DO EXCESSO ESCUSÁVEL DE LEGÍTIMA DEFESA: Por um debate sóbrio acerca da polêmica proposta de inclusão do §2º no art. 23 do Código Penal

24/01/2020

A legítima defesa é tema deveras importante. É um dos poucos institutos jurídicos relacionados com o direito natural, afinal a autopreservação é uma necessidade que precede a socialização, a formação do Estado, portanto, as leis. Contudo, a definição conceitual, critérios e requisitos, limites é matéria que varia de acordo com a vontade legislativa e, por isso, sempre levantou e levantará polêmicas, visto que é tênue a linha divisória entre a legitimidade do agir em autodefesa e a ilegitimidade. O tema do excesso escusável de legítima defesa é uma das polêmicas que se encontra nesse contexto de debate.

No Brasil a legislação positiva adota uma solução restritiva acerca do tema excesso escusável de legítima defesa. O art. 23, parágrafo único, do Código Penal não faz qualquer diferenciação acerca dos motivos e circunstâncias do excesso de legítima defesa, preferindo, grosso modo, pela punição do excesso, seja ele doloso ou culposo. Silencia, entretanto, em casos limítrofes, quando o excesso da legítima defesa, e.g., decorresse de situações tais como medo ou violenta emoção.

Eis que o Projeto de Lei nº 882/2019, que tramitou na Câmara dos Deputados, dentre tantas proposições, resolveu enfrentar o tema, causando, como previsível, polêmicas, mormente a proposta de introdução do §2º no art. 23 do Código Penal, que procurou introduzir uma nova causa de perdão judicial e de diminuição da pena quando demonstrada a existência do excesso escusável da legítima defesa por medo, surpresa ou violenta emoção. Contudo, a proposição de introdução do §2º no art. 23 do Código Penal não durou muito, uma vez que eventos envolvendo supostos excessos de atividades policiais ainda quando da tramitação, fez com que o contexto político subjacente se alterasse, tendo a comissão parlamentar retirado do projeto de lei a proposta.[i] Aliás, enquanto é escrito o presente artigo, o projeto foi aprovado no Congresso Nacional e remetido à Presidência da República para fins de sanção ou veto.

Durante a tramitação houve críticas contundentes acerca da proposição. Na opinião pública e na crítica jurídica houve quem defendesse que se estaria procurando introduzir uma nova “excludente de ilicitude” – uma espécie, diziam os críticos, de “licença para matar”, pois o projeto estimularia o crescimento de autos de resistência, os quais seriam utilizados para mascarar execuções extrajudiciais. Também poderia ter efeitos perversos no âmbito de crimes de violência doméstica, com o risco de retorno da tese de legítima defesa da honra, de há muito tido como superada no sistema jurídico penal. Não bastasse, é igualmente forte a objeção de que seria um exotismo, que não encontraria respaldo em países democráticos.

Todavia, os argumentos e críticas seriam suficientes para justificar qualquer tentativa de debate ou mesmo de positivação de regras especiais acerca do excesso escusável de legítima defesa? Haveria legitimidade na proposta que objetivou introduzir o §2º do artigo 23 do Código Penal para o excesso escusável de legítima defesa ou realmente deveria padecer em face das críticas? São estas as perguntas que animam o presente estudo, mormente a necessidade de uma análise metódica e científica de forma a contribuir com o debate sereno que deve orientar a política criminal de um Estado Democrático de Direito.

 

CONTEXTO DA PROPOSTA DE ALTERAÇÃO LEGISLATIVA

Constava do P.L. nº 882/2019, alcunhado como Pacote de Lei Anticrime, a proposta de inclusão do §2º no artigo 23 do Código Penal com a seguinte redação: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção.” Em síntese, objetivou-se a introdução de uma causa de diminuição de pena e nova hipótese de perdão judicial quando demonstrado que o excesso na legítima defesa se deu por justificável medo, surpresa ou violenta emoção. A motivação exposta para o projeto, no entanto, é deveras suscinta. Basicamente argumentou-se que a alteração seria necessária pois o agente policial estaria sob permanente risco, pelo que era preciso dar-lhe proteção legal a fim de não tivesse receio de atuar, considerando que poderia ser alvo de ações penais intentadas em seu desfavor.

