DO FATO JURÍDICO DO DIREITO AO RECURSO – 10ª. PARTE

15/10/2019

Dando sequência, estabilizadas as premissas, chego ao momento de conclusão do tema abaixo. Como de praxe, a numeração seguirá, ainda em continuação, a partir da última.

3.2.1.1. Locus normativo da recorribilidade e os negócios jurídicos (conti. – 2ª parte)

A questão que há de ser respondida refere-se à possibilidade de se falar na viabilidade jurídico-positiva de um negócio jurídico instituidor de recorribilidade.

Num primeiro momento, uma vez que há necessidade de atuação, como negociante, do Estado-juiz, enquadrou-se tal negócio processual como plurilateral; em seguida, estabeleceu-se um paralelo entre ele o calendário, para, verificados os requisitos e limites mínimos à prática deste, identificar se a mesma hipótese seria aplicável àquele.     

Diante disso, sabe-se que para tanto deve-se, no mínimo, observar: i) a legitimidade negocial, visando a, dentre outras coisas, a boa organização judiciária; ii) a isonomia, a fim de que o juiz negociante não beneficie determinados litigantes em detrimento de outros que, em situação análoga, sejam partes de processos que estejam sob sua égide.

No primeiro caso, não se vislumbra maiores óbices para a implementação dessa legitimidade, desde que respeitados os requisitos para tanto; o mesmo não se pode dizer do segundo.

Bem vistas as coisas, o negócio jurídico instituidor de recorribilidade cria direito verdadeiramente novo. Não se trata de direito modificado, como se tem com a feitura de um calendário. Essa afirmação necessita de maiores esclarecimentos.

No calendário – como, de resto, nos negócios processuais conhecidos – já existe um determinado direito, que, de algum modo, é modificado pelo agir negocial. Aqui, há, na perspectiva das partes, direito a uma decisão sobre a questão que lhes refere, o qual, com o calendário, adquire determinação quanto ao momento de sua realização. Não se forma, por óbvio, novo direito.

Já o negócio jurídico instituidor de recorribilidade é relativo a algo novo. Observe-se, sem ele não haveria de se falar em recurso contra determinada decisão, que passa a existir pela eficácia do negócio jurídico firmado. O direito ao recurso, como será demonstrado, não é referente ao procedimento da decisão que o causa; é externo a esse procedimento, sendo princípio[1] de outro.

Portanto, do ponto de vista da isonomia, esse negócio jurídico, para ter viabilidade, teria de abranger todos os litigantes que, em possibilidade, pudessem estar na condição de ser atingidos pela decisão a ser recorrida. Isso, certamente, faria com que a negociação tivesse de ser estabelecida não só em abstrato, como também de forma absoluta dado o viés nacional do direito processual (art. 22, I, CRFB). Neste caso, em termos de legitimidade negocial, o acordo haveria de ser firmado pelo órgão máximo do STJ ou, versando sobre matéria constitucional, pelo Supremo Tribunal Federal. Na outra banda, quem teria legitimidade para negociar em nome dos eventuais litigantes?

Uma hipótese desse tipo, caso adotada, convenha-se, seria fruto de possíveis inconvenientes e, quiçá, transtornos de ordem prática. Não obstante o argumento pragmático-acional[2], há um aspecto jurídico-positivo que deve ser observado.

Na forma do art. 190, CPC, o negócio jurídico processual – especialmente o bilateral – é pertinente às partes. O sentido do termo parte nele contido, por mais que, numa interpretação extensiva, possa abranger todo aquele que, figurando numa relação processual, tenha interesse no resultado, algo que compreenderia, além de autor e réu, terceiros intervenientes e, até mesmo, o MP, não pode ser utilizado em sentido total, isto é: abarcante de todos os sujeitos processuais, incluindo o juiz. Do contrário, não haveria sentido em regras que especificam os sujeitos processuais, como o art. 191, CPC, que faz alusão a juiz e a partes.           

Logo, por disposição legislativa, a margem de negociação é a princípio aberta, visto que não são fixados os negócios que podem ser celebrados, mas, numa segunda ordem, se fecha, uma vez que é especificado o sujeito processual apto a celebrá-los.

Isto por si só já seria suficiente para se concluir pela inviabilidade jurídico-positiva do negócio jurídico instituidor de recorribilidade. Há algo além, contudo. Tal acordo teria generalidade num nível idêntico ao máximo possível a uma lei federal. Ora, por maior que possa ser o alcance de um acordo – e é de conhecimento a existência de acordos nacionais referentes a processos, vide o celebrado entre o órgão representativo das instituições financeiras e órgãos representativos de poupadores-, não lhe é dado assim o ser quando referente à geração de situações jurídicas. Esse nível de generalidade somente é atingível mediante lei federal (art. 22, I, CRFB) ou, sendo o caso, por emenda constitucional.

Concluindo, no direito positivo, é inviável o negócio jurídico instituidor de recorribilidade, pois, se do menos geral ao individual, sua pratica seria ofensiva à regra da isonomia, já que privilegiaria apenas alguns; se plenamente geral, algo que o equipararia à lei, violaria a reserva legal de regulação do direito processual.

Na próxima postagem, falarei acerca da possibilidade de se estabelecer recorribilidade por decisão judicial.

 

Notas e Referências

[1] Deve-se entender o termo princípio acima utilizado não como uma espécie normativa, oposta à das regras. Princípio aí está como aquilo que inicia algo, ou seja, além de causa, é o primeiro elemento formador desse algo. Diz-se ser de tal modo o direito ao recurso por ser ele a potência do ato recursal. Sendo este o iniciador do procedimento respectivo, logo aquele é princípio em estado potencial.

[2] O termo acima refere-se ao tipo de pragmática voltado a fins, à apresentação de modelos para soluções de problemas concretos. Nesse sentido, ver RODRIGUES, Adriano Duarte e, neste ponto, como seguidor das ideias dessa ideia, COSTA, Eduardo José da Fonseca.

 

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