Por Luciane Buriasco Isquerdo - 21/01/2017
Em setembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal decidiu, com repercussão geral para os demais casos na Justiça em todo o país, que uma pessoa pode ter a paternidade biológica reconhecida, sem ter que retirar a paternidade afetiva, reconhecida ou não, ou seja, pode ter pai biológico e afetivo constando, ambos, como pais no registro de nascimento, e com todos os efeitos daí decorrentes: pensão alimentícia, guarda, direito de visitas, herança, rateio de pensão por morte, proibição de nepotismo, causa de inelegibilidade, enfim.
A decisão foi proferida no Recurso Extraordinário n. 898.060, da relatoria do Ministro Luiz Fux, e consta do Informativo do STF n. 840. O caso tramitava há trinta anos na Justiça e a autora da ação já até faleceu. A ação originária é de Florianópolis. Trata-se de uma garota de 19 anos na época, que teve o nome do padrasto como sendo seu pai no registro, criada por ele e que somente aos 16 anos descobriu que ele não era seu pai biológico. Entrou então na Justiça para que seu pai biológico passasse a constar no registro. Discutia-se se a paternidade chamada de sócio-afetiva - essa do padrasto, que a tinha por filha, mesmo depois que soube que ela não era sua filha biológica - se sobrepunha ou não à paternidade biológica. E o que se acabou entendendo é que ambos os tipos de paternidade têm a mesma hierarquia, e podem constar do registro de nascimento, o que se chama multiparentalidade e, é claro, aplica-se à hipótese de duas mães. O Supremo citou um caso julgado pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, na década de 1980, que construiu o conceito de dupla paternidade (dual paternity).
Nem todo padrasto ou madrasta, contudo, são pais afetivos. A construção desse conceito, afinal, veio tanto dessas hipóteses de recasamento, como da psicanálise e sua influência no Direito de Família, com o lugar do pai, ou seja, a ideia de que a paternidade seja uma função, acima de tudo. Freud disse, por exemplo, em O Mal Estar da Civilização, que não conseguia "pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a da proteção de um pai" (pág. 81 das Obras Psicológicas Completas, vol. XXI, Imago).
Exercer, de fato, a função de pai ou de mãe, que implica em proteção, acompanhar o desenvolvimento da criança, o desempenho escolar, arcar com parte ou o total das despesas, dar afeto, de forma a representar na vida da criança esse papel tão importante, é o que vai nortear o reconhecimento desse novo tipo de paternidade que a Justiça passou a admitir, a chamada sócio-afetiva, ou simplesmente afetiva.
À afetividade, ademais, cada vez mais se tem conferido valor jurídico. É em nome dela que se tem reconhecido todo e qualquer arranjo familiar, concorde-se ou não com ele, inclusive uniões simultâneas. É uma forma do Direito se aproximar da vida. Aconteceu? Tem direitos.
Afeto é tão importante que o cantor Djavan, no seu último álbum, ao dedicar à sua mãe a música Dona do Horizonte, conta como desde criança ela disse que ele tinha dom para cantar e que seria famoso. Se ela não lhe mostrasse esse horizonte, certamente ele não o teria como seu.
Alguém pode se perguntar se não vai ter uma situação financeira melhor quem tem dois pais ou duas mães. Claro que vai. E seus horizontes irão mais além também. É assim que o que muitos já consideraram azar (ser filho de pais separados), pode virar sorte.
[embed]https://m.youtube.com/watch?v=i2IDfVcf0jo[/embed] https://www.youtube.com/watch?v=_v0bDwmS330&authuser=0. Luciane Buriasco Isquerdo é Juíza de Direito em Cassilândia, Mato Grosso do Sul, membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família, IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e bacharel em Direito pela UFSC - Universidade Federal de Santa Catarina.. .
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