É necessário destacar que no mesmo projeto constava a não menos polêmica proposta de ampliação do conceito de legítima defesa, esta através da proposta de nova redação do artigo 25 do Código Penal com a inclusão de um parágrafo único com dois incisos. Pela proposta, considerar-se-á em legítima defesa o agente de segurança pública que: (a) em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previna injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; ou (b) quando previna agressão ou risco de agressão de vítima mantida refém durante a prática de crimes.[ii] Diferentemente da proposta de inclusão do §2º no artigo 23 do Código Penal, a proposta em comente obteve melhor sorte, visto que foi aprovada no Congresso Nacional e levada à sanção presidencial.

Destaque-se que a presente análise se limita a proposta de inclusão do §2º no artigo 23 Código Penal, não possuindo como objeto de estudo a inclusão do parágrafo único e seus dois incisos no artigo 25 do mesmo diploma legislativo. Entretanto, para não pairar dúvidas acerca da distinção dos objetos e das razões do presente, registre-se, en passant, a profunda discordância com a proposta de inclusão do parágrafo único, incisos I e II, uma vez que não se mostra razoável a antecipação de legítima defesa para prevenir uma agressão ou um risco de agressão,  pois é uma verdadeira presunção, isto é, um risco em hipótese, esvaziando o sentido de iminência de agressão e necessidade dos meios, o que caracteriza a legítima defesa em sentido estrito.

Reputamos os incisos I e II como flagrantemente inconstitucionais, na parte em que admitem uma desproporcional limitação de direitos fundamentais como a vida e a integridade física, ocasionando uma severa deficiência de proteção normativa dos bens jurídicos tutelados. Na forma como colocada, seria admissível que uma pessoa fosse executada antes mesmo que tentasse uma injusta agressão, já que ambos falam em prevenir ao invés de repelir, o que é um estímulo legal para execuções sumárias. Se positivado, teremos então uma regra subsidiando uma possível política estatal de extermínio, o que claramente é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Nem mesmo o apelo feito a ideia de uma pessoa mantida refém é capaz de afastar a inconstitucionalidade aqui divisada. Basta pensar que a conduta tomada no sentido de preservar a vida ou incolumidade física de um refém sob a mira de uma arma de fogo ou de um policial em um tiroteio é uma ação de quem está repelindo uma injusta agressão, ainda que iminente, sendo indiscutivelmente abarcável pelo caput do artigo 25 do Código Penal. O que os incisos I e II fizeram, e que passou incólume pelos bravos e desavisados críticos da proposta de inclusão do §2º no art. 23 Código Penal, foi ampliar a hipótese de excludente de ilicitude para situações em que não houve sequer a iminência de uma injusta agressão. Noutras palavras: a prevenção de uma agressão em face de refém ou agente em conflito armado significa, por palavras transversas, a mesma coisa que prevenção de um risco que ainda não existe, isto é, de quem ainda não é refém e de quem ainda não está em conflito armado, pois, se estivessem em tais situações, já não há nada que prevenir, pois a situação de risco, ainda que iminente, está em curso, pelo que sua reação será sempre de retorsão.

 

DAS CRÍTICAS FUNDADAS

Há críticas que reputamos fundadas quanto tentativa fracassada de introdução do §2º no artigo 23 do Código Penal. Em primeiro lugar, o projeto possuías exposição de motivos mal elaborada, denotando certa pressa ou mesmo falta de esmero científico na defesa das premissas da proposta. Esta pouca fundamentação sedia-se nas parcas e inadequadas razões elencadas como preponderantes para a necessidade de aprovação do projeto. É difícil entender qual seria a relevância de uma nova causa de perdão judicial para fins de enfrentamento da criminalidade. Decerto, não há qualquer lógica no desiderato proposto pelo projeto legislativo anticrime com a tutela específica para os casos de excesso escusável na legítima defesa. Em segundo lugar, houve uma indisfarçável ausência de discussão prévia do projeto com a sociedade civil e a comunidade jurídica, o que fez com que a proposta fosse impopular desde o início. Em verdade, a ausência de esmero no projeto em questão cultivou uma sensível preponderância negativa da crítica, o que levou a um cenário de muita desinformação e alarmismo, ambiente propício para o desvirtuamento das eventuais virtudes do projeto e para a sua derrocada política quando da sua tramitação.

 

DAS CRÍTICAS INFUNDADAS

Uma visão desapaixonada e técnica acerca do tema pode trazer novas luzes ao debate, em especial se considerado que muitas das críticas que foram formuladas em face da proposta do Projeto de Lei n.º 882/2019 são infundadas. Vejamo-las.

