Do recebimento motivado da ação penal: um pressuposto processual que não ousa dizer o seu nome

18/02/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal – 18/02/2016

O recebimento da acusação penal, por meio de uma decisão idônea e devidamente fundamentada, corporifica um dos pressupostos de validade do processo, pois, sem ele, todos os demais atos praticados deverão ser reputados inválidos.

Causa certa estranheza o fato de uma decisão tão importante como esta não ser – até mais recentemente[1] - apontada como um autêntico pressuposto de validade do processo penal, o que pode ser explicado, em parte, pela transposição acrítica da teoria do direito processual civil ao processo penal - sem maiores senões -, sem se atentarem para todas as particularidades do processo penal.

Talvez essa omissão explique um pouco a interpretação que se vinha (ou melhor, ainda se vem) dando ao referido ato, sendo a decisão de admissibilidade da acusação vista como um mero “despacho”, em relação ao qual seria prescindível fundamentação.

Na verdade, até bem pouco tempo, não era incomum verificar que o ato de recebimento da acusação se dava apenas com um carimbo[2], com o seguinte modelo: “J. CONCLUSOS. RECEBO A ACUSAÇÃO, CITE-SE O RÉU PARA A AUDIÊNCIA DE INTERROGATÓRIO[3], DESIGNADA PARA O DIA __/__/__, às ____:____”.

Isso, obviamente, tornava bem cômoda a rotina de alguns magistrados, que, não raro, recebiam, automaticamente, acusações infundadas, sem analisar, mais detidamente, os seus pressupostos e requisitos de admissibilidade[4], abarrotando as Varas de processos inúteis, com gasto de recursos ao Estado e, o mais importante, menosprezo ao status dignitatis do cidadão.

Curiosamente, só para o ato de rejeição da acusação entendia-se necessária a motivação. Nesse sentido, o próprio Código de Processo Penal apenas fala em motivação da decisão que rejeita a acusação, e não da que a recebe, fazendo verdadeira inversão de valores, pois, como bem pontua o Ministro Nilson Naves, “se se exige a rejeição da denúncia (ato negativo) em despacho fundamentado, também a decisão que a recebe (ato positivo) há de ser, sempre e sempre, devidamente fundamentada[5].

Os julgados, para não reconhecerem a nulidade da decisão não motivada, discorrem que o ato se consubstanciaria em mero “despacho sem conteúdo decisório”[6], não sendo uma genuína decisão, razão porque a motivação seria desnecessária.

No fundo, o que essa construção “salvacionista”[7] pretende é evitar a nulidade da decisão de recebimento da acusação, evitando-se, por consequência - haja vista o princípio da causalidade das nulidades - a invalidade de todo o processo.

Então, ao não se reconhecer a nulidade do recebimento da acusação (afinal, por essa interpretação, não sendo um ato decisório, ele não seria nulo, não implicando a nulidade dos demais atos), se conseguiria emprestar alguma operacionalidade ao artigo 567, do Código de Processo Penal, procurando-se resguardar a eficácia de alguns atos praticados no seu curso (sobretudo os instrutórios), ainda que, depois, reconhecido o vício.

Mais antigamente, eram bem raros os julgados que reconheciam a necessidade de fundamentação do recebimento da acusação, podendo-se citar, a título exemplificativo, a decisão proferida pela então Desembargadora Sylvia Steiner, que, recentemente, foi Juíza no Tribunal Penal Internacional (TPI), de que “a decisão de recebimento da denúncia deve ser fundamentada, para ensejar o controle extraprocessual e possibilitar o exercício da ampla defesa, para o que faz-se mister o conhecimento das razões de decidir. Infringência dos arts. 93, IX, e 5.º, LV, da CF. 7. Ordem concedida em parte para anular a decisão de recebimento da denúncia para que outra seja proferida, fundamentadamente’ (TRF3.ª R. – HC – Rel. Sylvia Steiner – DJU 12.06.1996, p. 40076 – Bol. IBCCRIM 44/157)[8].

Aos poucos, esse (correto) entendimento quanto à necessidade de fundamentação do recebimento da acusação foi sendo aplicado com uma certa maior frequência, isso mais nos procedimentos em que haveria defesas preliminares[9], como ocorre, por exemplo, no caso dos funcionários públicos, ou na Lei de Drogas[10].

Somente nos últimos anos é que tanto a doutrina quanto a jurisprudência (esta, ainda, com bastante resistência[11]) passaram a entender, de forma relativamente harmônica[12], que o “recebimento definitivo da acusação” (melhor dizendo, segundo parte da doutrina,  do ato processual referente à análise das teses veiculadas na resposta à acusação), precisa ser devidamente motivado, ainda que de modo sucinto.

Assim, caso não tenha havido decisão devidamente fundamentada no que concerne à admissibilidade da acusação (entendemos que tanto a decisão do artigo 396, do CPP, quanto a do artigo 399, do CPP, constituem juízos progressivos[13] quanto ao recebimento da acusação, devendo ser ambos motivados), haverá nulidade, por ausência de requisito de validade desse(s) ato(s) (ou melhor, de TODO o processo!, pois as motivações das decisões de recebimento da inicial constituem autêntico pressuposto processual).

Portanto, uma vez anulado o processo, os autos deverão ser remetidos ao magistrado, o qual terá que analisar (e motivar) todas as questões – de direito e de fato - referentes à admissibilidade da demanda (em decisão, frise-se, devidamente idônea[14]).

É importante que o juiz, em sua decisão, evidencie as razões pelas quais a demanda deve ser aceita, não incorrendo em fundamentações genéricas, utilizando-se, para tanto, de jargões jurídicos, que repetem apenas os termos da lei (tais como: presente justa causa à ação penal, recebo a denúncia/queixa ou, inexistindo hipótese de absolvição sumária, a demanda deve ser recebida).

Em boa hora, neste ponto, entrará em vigor o Novo Código de Processo Civil, sendo plenamente aplicável ao processo penal o seu artigo 489, § 1.º (Novo CPC), que dispõe: “§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão[15]


Notas e Referências:

[1] Defendemos que se trata de pressuposto processual em: PASCHOAL, Jorge Coutinho. O prejuízo e as nulidades processuais penais: um estudo à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2014, p. 185-188.

[2] Denúncia não pode ser recebida por carimbo. A esse respeito, vale a pena transcrever a ponderação do Ministro Gilmar Mendes nos autos do Inquérito 2.245/MG: “na semana passada, discutíamos, em relação a um caso vinculado a este complexo evento, o recebimento da denúncia. E eu dizia da importância desta fase de defesa prévia no âmbito de primeiro grau. E lá se dizia, então, que as denúncias são recebidas com um carimbo. Claro que eram descrições, e não elogios, porque denúncia não pode ser recebida com carimbo” (STF, Inq. 2.245/MG, Ministro Relator Joaquim Barbosa, Pleno, j. 28.08.2007)(fl. 843, do acórdão).

[3] Na época, obviamente, em que, no procedimento comum, o interrogatório era o primeiro ato. Hoje o “carimbo” (ainda que escrito pelo juiz) é outro, de que, uma vez presentes os pressupostos do processo e havendo justa causa para a ação penal, bem como, carecendo causa manifesta para a absolvição sumária, recebe-se a acusação.

[4] Nilzardo Carneiro Leão já diagnosticava o exposto em 1964. Cf.; LEÃO, Nilzardo Carneiro. Do despacho saneador no processo penal brasileiro. Recife: Imprensa Universitária, 1964, p. 39.

[5] STJ, HC 76.319/SC, Ministro Relator Nilson Naves, 6.ª T., j. 11.12.2008, v.u. (ementa).

[6] “...Esta Corte Superior de Justiça pacificou o entendimento de que é dispensável fundamentação no despacho que recebe a denúncia, visto que se trata de ato que não possui conteúdo decisório” (STJ, RHC 50.672/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6.ª T., julgado em 18/09/2014, DJe 07/10/2014)

[7] Interpretação salvacionista, haja vista a finalidade única de salvar a aplicação do artio 567, do Código de Processo Penal. Cf.: GOMES, Luiz Flávio. “Garantias constitucionais e nulidades processuais”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 1, n. 4, maio/1993.

[8] In: NINNO, Jefferson. Alberto Silva Franco & Rui Stoco. Código de Processo Penal e Sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. 2, p. 428.

[9] Antigamente, só alguns procedimentos admitiam defesa preliminar. Mais recentemente, com as reformas processuais penais de 2008, entendemos que todos os procedimento têm alguma forma de defesa preliminar.

[10] STJ, HC 89.765/SP, Ministra Relatora Jane Silva (Desembargadora convocada do TJ/MG), 6.ª T., j. 26.02.2008, v.u.

[11] Ainda, até bem recentemente, é possível se deparar com decisões que reputam não existir dever de motivação (sobretudo, segundo se afirma, de ordem mais “complexa”) quanto à decisão de recebimento da acusação. Nesse sentido: STJ, HC 142.078/SP, Ministra Relatora Laurita Vaz, j. 25.10.2011, v.u.

[12] Utilizou-se o termo: “relativamente harmônica”, pois há decisões que ora negam ora afirmam que o recebimento da acusação tem que ser motivado. Rafael Serra Oliveira, a esse respeito, elenca duas decisões proferidas, em um espaço de poucos meses pelo STF, uma afirmando e a outra negando o direito à motivação do recebimento da acusação. Consulte-se: OLIVEIRA, Rafael Serra. “O titubeante posicionamento do Supremo Tribunal Federal e a incontestável necessidade de fundamentar-se a decisão de recebimento da denúncia”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 19, n. 222, maio/2011.

[13] FERNANDES, Antonio Scarance & LOPES, Mariangela. “O recebimento da denúncia no novo procedimento”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 16, n. 190, set. 2008, p. 2-3.

[14] Não é idônea, por exemplo, uma decisão que receba a acusação com base, apenas, no “in dubio pro societate”. Nesse sentido, seguem as ponderações da Ministra Maria Thereza de Assis Moura: “ao contrário do pontuado pela Corte Local, por mais que se queira propalar a máxima de que, no átrio da ação penal, teria força a máxima in dubio pro societate, em verdade, tal aforisma não possui amparo legal, nem decorre da lógica do nosso sistema processual penal, constitucionalmente orientado. A tão só sujeição ao juízo penal já representa, per se, um gravame, cuja magnitude Carnelutti já dimensionava como verdadeira sanção. Desta forma, é imperioso que haja razoável grau de convicção para a submissão do indivíduo aos rigores persecutórios. Trata-se de uma das fases do escalonamento da cognição, que se inicia pelo indiciamento, passa pelo recebimento da acusação e se ultima com a sentença, recebendo a pá de cal com o trânsito em julgado” (STJ, HC 175.639/AC, Ministra Relatora Maria Thereza de Assis Moura, 6.ª T., j. 20.03.2012, v.u.)(p. 10, do acórdão). No Supremo Tribunal Federal, censurando essa linha de argumentação, foi o voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes: “não subscrevo – devo dizer também com toda clareza e já havia anotado ontem – a afirmação feita pelo eminente Relator no sentido de que no judicium accusationis há que entender aqui, regido pelo princípio do in dubio pro societatis. Não subscrevo, faço reparos como temos feito reparos inclusive na tradição que se acostumou desenvolver um juízo que se faz na pronúncia: se não houver indícios mínimos de autoria, nós não devemos receber a denúncia. Não devemos consagrar, acredito, fórmulas genéricas que podem levar a resultados ameaçadores para o princípio do Estado de direito. Mas no caso específico, S. Exa. não se limitou a esta afirmação genérica” (STF, Inq. 2.245/MG, Ministro Relator Joaquim Barbosa, Pleno, j. 28.08.2007)(p. 845-846, do acórdão).

[15] Grifamos e destacamos.


Jorge Coutinho Paschoal

. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


Imagem Ilustrativa do Post: I Hate Math. // Foto de: Eryne! // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/erynegphotography/6758930177

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura