Tal como toda análise de algo deve partir de sua causa, não se pode pretender analisar o recurso sem entender aquilo que o gera (causa eficiente). Mas o qual seria a causa do recurso? Sendo ele um ato jurídico (hipótese a ser demonstrada ao longo dos textos), poder-se-ia intuir ser ele o exercício de uma situação jurídica que o possibilita. No caso, o direito ao recurso.
Ledo engano, porém.
Ora, tanto é recurso aquele que se dá a partir do exercício do direito a ele quanto o é aquele que, embora em forma de ato, é desprovido de tal direito. Não por outro motivo, classifica-se o recurso em eficaz ou ineficaz.
A ocorrência, no ato recursal, de exercício do direito ao recurso é necessária apenas à eficácia do ato, não interfere em sua existência. Logo, a causa do recurso há de ser outra. Para demonstrá-la, como não poderia ser diferente, há de se analisar os elementos nucleares do suporte fático recursal (verdadeiros requisitos para a existência do recurso).
A isto, dedicarei textos próprios. Neste momento, o objeto da minha análise será o direito ao recurso. Contudo, se para haver um recurso não é relevante a ocorrência de direito a ele, qual é a razão de tal escolha? Simples: o trabalho visa ao estudo do conceito de recurso como um todo, seja ele eficaz ou ineficaz. Logo, se o eficaz importa, é imprescindível o estudo da sua causa.
Ademais, a ocorrência de um recurso ineficaz é, além de uma vicissitude, algo dependente da possibilidade de existir o direito a ele. Tal como o ato de rezar depende da possibilidade de a pessoa fazê-lo de consciência. Em suma, só pode haver algo ineficaz porque há a possibilidade de ele existir eficazmente, e, neste caso, é preciso a existência do direito ao ato.
Uma necessária distinção linguística: fato jurídico recursal x recurso
Ao longo do trabalho, as expressões fato jurídico recursal (ou, mais amplamente, fato jurídico do direito ao recurso) e recurso estão a ser utilizadas. Não se tratam de sinônimos. Pela primeira, designa-se o fato produtor do direito processual ao recurso; pela segunda, um ato postulatório.
Claro, o segundo também é um fato jurídico, de modo que a ele serviria a nomenclatura adotada para se referir ao primeiro. Além do que, por óbvio, recurso é denotativo de existência recursal, de “recurssalidade”.
Ocorre que, por coexistirem no sistema tanto uma coisa – o ato de recorrer – quanto outra – o fato gerador do direito a tanto-, não se pode, numa análise global, deixar qualquer delas de lado, o que, de certa forma, acontece com a segunda em estudos dedicados ao tema. Se ambas precisam ser observadas, a elas deve-se atribuir uma nomenclatura adequada.
Diante disso, opta-se por chamar a segunda de fato jurídico recursal dada a sua própria natureza jurídica, de fato jurídico stricto sensu, como se demonstrará. Reserva-se à primeira simplesmente o nome recurso ou, no máximo, ato recursal, este mais pertinente à natureza do ente designado.
Os elementos do suporte fático do fato jurídico recursal
De plano, é necessária uma advertência. O termo direito ao recurso, empregado neste trabalho, não é referente a direito sob o prisma da estrutura lógica da norma jurídica, mais especificamente contido no consequente normativo. Nesse sentido, tem-se direito como um tipo de situação jurídica, como uma das possíveis consequências de um fato jurídico.
Sendo assim, fica fácil compreender o fato de ele não surgir na relação processual do nada, por geração espontânea. É preciso, pois, que algo dê ensejo a ele. E esse algo, por óbvio, só pode ser um fato jurídico.
Passe-se, por isso, a analisá-lo, a partir dos elementos que compõem seu suporte fático.
Frise-se que, não obstante sejam próprios, eles formam um todo, um único fato, o qual, juridicizado, se transforma em fato jurídico recursal. E todos eles concentram-se num mesmo momento, o do ato impugnado, correspondente à decisão.
Diante disso, poder-se-ia concluir que o fato jurídico recursal é ela própria, numa correspondência plena, verdadeira equação. Trata-se, porém, de uma percepção equivocada do fenômeno: uma coisa é o fato jurídico da decisão; outra, a reintrodução desta no sistema como suporte de outro fato jurídico. A última, posto que coincida no tempo, é dependente da primeira. Isso será mais explicitado adiante.
Assim, coincidentes no tempo, os elementos do suporte fático em análise são entes distintos. Embora sejam, cada um a seu modo, necessários à formação do fato jurídico recursal, eles estabelecem-se numa ordem, de cariz, antes de tudo, ontológico. Há, portanto, antecedência de um a outro.
A cada um deles, dedicar-se-á um subitem próprio.
3.1. Decisão judicial: elemento base
Quando se alude à decisão judicial como elemento base do suporte fático do fato jurídico recursal, deve-se, primeiramente, definir o que se tem por decisão judicial.
Antes disso, é fácil entender o porquê de ela ser considerada o elemento fundante: dentre todos, ela é o fato, aquilo que acontece. Para que alguém tenha um direito é preciso que algo ocorra. Por ter nascido com vida, o ser humano adquire direito ao nome; por ter sido indevidamente demitido, o empregado faz jus a ser reintegrado; por ter sido derrotada, a parte tem direito de recorrer. Os demais elementos são como que agregados ao fato decisional.
