Por Luiz Ferri de Barros - 07/07/2015
Santos e Canalhas
"Um homem a que falta a metade satânica não é nada. Um santo sem nenhuma nostalgia do pecado é um monstro de circo de cavalinhos". Da mesma forma que aponta impiedosamente em sua dramaturgia os traços demoníacos, canalhas, de todos nós, Nelson Rodrigues acredita que mesmo o canalha mais vil possui dimensões divinas adormecidas dentro de si.
Para ele, no mundo contemporâneo a maioria das pessoas tem mais pendores para a canalhice do que para a santidade, mas essas dimensões sempre coexistem em cada um. Os instintos alimentam os demônios internos. A redenção e purificação dos seres humanos exige a percepção dessa face sombria e o auto-controle, para o que são mais importantes os sentimentos do que a razão.
Essa visão da natureza humana pode ser associada ao romantismo e é possível rastreá-la na Filosofia. "Pascal, no século 17, via no homem um ser duplo que continha em si grandeza e miséria", argumenta Adriana Facina em sua tese sobre Nelson Rodrigues, prosseguindo: "Schopenhauer diz que a essência animalesca do homem é dissimulada devido à presença da razão". Para Nietzsche, o espírito humano, capaz de razão e de dissimulação, é apenas uma "continuação, uma elevação, do espírito animal".
Para denunciar os instintos, em especial os instintos sexuais, Nelson Rodrigues construiu uma dramaturgia povoada de canalhas, em que predominam personagens brutais, tarados, mulheres adúlteras, grã-finos depravados e outros tipos que tais, focando temas como incesto, suicídio, assassinatos etc, por muitos considerados apenas escabrosos e macabros, que lhe renderam a fama de autor maldito e obsceno. Não obstante o drama, humor e ironia eram marcantes em Nelson Rodrigues. Mas ele não aceitou a designação de "comédias de costumes" atribuída a suas peças, que preferia denominar "tragédias cariocas". Nelas, os instintos, em lugar dos deuses das tragédias gregas, determinam o destino trágico do homem, mais do que os conflitos psicológicos.
Para o dramaturgo pernambucano que se consagrou como o mais carioca dos autores, "A ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. (...) Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los". Esses os fundamentos do "teatro desagradável" de Nelson Rodrigues, que acreditava no caráter purificador da catarse que sua arte promovia na platéia, mesmo quando expressa por vaias.
Para quem estiver interessado em biografias de Nelson Rodrigues, Adriana Facina, professora da Universidade Federal Fluminense, indica a leitura de O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro e Nelson Rodrigues, meu irmão, de Stella Rodrigues, esclarecendo que sua tese não é uma biografia, nem objetiva analisar a obra do dramaturgo a partir de fatos de sua vida privada.
A própria obra de Nelson Rodrigues e sua figura pública constituem o foco da tese. Os textos examinados por Adriana são heterogêneos entre si, englobando crônicas, contos, dramaturgia, escritos sobre futebol e, inclusive, uma coluna de consultório sentimental que ele manteve na imprensa durante certo tempo.
Ao examinar a visão de mundo do teatrólogo, a autora busca situar sua produção artística e intelectual no cenário artístico, político e social brasileiro ao longo das décadas de sua atuação (1940/1970), indicando e discutindo as metamorfoses na imagem pública do dramaturgo.
Em linhas gerais, essas metamorfoses partiram da imagem "do gênio revolucionário, que no início dos anos 1940 inovou o teatro brasileiro, passando pelo autor maldito, o tarado que ameaçava as famílias brasileiras ao colocar incestos em cena, chegando ao reacionário que nas décadas de 1960 e 1970 polemizava com as esquerdas nas páginas de jornais de grande circulação."
Polêmicas à parte, Nelson Rodrigues consagrou-se em vida e sua consagração em morte só faz aumentar, conforme demonstram dados apresentados por Adriana Facina. Segundo ela, em dezembro de 2000, a revista Cult enumerava 18 principais filmes produzidos no país a partir de sua obra, por cineastas do escalão de Nelson Pereira dos Santos, Arnaldo Jabor, Bruno Barreto, entre outros. Numa reportagem de O Globo, de 2002, baseada em dados da Sociedade Brasileira dos Autores Teatrais, indicam-se os seguintes números de remontagens de textos de Nelson Rodrigues, comparados a outros clássicos de nosso teatro: de 1996 a 2001 houve 97 montagens de Nelson, enquanto Plínio Marcos foi encenado 19 vezes, Vianinha 15 e Jorge Andrade, 9. É a "maldição consagrada".
Santos e Canalhas é uma tese de doutoramento e, como tal, possui as virtudes e os defeitos dos trabalhos acadêmicos. Se as discussões teóricas são interessantes e esclarecedoras para intelectuais que apreciam e exigem erudição, a necessidade de fundamentar teoricamente tudo o que se afirma trunca a fluência na exposição das idéias, e pode aborrecer o leitor que não está acostumado a esse tipo de texto, que em geral também apresenta inúmeras redundâncias, ao retomar várias vezes os mesmos aspectos para reexaminá-los sob diferente ângulo.
De qualquer forma, o livro de Adriana Facina cumpre o seu papel naquilo que é essencial. A leitura de Santos e Canalhas instiga a vontade de ler as biografias de Nelson Rodrigues, suas peças teatrais e crônicas (A vida como ela é...). Para reconhecer o autor de primeira mão, por conta do interesse por sua arte e também para melhor apreciar e refletir sobre a própria tese da jovem doutora.
Tese de doutorado em Antropologia - analisa obra de Nelson Rodrigues, buscando caracterizar sua visão da natureza humana
Serviço: Santos e Canalhas – uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Adriana Facina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. 332 págs.
Publicado originalmente no Diário do Comércio. São Paulo, 2004.
Uma história das emoções ou: as emoções segundo Darwin
Faz tempo que é moda escrever “histórias” de todas as coisas. Pelo menos desde que em 1988 Stephen Hawking publicou Breve História do Tempo, um livro de difusão científica que, por sua qualidade, vendeu milhões de cópias em todo o mundo, tornando-se um dos maiores best-sellers da não-ficção no século 20.
Mas a moda não implica novidade. Essas histórias normalmente apresentam, com variações de estilo e precisão, a caracterização e evolução de determinados conceitos ao longo do tempo, exemplificando-os com casos antológicos e citando autores clássicos na matéria. Ou seja, sob este aspecto nada muito diferente do modelo tradicional de obras científicas ou filosóficas para iniciantes.
Se alguém se detivesse a escrever a “história dos livros chamados história de ...” talvez identificaria o momento em que tais obras passaram a ser crescentemente publicadas por jornalistas, que, naturalmente, valem-se de critérios de redação diferentes daqueles utilizados por acadêmicos. Aparentemente, o que se busca ao utilizar o título de “história de...” é conferir status científico (real ou apenas suposto) a tais livros.
Em Uma história das emoções (Record, 2007, 416 páginas), o jornalista inglês Stuart Walton, colunista renomado e controverso de vinhos e culinária, propõe-se a dissecar as emoções humanas a partir de uma pouco conhecida obra de Darwin, publicada em 1872: Expressão das emoções nos homens e nos animais.
Darwin considerava seis emoções básicas (felicidade, tristeza, raiva, medo, desgosto ou repulsa, e surpresa). A estas, seguindo esquemas propostos por outros autores, como o psicólogo Paul Ekman em 1966, Walton acrescenta outras quatro (culpa ou vergonha, constrangimento, ciúme e desprezo), reunindo em seu livro, portanto, a análise de dez emoções.
Originalmente publicado no Diário do Comércio, São Paulo, em 2007.
Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.
Publica coluna semanal no Empório do Direito, às terças-feiras.
E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br
Imagem Ilustrativa do Post: the color of emotions // Foto de: StuntmanMike1 // Sem alterações
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