 

  • Da suposta promoção de autos de resistência fraudulentos

Diziam os críticos que a proposta de inclusão do §2º no artigo 23 do Código Penal poderia incrementar execuções sumárias, uma vez que maus agentes do estado buscariam justificar ações policiais abusivas com a lavratura de autos de resistência ideologicamente falsos, criando situações fictícias de excesso escusável de legítima defesa. Portanto, diante deste cenário, ainda que implicitamente, estar-se-ia estabelecendo uma política de “licença para matar”.

Inicialmente é necessário esclarecer o que seja auto de resistência. Este encontra previsão no art. 292, caput, do Código de Processo Penal que trata da eventual resistência no cumprimento de prisão em flagrante ou prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicia. Reza a disposição que quando necessário o uso de meios para defesa dos executores da ordem ou para vencer a resistência, será necessário a lavratura de auto assinado por duas testemunhas. Destaque-se que o auto de resistência sempre recebeu forte crítica da doutrina, pois: (a) possui origem autoritária, considerando que os autos de resistência advieram de uma praxe policial típico de períodos autoritários de nossa história recente, utilizados com meio de justificar arbitrariedades; (b) é utilizado, por vezes, como instrumento para encobrir execuções sumárias, mediante a simulação de conflito trasladado para linguagem formal no auto.

Feitos estes esclarecimentos, tem-se que não há como defender que a previsão do §2º gere promova a letalidade policial. Em verdade, não é a positivação de tutela específica para o excesso escusável de legítima defesa que redundará, por si só, no aumento da letalidade policial. Em verdade, há uma confusão entre o que seria excesso escusável na legítima defesa com a fraude em auto de resistência e a inexistência de excesso escusável. São todas situações diferentes e que não se confundem. Convém diferenciá-las:

  • Excesso escusável na legítima defesa: se dá quando em situação de comprovada injusta agressão, atual ou iminente, o agente defensor se excede por medo, surpresa ou violenta emoção no uso dos meios de reação. Portanto, não se trata, como muito se alardeia, de uma mera alegação do agente, mas de uma situação comprovada, tanto da injusta agressão, quanto da situação de medo, surpresa ou violenta emoção.
  • Fraude em auto de resistência: dá-se quando o agente, através da lavratura de auto de resistência, dolosamente inventa uma situação de legítima defesa ou excesso escusável, seja porque não existe uma agressão injusta, atual ou iminente, seja porque foi falseada situação de medo, surpresa ou violenta emoção. Nesse caso, claramente não há legítima defesa, quiçá excesso escusável de legítima defesa. Portanto, quando um agente policial mata uma pessoa e através do artifício do auto de resistência ideologicamente falso cria uma falsa situação de legítima defesa ou de um excesso escusável ele não é socorrido pela excludente do art. 23 do Código Penal, muito menos pela hipótese proposta do §2º. A rigor, não apenas reponde pelo homicídio como pode ter praticado fraude processual (art. 347, CP).
  • Inexistência de excesso escusável: é situação intermediária. Aqui não há fraude, pois não se falsifica fatos através de uma lavratura dolosa de situação de legítima defesa ou excesso escusável. Assim, pode existir a lavratura de auto de resistência, narrando um conflito e aquilo que se acredita ser uma reação legítima ou um excesso escusável, mas não retratando aquilo que efetivamente aconteceu. Todavia, diferentemente da fraude, não há dolo em falsear a verdade, há uma interpretação equivocada dos fatos. Aqui, não há crime de fraude processual, como também não incide a causa de exclusão de ilicitude do art. 23, caput, do Código Penal, muito menos o perdão judicial ou a causa de diminuição de pena previsto no §2º proposto pelo Projeto de Lei nº 882/19. Seria possível, no entanto, que o excesso inescusável tenha se dado por ato culposo, quando então o eventual crime deve prever a forma culposa do delito. Ademais, ainda que inescusável o excesso da legítima defesa, pode também incidir a circunstância atenuante do art. 65, III, “c”, do Código Penal.

Feitas estas distinções, percebe-se que o que realmente é estimulador da letalidade policial é a fraude em autos de resistência, que ocorre, infelizmente, com ou sem previsão legal do excesso escusável de legítima defesa, uma vez que o agente estatal criminoso pode tanto falsear uma situação inexistente de excesso escusável de legítima defesa, quanto a própria legítima defesa em si. Portanto, os problemas oriundos do uso de autos de resistência fraudulentos preexistem à proposta de positivação de uma tutela específica do excesso escusável de legítima de defesa. Fácil concluir, então, que não será a derrocada da proposta que fará desaparecer a prática criminosa de simulação de conflitos.

Não bastasse, pela lógica tem-se que o excesso escusável de legítima defesa tende a ser argumento menos utilizado em autos de resistência fraudulentos. Ora, aquele que frauda uma situação de conflito para justificar um crime tende a criar uma situação mais benéfica para si. Nesse diapasão, a legítima defesa real garante uma excludente de ilicitude, que afasta a responsabilidade penal, indiscutivelmente mais benéfica que uma tese de excesso escusável de legítima defesa, que, no máximo, lhe possibilita um provável perdão judicial, que, nos termos da proposta, depende da discricionaridade relativa judicial na fase da dosimetria da pena. Não é razoável pensar, portanto, que o agente criminoso fraudará o auto de resistência, criando uma situação de excesso escusável, se arriscando duplamente, não apenas na criação de uma prévia legítima defesa inexistente, ou, ainda, de uma ainda mais inexistente situação de excesso escusável.

A bem da verdade, a crítica não está bem contextualizada, visto que acaba por retirar do foco o real problema, criando um diversionismo que apenas favorece a impunidade de maus agentes estatais que se valem de falsos autos de resistência para praticar crimes. Antes de combater a tutela específica do excesso escusável da legítima defesa, é necessário debater a utilização de autos de resistência, pelo menos da forma como vem sendo feita hoje. Decerto, autos de resistência não devem ser tratados como prova de atuação legítima do agente, não devendo gozar de qualquer presunção de veracidade. Deve servir como precário elemento de informação, cuja finalidade é entender a dinâmica dos fatos segundo narrativa do agente executor, sendo, destarte, um mero ponto de partida para uma colheita de outros elementos de informação e provas, em especial para se verificar se aquela declaração é verdadeira ou falsa. Antes de centrar esforços contra a tutela específica do excesso escusável de legítima defesa, melhor é reunir forças para buscar o fortalecimento de instâncias correcionais independentes da atividade policial.

 

  • Da inexistência de relação entre a tutela do excesso escusável de legítima defesa e os crimes que envolvem violência doméstica.

Outra crítica feita a proposta de tutela penal especial do excesso escusável de legítima defesa é que poderia ter efeitos perversos no âmbito de crimes cometidos no contexto de violência doméstica, com o risco de retorno da tese de legítima defesa da honra, de há muito tido como superada no sistema jurídico penal.

Respeitando os entendimentos nesse sentido, mas não é possível entender a razão para tal comparação. A eventual inclusão do §2º no artigo 32 não fornece fundamento jurídico para a legítima defesa da honra.

Para a configuração do excesso de legítima defesa necessário, antes, que se esteja em uma situação de legítima defesa. Decerto, o excesso pressupõe uma reação legítima. Nos termos do artigo 25 do Código Penal essa reação deve ser sempre moderada e necessária para cessar a agressão. Uma ofensa a honra, efetivamente, não se qualifica como uma agressão suficiente para justificar, e.g., uma reação física violenta para defesa da honra, quiçá permite, como defendia antigamente, a necessidade de que fosse a “honra lavada com o sangue”. Assim, faltando, a priori, moderação e necessidade de reação, como poderia haver legítima defesa? Efetivamente não há como. Em continuação, não existindo legítima defesa prévia, como haveria excesso escusável em legítima defesa? Novamente: é impossível. Destarte, a questão é um falso dilema.

 

  • Da tutela específica do excesso escusável de legítima defesa no direito comparado

Diversamente do que se costuma alardear, a proposta de inclusão do §2º no art. 25 do Código Penal não é exotismo, visto que outros países, tão ou mais democráticos que o Brasil, trazem previsões semelhantes.

A República Federal da Alemanha, nos parágrafos 1º e 2º do artigo 32 do seu Código Penal (STgB – Strafgesetzbuch - §32, 2) afirma que aquele que comete um ato requerido por autodefesa não é ilegal, considerando como autodefesa aquela necessária para evitar um ataque ilícito atual de si ou de outrem. Todavia, logo em seu art. 33 (STgB, §33) assegura que se o ofensor exceder os limites de autodefesa devido a confusão, medo ou terror, ele não será punido. É disposição muito semelhante àquela proposta para modificação do ordenamento jurídico brasileiro.[iii]