Ocorre que a decisão não é, por óbvio, o único fato que perfaz no processo; sequer é o único fato relacionado ao Estado-juiz; nem mesmo é o único pronunciamento emitido por ele. Decisão já se diferencia, já é espécie de algo. Seu gênero próximo é o dos pronunciamentos: ou seja, atos pelos quais o juiz fala acerca de algo. E aqui a decisão se distingue, acima de tudo, do despacho. É fundamental, portanto, apontar qual é diferença específica entre ele e ela.
Por um critério distintivo entre o despacho e a decisão
Costuma-se utilizar o prejuízo como o critério distintivo que se procura. Aqui no Brasil, trata-se de lição que, consagrada pela pena de José Carlos Barbosa Moreira, se tornou quase inquestionável[1]. Nesse sentido, decisão seria o pronunciamento judicial que, não obstante o nome que receba, causa prejuízo a algum dos sujeitos envolvidos. A decisão, portanto, desequilibra a posição dos sujeitos processualmente envolvidos[2]. Com ela, ao menos em termos estritamente processuais, um sujeito ganha, e outro perde.
Não se trata, porém, de um entendimento analiticamente correto. Nem mesmo pode-se dizê-lo ser o pragmaticamente mais útil.
Observe-se o exemplo da sentença homologatória de transação. Nela, por óbvio, não há desequilíbrio entre as partes, pois o juiz não atribui razão a alguém (e, com isso, ausência de razão a outrem). Não soluciona lide. Limita-se, tão-somente, a, verificando a validade do acordo, torná-lo, para fins processuais (gerar indiscutibilidade), análogo a uma sentença condenatória.
Possivelmente, ao menos com base nos relatos teóricos dominantes na processualística, ninguém ousaria dizer que não tem natureza de decisão o ato homologatório acima mencionado.
Outro equívoco é dizer que os despachos não têm eficácias, como, principalmente, a declaratória e a mandamental. Ora, o viés linguístico deles serve para refutar tal ideia. Quando, por exemplo, analisando o teor contestação, determina-se a intimação do autor para falar sobre ela (apresentar “réplica”), declara-se a necessidade de intimação do autor e, como consequência, ordena-se sua realização.
Impede-se, portanto, buscar outro critério para a distinção, que não é um problema meramente analítico; tem repercussões práticas, já que, dentre outras coisas (como a própria questão da recorribilidade, art. 1.001, CPC), por força do art. 93, XIV, CRFB, o juiz pode delegar ao serventuário o poder de despachar. Por certo, não se pode delegar poder para homologar negócios jurídicos dos mais diversos.
É um critério adequado certamente gravita em torno da ideia de questão. Neste trabalho, o termo questão serve para designar tudo aquilo que pode ser levado à apreciação jurisdicional. Questão, portanto, é o que pode ser objeto da análise do juiz, objeto do processo, como querem alguns (Sydney Sanches, Fredie Didier Jr., dentre outros), ou, como se prefere, objeto do conhecimento. Neste sentido, registre-se, trata-se de noção muito mais ampla do que a ideia de ponto controvertido, como defende, por exemplo, Cândido Rangel Dinamarco[3].
Logo, existe questão, por exemplo, na transação levada à homologação judicial, uma vez que o juiz deve, reconhecendo a validade (e, sendo o caso, a eficácia) do acordo, homologar. Há questão, embora não se tenha controvérsia.
Já nos autênticos despachos, conquanto, por sua propriedade linguística, haja conhecimento de algo, o fim não é de resolução de questão. Não se analisa para solucionar, mas sim com a escopo de ordenar o feito, fazer com que a marcha procedimental prossiga. Daí se dizer que os despachos têm função ordenatória, no sentido de por (algo) em ordem. Não são atos meramente ordinatórios (ou seja, “ordinários”, “triviais” etc.), como os extraíveis do § 4° do art. 203. Tais atos, como os de juntada e vista, não são pronunciamentos, são atos propriamente do serventuário de justiça. Para eles, sequer há de se mencionar o aludido inciso XIV do art. 93, CRFB, visto que, neles, o serventuário não age por delegação, e sim por imputação originária.
Definido, desse modo, o critério para a identificação de uma decisão judicial, pode-se prosseguir. Algo a ser feito na próxima coluna.
Notas e Referências
[1] O autor destas linhas, inclusive, já aderiu a tal posicionamento em seus comentários ao art. 203 publicados pela Editora Almedina (GOUVEIA FILHO, Roberto P. Campos. Código de Processo Civil Comentado. Hélder Moroni Câmara (coord). São Paulo: Almedina, 2015).
[2] Sejam eles partes ou qualquer outro que tenha um interesse jurídico na causa, incluindo aí terceiros que sequer intervieram.
[3] Questão é substantivo que designa algo que está para ser analisado, jamais pode ser um mero ponto, pois este termo, tomado de empréstimo da Geometria euclidiana, refere-se ao simplíssimo: aquilo que há de mais basilar em qualquer ideia geométrica. Ponto é, assim, essencialmente unilateral, logo incompatível com o viés relacional do processo. Ademais, quando se quer aludir a algo disputado (a questão, no sentido dinamarquiano), fala-se em questão disputada. Termo esse empregado, por exemplo, para designar um tipo de método dialético próprio da Escolástica, mormente a de Santo Tomás de Aquino.
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