Dolo eventual nos crimes de trânsito – Por Ricardo Antonio Andreucci

03/08/2017

Questão jurídica tormentosa que, vez por outra, volta à tona quando ocorrem acidentes graves no Brasil, é a da possibilidade de utilização do dolo eventual na caracterização de crimes de trânsito com vítima fatal.

Por certo que os crimes de homicídio e lesão corporal tipificados no Código de Trânsito Brasileiro são culposos, conforme definição expressa dos artigos 302 e 303.

A problemática que se apresenta, entretanto, é justamente a de caracterizar o homicídio na direção de veículo automotor como doloso, utilizando o dolo eventual como assunção do risco, principalmente nas hipóteses de embriaguez do agente e de velocidade excessiva.

Com relação ao dolo, elemento subjetivo do tipo que sempre gerou instigantes estudos acerca de seu conteúdo, com diversas teorias procurando explicitar seus precisos contornos, o Código Penal brasileiro, no artigo 18, I, singelamente o classificou como direto, quando o agente quis o resultado, ou eventual, quando o agente assumiu o risco de produzi-lo.

A doutrina penal, em regra, classifica o dolo em direto ou determinado e indireto ou indeterminado, ocorrendo este último quando a vontade do sujeito não se dirige a certo e determinado resultado. O dolo indireto possui duas formas: dolo alternativo e dolo eventual. No dolo alternativo, a vontade do sujeito se dirige a um ou outro resultado, indiferentemente. O dolo alternativo se divide em dolo alternativo objetivo, em que a alternatividade diz respeito ao resultado, e dolo alternativo subjetivo, em que a alternatividade diz respeito à pessoa contra a qual o agente dirige sua conduta.

Já o dolo eventual ocorre quando o sujeito assume o risco de produzir o resultado, ou seja, aceita o risco de produzi-lo. O agente não quer o resultado, pois, se assim fosse, ocorreria o dolo direto. O dolo eventual não se dirige ao resultado, mas sim à conduta, percebendo o agente que é possível causar o resultado. No dolo eventual, o agente prevê o resultado, mas nada faz para evitá-lo, agindo com total indiferença em relação a ele e assumindo o risco de sua ocorrência.

Nessa toada, seria possível inferir que o agente que se coloca na direção de veículo automotor após ingerir bebida alcoólica, assume o risco de eventual acidente com vítima fatal que venha a ocasionar? Se a resposta for positiva, o agente responderia pelo crime de homicídio doloso (dolo eventual), seguindo o processo o rito do Tribunal do Júri.

Não apenas a constatação técnica do grau de alcoolemia como também a velocidade excessiva, incompatível com o local, tem levado o Superior Tribunal de Justiça, em diversos precedentes jurisprudenciais, a admitir o dolo eventual nos homicídios na direção de veículo automotor, sendo o agente denunciado, pronunciado e submetido a julgamento perante o Tribunal do Júri.

No processo, evidentemente, sob o crivo da ampla defesa e do contraditório, é que será travada a discussão acerca dos contornos do elemento subjetivo do tipo, não podendo ser descartada a hipóteses de culpa consciente (ou culpa com previsão), na qual o resultado é previsto pelo agente, que espera inconsideradamente que não ocorra ou que possa evitá-lo. Na culpa consciente, o agente não quer o resultado, não assume o risco nem ele lhe é tolerável ou indiferente. O evento lhe é previsto, mas confia em sua não produção.

Com relação à prisão em flagrante, caberá à autoridade policial, tão logo lhe seja apresentada a ocorrência de trânsito com vítima fatal, estando o agente sob o efeito de álcool ou drogas, ou tendo empreendido ao veículo velocidade excessiva (como no caso de “racha”), decidir pela capitulação do homicídio como culposo ou doloso (dolo eventual). No caso de culpa, será possível o arbitramento de fiança (art. 322, “caput”, do CPP). No caso de dolo eventual, a fiança deverá ser requerida ao juiz, mantendo-se o agente preso em flagrante até que seja apresentado à audiência de custódia.

Evidentemente que a tipificação feita pela autoridade policial no momento da apresentação da ocorrência, muitas vezes calcada em elementos superficiais colhidos no calor dos acontecimentos, não é definitiva, podendo o Ministério Público, como “dominus litis”, decidir pela capitulação que entender correta na oportunidade em que oferecer a denúncia. Optando o Ministério Público pela denúncia por homicídio doloso (dolo eventual), ainda assim poderá o juiz desclassificar a imputação, ao cabo do juízo de prelibação (“judicium accusationis”), nos termos do que dispõe o artigo 419 do Código de Processo Penal.

Pronunciado o acusado, certamente a discussão sobre culpa consciente (ou inconsciente) e dolo eventual tornará ao plenário do júri, cabendo a decisão soberana ao Conselho de Sentença.


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