DO FATO JURÍDICO DO DIREITO AO RECURSO – 4ª PARTE  

20/08/2019

Dando sequência, continuarei a analisar o problema descrito no título do item abaixo, pois que é o exato prolongamento do que foi dito no texto anterior. Logo, até para facilitar a compreensão, a numeração seguirá a partir da última, a 3.1.3.1.

3.1.3.1. A omissão judicial no contexto das decisões

Como dito, o problema da omissão judicial apresenta-se sob dois prismas: i) o do transcurso do prazo para a prática do ato decisório, objeto de análise no texto passado; ii) o de decisões prolatadas sem que todas as questões necessárias para tanto tenham sido efetivamente analisadas. Este último ponto traz, ao menos, outros dois que, por comporem uma espécie de zona cinzenta, precisam ser tratados especificamente. São eles: ii.1) o da extinção do processo sem que se declare o porquê da não apreciação de um pedido; e (ii.2) o de dizer expressamente que apenas doravante será analisado algo que deveria sê-lo de imediato.  

A cada um eles dedicar-se-á um subitem próprio.

3.1.3.1.1. Extinção do processo e não declaração do fundamento para a não análise de um pedido

Um dos temas que sempre permeou as discussões processuais é o que consiste na ausência de decisão referente a um dos pedidos cumulados ou, até mesmo, da parcela de um pedido.

José Carlos Barbosa Moreira, em texto publicado na década de 1980, sustenta que o item (expressão por ele utilizada) do pedido que não foi analisado pode ser renovado em outro processo. Seu argumento para tanto é de ordem lógica: se não há decisão sobre ele, não se pode falar em coisa julgada, já que, para esta, faz-se necessário o julgado, que não houve.

Não obstante, o STJ, por seu órgão de uniformização interpretativa, analisando a problemática referente aos honorários advocatícios, editou o Enunciado Sumular n. 453, fixando não ser possível, após o trânsito em julgado da decisão, requerer a condenação ao pagamento de algo que não fora estabelecido. 
Interpretando essa posição do STJ é como se houvesse uma eficácia preclusiva de coisa julgada referente ao pedido que, por omissão, não foi analisado.

A doutrina, em boa parte, sempre se insurgiu contra tal posicionamento. Cada um a seu modo, Fredie Didier Jr. e José Henrique Mouta defendem, na linha do pensamento de Barbosa Moreira, não haver decisão sobre o não analisado, de modo que a renovação é possível, mesmo após o trânsito em julgado da decisão. E isto, frise-se, por um simples pedido dirigido ao juiz da sentença, não sendo, portanto, sequer necessária a propositura de uma nova “ação”[1].

Esse posicionamento parte da seguinte premissa, meio que já exposta acima: sobre o não analisado (e exatamente por faltar a análise) não há julgado, logo não se pode falar de trânsito em julgado e daquilo que dele advém.

É de se discordar, porém. Há um erro analítico na construção descrita.

Para demonstrá-lo, fixar-se-á uma premissa, o que, de fato, funcionará como falseamento da premissa em discussão.

Toda decisão é, antes de tudo, análise sobre algo referente à processualidade. Ou seja, sobre um efeito do fato jurídico processual, entendido aqui como aquele instaurador da relação jurídica processual (RJP). Como conteúdo desta, tem-se a eficácia comumente chamada de litispendência, que, por sua vez, engloba uma gama de múltiplos efeitos, como a litigiosidade do objeto, a prevenção etc. A litispendência, como o próprio nome sugere, é uma pendência sobre algo. Mas o que vem a ser este? Ele consiste no objeto do processo (aquilo que está-para-ser analisado) e, mais especificamente, no objeto da declaração judicial (aquilo que está-para-ser julgado). Um dos efeitos que compõe a litispendência é, na expressão ora apresentada, o estado de processualidade. Isto é, sobre o objeto levado a juízo há processo e, logo, tal objeto (de)pende de análise judicial. O estado de processualidade seria, grosso modo, o envolvimento da causa pela eficácia da RJP.

Ele, porém, não pode ser confundido com o objeto processualizável, a causa propriamente falando. Uma coisa são as alegações das partes em si; outra, numa metáfora, o revestimento sobre ela. É neste que reside a processualidade.

Assim, quando, por exemplo, se julga determinado pedido, “toca-se” primeiro no estado de processualidade, até porque o pedido está lá para ser apreciado, e, após isso, no pedido em si. É claro que, com a análise expressa do segundo, o primeiro momento fica subentendido. Sendo desnecessária, portanto, qualquer pronúncia sobre o primeiro.

A distinção acima fica mais clara quando há pronúncia sobre a impossibilidade de apreciar o pedido: aqui, obviamente, cessa-se o estado de processualidade, mas o pedido em si resta intocado.

Desse modo, se o juiz profere decisão definitiva (ou seja, aquela passível de formar coisa julgada) que, por qualquer motivo, é omissa quanto a um dos pedidos cumulados, não se pode dizer que a omissão quanto a ele é total. Há omissão quanto ao pedido em si, mas não há quanto ao estado de processualidade, que sobre ele paira. Embora em erro, o juiz entendeu por encerrar a litispendência.

A decisão, no ponto, é nula (eivada de error in procedendo) e, com a não interposição do recurso, o esgotamento das vias recursais, ou, se for o caso, a irrecorribilidade nata, transita em julgado, dando azo à coisa julgada formal. Em tese, ela torna-se rescindível. Contudo, pelo fato de o pedido em si (objeto processualizado) não ter sido tocado, não há necessidade da rescisão, visto que é muito mais simples a repropositura da ação.

Ressalte-se, é preciso sim que a ação seja reproposta, já que a litispendência cessou. Não se pode, pura e simplesmente, renovar o pedido ao próprio juízo sem se observar as formalidades necessárias, como, sendo o caso, pagamento de custas e etc.

Por fim, é errado dizer que tal tipo de decisão se configuraria como uma decisão (definitiva) parcial, analogamente às do molde fixado no art. 356, CPC, visto que este pressupõe que, presentes os requisitos, se opere uma cisão no agir decisional. É necessário que, na forma do regramento de fundamentação (§ 1° do art. 489, CPC), se demonstre o porquê de cindir e, no dispositivo, denote-se que está a fazê-lo, seja por intermédio de um texto literal do tipo “cindo”, seja de modo subentendido.

Não é o que ocorre com a hipótese aqui analisada. No caso, há uma omissão (que é agir ilícito do Estado-juiz) quanto ao objeto processualizado, muito embora – e isso pelas próprias palavras empregadas no dispositivo, como “extingo o processo”, “arquivem-se os autos após o trânsito em julgado” – haja decisão relativa ao estado de processualidade.

No próximo texto, analisarei a questão estabelecida em II.2.

 

 

Notas e Referências

[1] Em verdade, a ação – no sentido material – seria a mesma; nova é a demanda, já que, sendo fato, é única e irrepetível. O que se tem, em tais casos, é a uma nova demanda cujo o conteúdo coincide ao da antes proposta.

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