DO FATO JURÍDICO DO DIREITO AO RECURSO – 9ª PARTE

08/10/2019

Dando sequência, tendo apresentado uma premissa necessária, passarei, após incrementá-la, ao exame da possibilidade de se falar num negócio jurídico instituidor de recorribilidade? Para facilitar a compreensão, a numeração seguirá, em continuação, a partir da última.

3.2.1.1. Locus normativo da recorribilidade e os negócios jurídicos (cont.)

Como cediço, pretende-se averiguar o que seria necessário para possibilitar um negócio jurídico formativo de recorribilidade. Já se apresentou, ademais, a justificativa de ter o Estado-juiz de em tal caso atuar, ou seja, ser verdadeiro negociante. Isso dar-se-ia por intermédio de um negócio jurídico plurilateral, pois se faria indispensável uma convergência de manifestações de vontade visando a um fim comum, sendo irrelevante o número de lados.

É preciso, porém, registrar que, em tal tipo negocial, o Estado-juiz age de dois modos, porque, além de tudo, exerce sua função essencial: a de decidir.  

Em todo negócio jurídico processualizado, [1]a participação do Estado-juiz, na forma do parágrafo único do art. 190, CPC, dá-se como senhor da validade. Ou seja, a ele compete dizer se a negociação feita pelas partes (ou outros sujeitos do processo) é válida ou não e, com isso, se produz ou não efeitos. O juiz deve chancelar a validade e constatar a eficácia dos negócios processuais. Isso, frise-se, nada tem a ver com o problema da necessidade ou não de homologação[2].

O juiz, desse modo, profere decisão, exercendo, propriamente, função jurisdicional. Aqui, ele analisa ato dispositivo de situação jurídica alheia, como ocorre quando parte renuncia a seu poder de recorrer.

Ocorre que há casos em que o juiz dispõe sobre situação jurídica pertencente ao órgão público a quem é vinculado. Aqui, ele não profere decisão, algo que pressupõe analisar o que é alheio, mas sim manifesta vontade acerca do que lhe é próprio.

É o que se teria na figura do negócio jurídico em tela. É o que acontece no calendário previsto no art. 191, CPC. Por ter por objeto a fixação das datas dos atos processuais, o calendário tem por base situações que dizem respeito ao órgão judicial, como, por exemplo, as rotinas cartorárias, incluindo os prazos que os serventuários têm para praticar seus atos. Observe-se, ao tratar disso, o juiz, como agente diretivo máximo do órgão judicial, dispõe sobre o que a este pertence, e não aos outros sujeitos processuais. Seu agir, por isso, é de negociante, não de julgador.

Como dito, em tais casos, contudo, a atuação do juiz se dá de duas formas: por um lado ele é negociante, pois dispõe sobre o que é seu; por outro, pela incidência do parágrafo único do art. 190, CPC, age como senhor da validade das manifestações de vontade das partes, devendo negar a chancela se for o caso. Há dois atos do juiz: o de negociante, que compõe o núcleo do suporte fático do calendário, e um ato envolvente que diz ser o negócio praticado válido e eficaz. É claro que, no que tange ao seu ato dispositivo, a chancela do juiz é pressuposta. Tentando sintetizar numa linguagem mais simples, meio que o juiz diria: “vocês (partes) querem calendarizar? Se for em ´tais e tais moldes´, aceito (agir negocial) e, desse modo, entendendo que vocês podem fazê-lo.

Há, portanto, um juiz atuando como negociante. No calendário, existe expressa previsão em lei; não a há, porém, para o negócio jurídico instituidor de recorribilidade. Essa ausência, no entanto, não é razão suficiente para uma conclusão que negue a possibilidade da pertinência dele ao direito brasileiro, haja vista a expressa permissão para negócios jurídicos atípicos (caput do art. 190, CPC). Ademais, pela mesma disposição legal, é possível negociar sobre o procedimento (todo), e o recurso é ato do procedimento (parte).

Não havendo solução a priori (vedação legal) e, ao contrário, existindo, indício de possibilidade (possíveis sentidos de atribuíveis ao termo procedimento fixado no caput do art. 190, CPC), não resta outra saída senão a de, a partir da análise de seus requisitos e limites, identificar se esse indício é tendencialmente falso ou se outras razões se apresentam para levá-lo em conta.

Aqui, especificamente, dois problemas vêm à tona: legitimidade negocial e isonomia. Já que, na hipótese, o Estado-juiz há de ser agente negociante, é necessário saber quem, em sua estrutura, teria legitimidade para tanto e se, por conta do dever de isonomia, ele poderia fazer negociações atomizadas. Num paralelo com a figura do calendário, tentar-se-á dar uma solução a esses dois problemas.  

É preciso, porém, colocar algumas considerações:

i) como é próprio deste trabalho, a análise partirá datais requisitos são retirados da normatividade vigente. É, portanto, em todo o arcabouço que rege não só a atuação dos agentes estatais, mas também dos particulares em geral (e isso a começar pela normatividade constitucional) que devem ser encontradas respostas aos problemas acima;

ii) a análise é bastante limitada, pois apenas dois problemas bem específicos referentes aos dois tipos possíveis serão enfrentados, quais sejam: a licitude do objeto (problema de validade) e a titularidade do poder de dispor (problema de eficácia). Isso, por si só, denota existir na generalidade dos tipos escolhidos outras especificidades.

Primeiramente tem-se a questão da licitude do objeto. Pela regra geral, art. 104, II, CC (aplicável aos negócios processuais, certamente), o objeto do negócio jurídico deve ser lícito. Entende-se, em tal contexto, objeto como a eficácia do ato. Sua licitude deve ser aferida observando o sistema jurídico como um todo. É aqui que surge uma questão fundamental: os limites à liberdade da atuação estatal. Não se pode dizer que a liberdade de atuação do Estado seja a mesma dos particulares em geral. Em situações normais, o dono de um automóvel pode vendê-lo para alguém por um valor X mesmo tendo recebido de outrem oferta pelo mesmo bem de valor X + Y. Ele pode dizer: “fulano, embora você tenha me oferecido tanto pelo carro, eu vou vendê-lo a sicrano por menos”. Ele pode fazê-lo pois está em sua esfera de liberdade.

A atuação estatal não pode se basear nisso. Não pode, por exemplo, o Estado conceder um benefício fiscal para uma determinada empresa e não conceder a outras que, desempenhando atividade análoga, com ela concorram. Do contrário, estaria violado o dever de isonomia. Eis um “topoi” adequado para estabelecer os limites à autonomia da vontade do Estado. 

Em termos processuais, não pode o juiz calendarizar o processo das partes A e B e não calendarizar processo análogo e contemporâneo das partes C e D, pois isto, além de ser contra a isonomia, feriria a necessidade de impessoalidade do agir estatal.

Outro grande problema na atuação do juiz como negociante tem a ver com a legitimidade negocial. É preciso saber quem tem a titularidade do poder de praticar o ato. Por exemplo, em unidades judiciárias nas quais há juiz que, sendo auxiliar, não tem poder hierárquico sobre os serventuários pode haver calendarização pelo auxiliar, algo que implicará disposição sobre os serviços de agentes que não lhes são vinculados? E nos casos em que um juiz está por substituir automaticamente outro que se encontra em férias, é possível a calendarização?

Essa problemática sobre a legitimidade parece ter muito mais a ver com o direito administrativo-judicial, problema de organização judiciária, do que com o direito processual especificamente. É, portanto, regrável em atos normativos como as leis de organização judiciária e os regimentos internos dos tribunais. Neste último caso, por exemplo, é possível ao regimento interno fixar quem num órgão colegiado tem o poder de negociar, como o relator da causa, o presidente do órgão ou, até mesmo, o próprio colegiado.

Ao calendário, que aqui está colocado como figura comparativa, as balizas postas acima são suficientes para demonstrar sua viabilidade jurídico-positiva. Resta saber, a partir disso, se há a mesma suficiência no que tange ao negócio jurídico de instituição de recorribilidade.

Eis o tema do próximo do texto.

 

Notas e Referências

[1] O termo processualizado acima posto não tem a ver com algo que, modificada sua natureza, assumiu feição processual. É algo referente ao problema da necessidade de comunicação, por ser esclarecido logo na nota abaixo.

[2] Sabe-se que todo negócio (como, de resto, todo ato processual) praticado pelos sujeitos do processo precisa ser levado à constatação judicial. É o que aqui se denomina de necessidade de constatação. Ocorre que a necessidade de se levar algo para a constatação judicial, embora seja da essência linguística da atividade jurídica em geral e, particularmente, da atividade processual, não é um fim em si mesma. Constata-se sempre para fazer ou deixar de fazer algo. E são variadas as possibilidades. A direção por uma ou por outra vai depender do interesse do sujeito comunicante (consubstanciado em algum pedido que ele venha fazer ao Estado-juiz, como a certificação, a condenação, expedição de ordem etc.), podendo, de outro modo, se dar por uma imposição legal: o juiz deve constatar para fazer algo que a lei prevê. Neste caso, é o que se tem com os negócios processuais, que, por força do parágrafo único do art. 190, CPC, têm de ter controlada a sua validade (e, conquanto não expresso, certificada a sua eficácia). Ou seja, o juiz os constata para cumprir seu dever de verificar a validade do ato. A necessidade de constatação é, desse modo, uma condição de possibilidade para o cumprimento do dever de controlar a validade dos atos. Ou seja, uma condição de possibilidade para a própria atividade judicial. Afora essa necessidade de chancelar a validade, fundada num imperativo legal (dever-ser), outras variáveis podem advir da constatação, cuja direção, como dito acima, vai depender do interesse do sujeito comunicante. Em alguns casos, por exemplo, ele tem o interesse na produção de um efeito jurídico específico, que só pode ser emanado a partir de um ato judicial. Aqui se está no âmbito da necessidade de homologação. Em rigor, homologar é tornar algo análogo a outro (Pontes de Miranda). Na homologação, alguém, que tem poder para tanto, atribui a um fato qualquer um efeito que ele não teria de outro modo. A homologação, portanto, tem a função de integralizar o fato, sendo um dos tantos modos de integralização. No lançamento tributário sujeito à homologação, por exemplo, delega-se ao responsável tributário o dever de operacionalizar o lançamento que fica sujeito a uma homologação (expressa ou tácita) da autoridade fiscal. O poder de homologar, por óbvio, só é desta. A homologação, por fim, não diz respeito à existência, à validade ou à eficácia do ato jurídico em si. Tem a ver apenas com a produção de um efeito jurídico específico, que só pode ser emanado a partir do ato homologatório. No caso do lançamento tributário, esse efeito é a certificação da exoneração do responsável. Num processo judicial, quem tem esse poder é o Estado-juiz. Em verdade, ele homologa o ato para torná-lo análogo a uma sentença judicial. Ao homologar uma transação, o juiz atribui a ela os mesmos efeitos de uma sentença condenatória com força de coisa julgada, por exemplo. Além disso, homologáveis são os atos de disposição: os negócios. Os atos procedimentais dos sujeitos processuais (as petições, por exemplo) não se submetem à homologação pela simples razão de sua essência já ser a própria comunicação ao juízo. Homologável, assim sendo, não é o ato comunicativo, mas sim o objeto comunicado. É, por isso, que se homologa uma desistência, não para que ela produza seu efeito de desfazer o ato petitório, pois isto é seu efeito precípuo, mas sim para que a disposição nela contida tenha a força de extinguir o processo. Pede-se a homologação da desistência, porquanto, obviamente, só quem tem o poder de extinguir o processo é o juiz, e não a parte ou outro sujeito processual. É possível que o regimento interno fixe quem num órgão colegiado tem o poder de negociar, como o relator da causa, o presidente do órgão ou, até mesmo, o próprio colegiado. É corriqueiro, porém, dizer que, diferentemente da desistência em geral, a desistência do recurso independe de homologação. Tal afirmação é correta, contudo, muito mais do que decorrente de uma previsão legal, ela ocorre pela própria ordem natural das coisas. Isso porque, como o recurso é fato impeditivo do trânsito em julgado (rigorosamente, ele estende o estado de condicionalidade da extinção do processo operada pelo juiz na decisão recorrida), o desfazimento dele, que se perfaz pela desistência, implementa a condição necessária à ocorrência do trânsito em julgado. Não há, aqui, necessidade de se extinguir o processo em virtude da desistência, visto que o ato de extinção já foi praticado, estava tão-somente sujeito à condição. É correto dizer que a regra nos negócios processuais é a desnecessidade de homologação, pois, em sua maioria, não precisam produzir efeitos específicos para terem utilidade, uma vez que, em geral, não há, por eles, atos próprios a serem praticados pelo juiz, como acontece na desistência da ação, cuja extinção do processo depende, obviamente, de uma decisão judicial. Numa convenção processual de irrecorribilidade, desde que válida e eficaz, a não aquisição do direito ao recurso se dá pela própria eficácia dela, e não porque o juiz a ela acresceu alguma potencialidade. Havendo uma convenção do tipo, a decisão judicial transita em julgado imediatamente, sem que haja a necessidade de qualquer outro ato judicial, a não ser de força certificatória da eficácia da convenção. Certificação essa cuja necessidade somente se apresenta quando há algum questionamento sobre a convenção. Ou seja, a previsão do art. 200, CPC, sobre a desnecessidade de homologação dos atos processuais das partes tem muito mais força simbólica do que normativa. Se ela, por exemplo, vier a ser retirada do sistema, a constante de desnecessidade irá continuar. Conclui-se dizendo que, enquanto a necessidade de controlar a validade do negócio processual (estabelecida no parágrafo único do art. 190, CPC) é decorrente de um imperativo legal (compulsoriedade), a necessidade de homologação dá-se – ao menos em geral (difícil, embora não logicamente impossível, imaginar, dentro do direito positivo, um caso de dever da parte levar um ato à homologação judicial) – por um interesse do sujeito do processo. Ambas, porém, têm por pressuposto a necessidade de constatação, sendo esta, em verdade, uma condição de possibilidade da própria atividade processual.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/anap/12612437785/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura