Dois romances em um só livro: Agosto, de Rubem Fonseca, é um romance histórico, que relata os últimos dias da era Vargas, e também um romance policial de ficção, no qual existe um crime e um detetive que o investiga

30/08/2016

Por Luiz Ferri de Barros - 30/08/2016

Rubem Fonseca, um dos grandes mestres da literatura brasileira contemporânea, hoje com 91 anos, é mineiro de Juiz de Fora, formou-se na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, porém jamais advogou. Exerceu muitas profissões antes de dedicar-se integralmente à literatura.

Por vários anos o escritor foi comissário de polícia, experiência de que tirou inspiração para muitos de seus contos e romances, que lidam com o submundo do crime, sem excluir o mundo dos ricos e poderosos, retratando fatos brutais com realismo, num estilo designado como noir pela crítica, que teria influências do expressionismo. Pelo conjunto da obra foi agraciado em 2003 com o Prêmio Camões, a maior distinção conferida a autores da Língua Portuguesa.

Agosto figura entre os melhores livros de Rubem Fonseca. O romance é um misto de dois gêneros que se justapõem. É um romance histórico, que relata os últimos dias da era Vargas. E também é um romance policial, no qual existe um crime e um detetive que o investiga. A obra deu origem a uma minissérie produzida pela Rede Globo em 1993.

Há quem diga que se trata de uma história policial que tem como pano de fundo os episódios que levaram Getúlio Vargas ao suicídio, mas, como é dado significativo destaque a esse “pano de fundo” e até o próprio estilo da narrativa histórica é diferente do estilo da narrativa ficcional, parece preferível considerar que há na obra dois gêneros justapostos.

Lançado em 1990 e ambientado no mês de agosto de 1954, no Rio de Janeiro, então a capital da República, a trama gira em torno de dois assassinatos, um real, de conhecido registro na História do Brasil; outro fictício. Esses dois crimes se desdobrarão em outros.

O crime real e histórico é o assassinato do major aviador Rubens Vaz, no atentado da rua Tonelero, que visava à morte de Carlos Lacerda, ferrenho adversário do governo. Orquestrado por Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Vargas, o episódio desaguou no suicídio de Getúlio, fato igualmente narrado no livro.

O segundo crime central da narrativa, esse fictício, é o assassinato de Paulo Aguiar, um industrial metido em negociatas com o Banco do Brasil. É com a descrição crua e brutal desse homicídio, condensada em poucas linhas, que Rubem Fonseca começa o romance.

Em rápida sequencia, a ação se deslocará para o Palácio do Catete, onde veremos o Anjo Negro, como era conhecido Gregório Fortunato, e também, em seguida, o próprio Getúlio, já apresentado como um velho alquebrado, sentado à cama de seu quarto e vestido com pijamas listado.

A contínua alternância de cenas entre o núcleo histórico da narrativa e as tramas ficcionais perpassa todo o livro, até que, a partir de certo ponto, surgem convergências e os personagens nascidos da imaginação do autor adentram as cenas históricas. Certos personagens ficcionais, ao se referirem aos reais, ou ao interagirem com eles, pontuam julgamentos de valor sobre os acontecimentos naqueles dias em que o país estava imerso num “mar de lama”, nas palavras cunhadas por Lacerda.

À medida que avançamos na leitura, é inevitável perceberem-se analogias dos tempos de então com os dias atuais, em especial pela corrupção generalizada, pelo nepotismo, o clientelismo, o compadrismo e por aí vai.

Nas partes históricas, Agosto é predominantemente uma reportagem, nitidamente construída a partir de pesquisa documental e exame de jornais da época. Nessas passagens por vezes há frases e parágrafos retóricos e vazios, pode-se dizer, citando trechos de discursos de políticos, chefes militares ou editoriais jornalísticos rançosos.

Mas isto é o de menos, pois essas passagens estão ali exatamente a serviço de mostrar o teor de tais falas – e o que predomina é o estilo direto de Rubem Fonseca e sua narrativa ágil, sem subterfúgios. Das frases curtas, e diálogos rápidos e incisivos, emerge uma realidade nua e crua a cobrar de todos os personagens, sejam os históricos, sejam os fictícios, que mostrem seu verdadeiro caráter.  Afora serem em sua maioria corruptos, à exceção do protagonista Alberto Mattos, o comissário de polícia que investiga o assassinato de Paulo Aguiar, todos se destacam por serem dissimuladores, incompetentes e, acima de tudo, desleais.

O estilo dos romances policiais de Rubem Fonseca, considerados noir, tem como uma das características a leveza com que apresenta temas pesados, embora envoltos em fortes cores expressionistas. Detalhes de sutil poética por vezes como que invadem o texto. Destoando da linguagem coloquial, prenhe das gírias policiais e do submundo, vez por outra o escritor utiliza termos eruditos, que, para compreender, um dicionário ajuda. São como “cacos” ao contrário: ao invés de serem gírias em meio à linguagem erudita, são palavras eruditas ao meio da linguagem coloquial.

