DOS DELITOS E DAS PENAS: AS RELAÇÕES DA OBRA DE BECCARIA COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

01/02/2020

“Dos Delitos e das Penas[i]”, um clássico mundial do Direito, escrita por Cesare Beccaria[ii] em 1764, que nos encanta pelo pensamento visionário e holístico, pois apesar dos seus mais de duzentos e cinquenta anos, espelha o ordenamento jurídico de inúmeros países ao redor do mundo, sejam eles do sistema do Commom-Law ou do Romano-Germânico, democracias ou ditaduras, onde seus textos permanecem atuais.

Sua obra acabou por influenciar mais tarde, a própria constituição dos Estados Unidos (1787), tendo muitos de seus princípios sido consagrados por ocasião da Revolução Francesa (1789) através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, do mesmo ano e o próprio Código Penal Francês.

Dentre as diversas nações que se apropriaram do pensamento de Beccaria para elaborar suas leis, sobretudo aquelas relacionadas ao Direito Penal, temos o Brasil, o qual tem em seu ordenamento jurídico muitas leis baseadas na obra em tela, quais sejam: o Código de Processo Penal de 1941, a Constituição Federal de 1988, a Lei da Arbitragem de 1996, a Lei do Processo Administrativo Federal de 1999, , bem como vários princípios jurídicos e leis extravagantes[iii], como por exemplo, a Lei de Crimes Hediondos de 1990.

Consoante a nossa análise dos “Delitos e das Penas”, conforme edição de Ridendo Castigat Moraes[iv], pudemos identificar as seguintes citações de Beccaria, as quais são possíveis de encontrarmos correspondência no ordenamento jurídico brasileiro, conforme demonstraremos a seguir:

Citação: “Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja estatuída pela lei; [...].” (p. 29).

Correspondência: Art. 5o, XXXIX, CFRB/88. Princípio da Legalidade, o qual preconiza que “Não há crime, nem pena, sem lei anterior que os defina”. Do latim, nullum crimen, nulla poena sine lege.

Citação: “... do momento que o juiz é mais severo que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já está determinado”.

Correspondência: Art. 5º, XXXVI, CFRB/88. “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo‑se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...” (Princípio da Igualdade).

Citação: “... o soberano que representa a própria sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se alguém violou essas leis”.

Correspondência: Art. 5º, XXXV, CFRB/88. A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Lei Nº 9.307, de 23-9-1996 (Lei da Arbitragem).

Citação: “... no caso de um delito, há duas partes: o soberano, que afirma que o contrato social foi violado, e o acusado, que nega essa violação. É preciso, pois, que haja entre ambos um terceiro que decida a contestação”.

Correspondência: Art. 5º, LIII, CFRB/88. “Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”. (Art. 8º, Nº 1, do Pacto de São José da Costa Rica). Art. 5º, LV, CFRB/88. “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (Lei Nº 9.784, de 29-1-1999, Lei do Processo Administrativo Federal).

Citação: “Os juízes dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela razão mesma de que não são legisladores”.

Correspondência: Princípio da Determinação Taxativa: Sustenta que a norma penal incriminadora deve ser clara, certa e precisa, não deixando margem a ambiguidades, obscuridades ou dúvidas.

Citação: “Não se julgue que a autoridade das leis esteja fundada na obrigação de executar antigas convenções; essas velhas convenções são nulas, pois não puderam ligar vontade que não existiam” (p. 31).

Correspondência: Art. 2º, CPP/41. “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. (Lei Penal no Tempo).

Citação: “Outorga-se, em geral, aos magistrados encarregados de fazer as leis, um direito contrário ao fim da sociedade, que é a segurança pessoal; refiro-me ao direito de prender discricionariamente os cidadãos, de tirar a liberdade ao inimigo sob pretextos frívolos, e, por conseguinte de deixar livres os que eles protegem, mau grado todos os indícios do delito”. (p. 32).

Correspondência: Art. 5º, XXXIX, CRFB/88. “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”. (Anterioridade da Lei).

Citação: “... a lei deve estabelecer, de maneira fixa, por que indícios de delito, um acusado pode ser preso e submetido a interrogatório”. (p. 39).

Correspondência: Art. 2º, CPP/41. “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa de considerar crime, cessando em virtude dela a execução e os efeitos penais da sentença condenatória”. (Lei Penal no Tempo).

Citação: “Uma única prova perfeita é suficiente para autorizar a condenação; se se quiser, porém, condenar sobre provas imperfeitas, como cada uma dessas provas não estabelece a impossibilidade da inocência do acusado, é preciso que sejam em número muito grande para valerem uma prova perfeita, isto é, para provarem todas as juntas que é impossível que o acusado não seja culpado.” (p. 44).

Correspondência: Princípio da Culpabilidade: É o que garante a premissa no meio jurídico, ou seja, nenhum resultado pode ser atribuído a quem não o tenha produzido por dolo ou culpa. Atribui-se este princípio à vontade do agente em querer o resultado dito como delituoso.

Citação: “É uma barbaria consagrada pelo uso na maioria dos governos aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, quer para arrancar dele uma confissão de crime quer para esclarecer as contradições em que caiu, quer para descobrir os cúmplices ou crimes de que é acusado, mas do qual seria culpado, quer enfim porque sofismas incompreensíveis pretendam que a tortura purgava a infâmia1”. (p. 62).

Correspondência: Cap. I, Art. 5º, III, CRFB/88. “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. (Dec. N° 40, de 15-2-1991, estabelece Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes).

Citação: “Um crime já cometido, para o qual já não há remédio, só pode ser punido pela sociedade política para impedir que outros homens cometam outros semelhantes pela esperança da impunidade”. (p. 63).

Correspondência: Art. 42, Lei No 7.209, de 11 de julho de 1984. Essas penas privativas de direitos, em sua tríplice concepção, aplicam‑se aos delitos dolosos cuja pena, concretamente aplicada, seja inferior a 1 (um) ano e aos delitos culposos de modo geral, resguardando‑se, em ambas as hipóteses, o prudente arbítrio do juiz. A culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e circunstâncias do crime, é que darão a medida de conveniência da substituição.

Citação: “Bem sei que a confissão arrancada pela violência da tortura não tem valor algum”. (p. 66).

Correspondência: A tortura está incursa no Artigo 2º, I e II, da Lei de Crimes Hediondos da qual se acresceu ser a tortura vedada a concessão de indulto. (Tortura é delito grave, mas não é crime hediondo). É delito equiparado a crime hediondo. (Lei 9.455/97 também prevê no artigo 1º § 6º).

Citação: “Se bem que as leis não possam punir a intensão, não é menos verdadeira que uma ação que seja o começo de um delito e que prova a vontade de cometê-lo, merece um castigo, mas menos grande do que seria aplicado se o crime tivesse sido cometido”. (p. 81).

Correspondência: Art. 19, CP/40: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só corresponde o agente que houver causado ao menos culposamente”.

Citação: “Se as leis punissem mais severamente os executantes do crime do que os simples cúmplices, seria mais difícil aos que meditam um atentado encontrar entre eles um homem que quisesse executa-lo, porque o risco seria maior, em virtude da diferença das penas”. (p. 82).

Correspondência: Art. 5º, XLV, CRFB/88. “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado...”, ou seja, a pena é personalíssima e intrasferível, devendo ser cumprida tão somente pelo agente do crime. (Princípio da Pessoalidade).

Citação: “Quanto mais atrozes forem os castigos, tanto mais audacioso será o culpado para evita-los. Acumulará os crimes, para subtrair-se à pena merecida pelo primeiro”. (p. 86).

Correspondência: Princípio da Subsidiariedade: Está diretamente ligado à norma em si, em que a norma mais ampla, ou mais grave, prevalece a menos ampla. Princípio da Consumação: embora parecido com o anterior, diferencia-se em decorrência de que o conflito está entre ambos os fatos e não entre as normas, visto que durante o iter criminis de um delito pode haver outros delitos, os quais se caracterizam como meios de preparação, mas no resultado final o mais grave absorve os demais. (Art. 70, CP/40).

Citação: “O legislador deve, por conseguinte, por limites ao rigor das penas, quando o suplício não se torna mais do que um espetáculo e parece ordenado mais para ocupar a força do que para punir o crime”. (p. 94).

Correspondência: Princípio da Intervenção Mínima: é um princípio limitador ao poder discricionário do Estado, visto que delimita o direito penal como último recurso a ser utilizado para a resolução de conflitos sociais.

Citação: “Aquele que perturba a tranquilidade pública, que não obedece às leis que viola as condições sob as quais os homens se sustentam e se defendem mutuamente, esse deve ser excluído da sociedade, isto é, banido”. (p. 103).

Correspondência: Teoria Subjetiva do Direito Penal: confere ao Estado a exclusividade de colocar em prática as punições elencadas nas condutas previamente ditas como criminosas, ou seja, o Estado é o único titular do jus puniendi (direito de punir). (Art. 1º, CRFB/88).

Citação: “Se a prisão é apenas um meio de deter um cidadão até que ele seja julgado culpado, como esse meio é aflitivo e cruel, deve-se tanto quanto possível, suavizar-lhe o rigor e a duração”. (p. 109).

Correspondência: Art. 5º, LXVI, CRFB/88. “Ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. (Art. 310, III, do CPP/41).

Citação: “As injúrias pessoais, contrárias à honra, isto é, a essa justa porção de estima que todo homem tem o direito de esperar dos seus concidadãos, devem ser punidas pela infâmia”. (p. 140).

Correspondência: Calúnia, Art. 138, CP/40. Caluniar alguém, imputando‑lhe falsamente fato definido como crime. Difamação, Art. 139, CP/40. Difamar alguém, imputando‑lhe fato ofensivo à sua reputação. (Art. 519 a 523 do CPP/41).

Citação: “O contrabando é um verdadeiro delito, que ofende o soberano e a nação...”. “Porque, pois, o contrabando, que é um roubo feito ao príncipe, e, por conseguinte à nação...”. (p. 149).

Correspondência: Art. 334, CPP/41. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. Art. 318, CP/40. Facilitação de contrabando ou descaminho.

Citação: “A terceira espécie de delitos que distinguimos compreende os que perturbam particularmente o repouso e a tranquilidade pública: as querelas e o tumulto de pessoas que se batem na via pública, destinada ao comércio e à passagem dos cidadãos, e os discursos fanáticos...”. (p. 157).

Correspondência: Perturbação do trabalho ou sossego alheio: Art. 42, LCP/41. Perturbar alguém o trabalho ou sossego alheios: I – com gritaria ou algazarra; II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa em desacordo com as prescrições legais; III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos; IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem guarda. (Decreto-Lei 3688/41, Lei das Contravenções Penais, LCP).

Conforme pudemos constatar, o ordenamento jurídico brasileiro foi construído em bases sólidas, tendo acompanhado a evolução da sociedade através do tempo. Todavia, ainda necessita de aperfeiçoamento, pois o cidadão tem a percepção de que a impunidade é a regra no Brasil, seja pela falta de celeridade a qual já beneficiou muitos réus pela prescrição das penas, seja pelo poder econômico que tem condições de pagar notáveis advogadas para recorrerem ad aeternum tanto quanto a norma os permita recorrer às instâncias cabíveis.

 

Notas e Referências

[i] Do manuscrito original em italiano: Dei Delitti e Delle Pene, escrito em 1764.

[ii] Nascido Cesare Bonesana, detetor do título nobiliário de Marquês de Beccaria (1738 a 1794). Nascido na Itália, foi um dos representantes do Iluminismo Penal e da Escola Clássica do Direito Penal.

[iii] Ou Leis Especiais. São aquelas leis penais que são válidas, porém que não inseridas no Código Penal, mas sim foram editadas separadamente, conforme a evolução da sociedade.

[iv] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Ed. Ridendo Castigat Mores. Versão para eBook, 2013.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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