daniel. Colaboração no processo civil. São Paulo: RT, 2009, p.102.

[10] CPC. Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: I - assegurar às partes igualdade de tratamento; II - velar pela duração razoável do processo; III - prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade da justiça e indeferir postulações meramente protelatórias; IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária; V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; VI - dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, adequando-os às necessidades do conflito de modo a conferir maior efetividade à tutela do direito; VII - exercer o poder de polícia, requisitando, quando necessário, força policial, além da segurança interna dos fóruns e tribunais; VIII - determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso; IX - determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais; X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 , e o art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 , para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva. Parágrafo único. A dilação de prazos prevista no inciso VI somente pode ser determinada antes de encerrado o prazo regular.

[11] CPC. Art. 196. Compete ao Conselho Nacional de Justiça e, supletivamente, aos tribunais, regulamentar a prática e a comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico e velar pela compatibilidade dos sistemas, disciplinando a incorporação progressiva de novos avanços tecnológicos e editando, para esse fim, os atos que forem necessários, respeitadas as normas fundamentais deste Código.

[12] Lei 11.419/2006. Art. 4º. Os tribunais poderão criar Diário da Justiça eletrônico, disponibilizado em sítio da rede mundial de computadores, para publicação de atos judiciais e administrativos próprios e dos órgãos a eles subordinados, bem como comunicações em geral. § 1º O sítio e o conteúdo das publicações de que trata este artigo deverão ser assinados digitalmente com base em certificado emitido por Autoridade Certificadora credenciada na forma da lei específica. § 2º A publicação eletrônica na forma deste artigo substitui qualquer outro meio e publicação oficial, para quaisquer efeitos legais, à exceção dos casos que, por lei, exigem intimação ou vista pessoal. § 3º Considera-se como data da publicação o primeiro dia útil seguinte ao da disponibilização da informação no Diário da Justiça eletrônico. § 4º Os prazos processuais terão início no primeiro dia útil que seguir ao considerado como data da publicação. § 5º A criação do Diário da Justiça eletrônico deverá ser acompanhada de ampla divulgação, e o ato administrativo correspondente será publicado durante 30 (trinta) dias no diário oficial em uso.

[13] A divulgação do andamento processual pelos Tribunais por meio da internet passou a representar a principal fonte de informação dos advogados em relação aos trâmites do feito. A jurisprudência deve acompanhar a realidade em que se insere, sendo impensável punir a parte que confiou nos dados assim fornecidos pelo próprio Judiciário. Ainda que não se afirme que o prazo correto é aquele erroneamente disponibilizado, desarrazoado frustrar a boa-fé que deve orientar a relação entre os litigantes e o Judiciário. Por essa razão o art. 183, §§ 1º e 2º, do CPC determina o afastamento do rigorismo na contagem dos prazos processuais quando o descumprimento decorrer de fato alheio à vontade da parte. (REsp 1324432/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, CORTE ESPECIAL, julgado em 17/12/2012, DJe 10/05/2013).

[14] CPC. Art. 194. Os sistemas de automação processual respeitarão a publicidade dos atos, o acesso e a participação das partes e de seus procuradores, inclusive nas audiências e sessões de julgamento, observadas as garantias da disponibilidade, independência da plataforma computacional, acessibilidade e interoperabilidade dos sistemas, serviços, dados e informações que o Poder Judiciário administre no exercício de suas funções.

[15] LINDB. Art. 20.  Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.

Art. 21.  A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.

[16] GRECO, Leonardo. Instituições de Processo Civil, volume I. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 299.

 

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