Aliás, Rubem Fonseca se exercita nesta literatura como se fora um liquidificador, misturando ingredientes aparentemente diferentes e paradoxais. Talvez ele queira exatamente dizer que tais diferenças não existem como se pensa. Trata como iguais o crime político e o crime comum. O mundo do crime e o mundo político.  Getúlio e Lacerda. O senador e o contraventor. A madame e a prostituta. A gíria e a erudição.

Na narrativa histórica prevalece a neutralidade – tanto quanto qualquer relato jornalístico, histórico ou literário possa ser neutro.  Se, ao final, o livro abraça a tese, predominante, segundo a qual Getulio Vargas ao suicidar-se conseguiu vencer Carlos Lacerda e os udenistas, ao longo de suas páginas os argumentos e os personagens oposicionistas ao governo são apresentados com a mesma ênfase dada aos bastidores do Palácio do Catete, a ministros e familiares de Vargas, deputados, senadores e líderes militares de ambos os lados.

Naturalmente é dado destaque aos ministros e comandantes militares, decisivos no episódio, de um lado com inúmeras menções às reuniões do Alto Comando do Exército e do Ministério do Exército, inicialmente leais a Getúlio, embora depois cedendo às pressões pela renúncia do presidente vindas da maioria dos oficiais das três Armas, do Congresso e da opinião pública; e, de outro lado, também se dá destaque às reuniões do Clube da Aeronáutica, inflamado pela morte de um aviador, ou ao Clube da Lanterna, reduto lacerdista.

A atuação da imprensa é fartamente registrada, com óbvio realce a dois jornais rivais, cada um deles comprometido com uma facção da polarização política. Nesse campo havia, de um lado, a Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda e, de outro lado, a Última Hora, de Samuel Wainer. Aliás, foi Wainer quem pespegara a Lacerda o apelido de O Corvo, pelo qual era conhecido.

Porém, o maior encanto do livro reside no romance policial que ele é: na ficção e nos personagens que Rubem Fonseca saca de sua imaginação e das memórias dos tempos em que trabalhou na polícia carioca, que usa com fluência e de forma inspirada em muitos de seus escritos.

Em Agosto, é a narrativa ficcional que dá ao leitor o fôlego e o ânimo de acompanhar a narrativa histórica do suicídio de Getúlio, que é muito bem contata, mas, afinal, bem conhecida. O romance policial agarra o leitor pelo colarinho, prendendo-o à leitura. Não existe propriamente um clima de suspense que contagie o leitor, como em outras histórias policiais.

O que seduz são o talento e o estilo do escritor e o pitoresco da história policial que é narrada, com personagens marcantes delineados em breves traços. É a descrição, igualmente econômica, de detalhes da vida carioca na década de 1950, inclusive de um prostíbulo chamado Senadinho que ficava bem em frente ao prédio do próprio Senado Federal para maior conforto dos senadores que o frequentavam. Ou mesmo os detalhes arquitetônicos do Palácio do Catete, apresentados na parte histórica, vistos sob a ótica do comissário Alberto Mattos.

A narrativa policial do submundo carioca mostra o mesmo mundo corrompido que a história política vai desvendando nos meandros do governo getulista. No lugar de empresários a corromper as autoridades políticas nas altas esferas, no baixo mundo dos tiras – gíria que era realmente utilizada na década de 1950 e que hoje só vemos em legendas de filmes traduzidos – aparecerão os bicheiros corrompendo delegados, comissários e investigadores de polícia, juízes, deputados e senadores.

Bicheiros contratam assassinos para crimes brutais da mesma forma que empresários o fazem para eliminar sócios ou concorrentes em negociatas. Por meio de sucessivos triângulos amorosos, convivem, no mesmo mundo, prostitutas e mulheres da sociedade. Os conflitos e a colaboração entre investigadores, informantes, peritos, legistas e outros são mostrados no dia a dia de uma delegacia.

Por último, não se pode compreender a magia de Agosto sem menção ao carisma do protagonista, alter ego do autor, o comissário de polícia Alberto Mattos, um policial honesto e competente, que tem como namorada uma prostituta, é amante da filosofia e da ópera, mora sozinho, dorme vestido, só entrou para a polícia porque não arranjou emprego melhor e porque imaginou – em vão – que teria tempo para estudar para o concurso de juiz no intervalo de seus plantões.

Pelas memórias de juventude do comissário Mattos, o leitor visitará também o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, no tempo das claques, dos claqueurs e dos maestros de claque indispensáveis aos espetáculos.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 5. nº 24. Agosto de 2016.


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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