DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR – ATO OBSCENO E ESCRITO OU OBJETO OBSCENO CONTINUAM SENDO CRIMES

14/03/2019

A naturalidade com que atos obscenos são praticados diariamente nas áreas públicas do nosso país, principalmente durante eventos que reúnem grande número de pessoas, passeatas, protestos, festas populares e outras efemérides, nos faz duvidar que o crime de ato obsceno, previsto no art. 233 do Código Penal, ainda esteja em vigor, o mesmo ocorrendo em relação ao crime de escrito ou objeto obsceno, previsto no art. 234 do mesmo diploma.

Como se sabe, os crimes de ato obsceno e de escrito ou objeto obsceno ofendem o “pudor público”, estando previstos no Capítulo VI do Título VI do Código Penal, sob a rubrica “Do Ultraje Público ao Pudor”.

Pudor, conforme já tivemos oportunidade de esclarecer em artigo anterior, tratando de assunto correlato, é o sentimento de vergonha, timidez, mal-estar, causado por qualquer coisa capaz de ferir a decência, a modéstia, a inocência. Alguns defendem a origem grega da palavra (“aidos”), encontrando-se também quem sustente a influência latina do termo (“puditia” – castidade, virtude).

Pudor público, por sua vez, é expressão que apresenta noção variável de acordo com o tempo ou o espaço em que é coligida, daí porque o crime de ato obsceno deve ser analisado tendo em conta a moral sexual vigente em determinada sociedade e em determinada época em que foi praticado.

O festejado penalista Muñoz Conde já observava, com propriedade, que nele influem “como em nenhum outro, condições de tempo e lugar, ideias religiosas e estéticas e até a moda. Os conceitos empregados pelo Código de ‘pudor’, ‘bons costumes’, ‘escândalo’ etc. deverão ser preenchidos com os conceitos valorativos que regem uma dada sociedade num momento determinado. Por isso, não deve causar estranheza que condutas qualificadas, há poucos anos, como escandalosas, sejam hoje consideradas lícitas ou, pelo menos, moralmente indiferentes, sobretudo, no campo erótico.”

Ato obsceno, então, é todo ato, real ou simulado, de cunho sexual, que ofenda o pudor público.

Mais uma vez vale lembrar a lição do saudoso mestre Nelson Hungria, que, debruçando-se sobre o assunto, já deixava bem claro que “o juiz penal não pode perder de vista que, ao incriminar o ultraje público ao pudor, o legislador propôs-se a tutelar a ‘moral coletiva’, não segundo um tipo puro ou abstrato, mas como o ‘sentimento’ (aspecto interno) e a conduta (aspecto externo) ‘comuns’ ou ‘normais’ em torno da sexualidade na vida social. A lei protege não só o pudor público, que é o sentimento médio de moralidade sob o ponto de vista sexual (pudicia do ‘homo medius’), como assegura os bons costumes, que dizem com o decoro, conveniência e reserva ‘usuais’, no tocante aos fatos sexuais (conduta ético-social do ‘homo medius’)” (‘Comentários ao Código Penal’, Rio de Janeiro, 1957, vol.8).

É certo que, de acordo com o disposto no art. 233 do Código Penal, o ato obsceno deve ser praticado em local público, ou aberto ou exposto ao público. Local público é o acessível a um número indeterminado de pessoas. Exemplos: praças, parques, vias públicas, banheiros públicos, estações ferroviárias etc. Local aberto ao público é o que permite a entrada de pessoas, ainda que o ingresso se dê sob determinadas condições. Exemplos: cinemas, teatros, casas de espetáculo, bares, restaurantes etc. Local exposto ao público é o devassado, que permite a visão por indeterminado número de pessoas. Exemplos: quintal de uma residência, varanda de uma casa ou apartamento etc.

No que se refere ao crime de escrito ou objeto obsceno, a problemática atentatória à lei penal se dá com igual intensidade.

O art. 234 do Código Penal pune as condutas de “fazer, importar, exportar, adquirir ou ter sob sua guarda, para fim de comércio, de distribuição ou de exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto obsceno”. Na mesma pena incorre quem: I - vende, distribui ou expõe à venda ou ao público qualquer dos objetos referidos neste artigo; II - realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno, ou qualquer outro espetáculo, que tenha o mesmo caráter; III - realiza, em lugar público ou acessível ao público, ou pelo rádio, audição ou recitação de caráter obsceno.

Em assim sendo, com alicerce nos ensinamentos de grandes penalistas, torna-se evidente o descompasso entre a nossa legislação penal positivada e a prática corriqueira de determinados setores da sociedade, que insistem em chocar e ferir o pudor público, com toda a sorte de obscenidades e bizarrices praticadas às escancaras, em público, muitas vezes sob as barbas da polícia e de outras autoridades públicas.

Exsurge evidente, nestes casos, a intenção de ofender a moral coletiva, de infringir a lei, de criar o fato, até para que, em caso de justa reação por parte das autoridades, brote a lamúria da vitimização e da “perseguição antidemocrática” à liberdade de expressão, esta muitas vezes fantasiada de “arte” ou de “manifestação artística” ou “cultural”.

Total é o desvalor manifestado pela moral coletiva, pela moralidade média da sociedade.

Portanto, no cenário atual, somente se vislumbram dois caminhos: ou se aplica a lei, de maneira geral, a todos os que a violem, punindo aqueles que praticam atos obscenos em local público, aberto ou exposto ao público, e também aqueles que praticam outras condutas obscenas caracterizadas por escritos e objetos da mesma natureza, ou se revoga a lei, a pretexto de uma nova valoração do bem jurídico tutelado ou de uma adequação social, tão necessária à salutar sobrevivência do Direito Penal.

 

 

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