A Lei Orgânica 10/1995 do Reino Espanhol estabelece no seu art. 20 que estão isentos de responsabilidade criminal aqueles que atuem em defesa pessoal ou de direitos, próprios ou de terceiros, desde que exista uma injusta agressão, a necessidade racional dos meios utilizados para impedi-la ou repeli-la e a falta de provocação suficiente do defensor. Todavia, o parágrafo 6º do referido dispositivo deixa claro que também exclui o crime a ação daquele que age impelido de medo insuperável, estabelecendo, portanto, ainda que por outra técnica legislativa, uma excludente em razão do excesso oriundo do medo.[iv]

A República da Itália regula a legítima defesa no art. 52 do seu Código Penal.[v] Assim, considera-se em legítima defesa aquele que comete o fato por se ver obrigado pela necessidade de defender um direito próprio ou de terceiro em face de um perigo atual ou uma injusta agressão, desde que a defesa seja proporcional à ofensa.[vi] Por sua vez, o artigo 55 estabelece que quando no exercício da legítima defesa prevista no art. 52 o agente, culposamente, se excede nos limites estabelecidos pela lei, pela ordem da autoridade ou pela imposição da necessidade, se aplicam as disposições relativas aos delitos culposos se for punido como tal – o se assemelha a previsão do art. 23, p.u., do Código Penal brasileiro. Contudo, §2º do art. 55 do Código Penal Italiano afirma que quando a legítima defesa é exercida na forma dos §§ 2º, 3º e 4º do art. 52, será excluída a punição quando o agente obra em estado de grave perturbação da situação que derivou do perigo do ato, o que muito se assemelha com a proposto de inclusão do §2º no art. 23 do Código Penal.[vii]

A República Portuguesa, por sua vez, estabelece no art. 32 do Código Penal português que constitui legítima defesa o fato que é praticado como meio necessário para repelir a agressão atual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiros. Já no art. 33, §1º, afirma que se se houver excesso o fato é punível, mas a pena pode ser atuada de forma sensível. Entretanto, é no §2 do art. 33 do Código Penal que deixa claro que se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto não censuráveis, o agente não será punido. Portanto, tal qual a proposta de inclusão do §2º no art. 23 do Código Penal, Portugal trabalha com a hipótese de atenuação de pena no caso de excesso de legítima defesa, como também da própria exclusão da pena daquele que age situação de excesso justificável.

 

DA LEGITIMIDADE POLÍTICO-CRIMINAL DA TUTELA DO EXCESSO ESCUSÁVEL DA LEGÍTIMA DEFESA

A despeito de toda a polêmica que foi travada em face da tutela penal do excesso escusável da legítima defesa, em verdade, podemos concluir que nada obstaria a inclusão do §2º no art. 23 do Código Penal. As principais objeções feitas, respeitando quem pensa de forma diversa, ou não estão bem colocadas ou simplesmente são inadequadas, visto que se baseiam em dilemas que não existem. Registre-se que até mesmo a alcunha dada ao tema pelos críticos está equivocada, visto que muitos afirmavam que se tratava de nova hipótese de “excludente de ilicitude”, quando a proposta do §2º do artigo 23 do Código Penal nada tem a ver com uma hipótese excludente de ilicitude, senão trata-se da possibilidade de concessão de um perdão judicial, causa extintiva da punibilidade nos termos do art. 107, IX, do Código Penal, e de nova causa geral de diminuição de pena, que atuaria na terceira fase da dosimetria de pena nos termos do art. 68, caput, do Código Penal.

A confusão, a bem da verdade, criou um diversionismo no debate público e jurídico, ao menos no que se refere a necessidade de enfrentamento dos verdadeiros problemas que existiam, registre-se, Projeto de Lei n.º 882/2019. Veja-se que na parte referente a nova tutela da legítima defesa, conseguiu-se politicamente impedir a inclusão do §2º do artigo 23 do Código Penal – o que levou a comemorações de muitos ‘críticos’ daquilo que seria uma “excludente de ilicitude” que seria uma “licença para matar”. Contudo, restou intacto do projeto original a inclusão do parágrafo único e seus dois incisos no artigo 25 do Código Penal, que, como rapidamente mencionado alhures, é um dos verdadeiros problemas do projeto. Infelizmente, o debate sério da política criminal sofreu das mesmas mazelas do debate político partidário, este extremado, orientado pela paixão e ódio, ao invés do racionalismo e pragmatismo que se deveria esperar nestes temas.  

Até hoje, confesse-se, não é possível entender qual a razão para a ferocidade das críticas acerca do tema. Na praxe forense, sabe-se que em muitas oportunidades o excesso no exercício da legítima defesa acaba sendo reconhecido pelos juízes na fase de pronúncia, que acabam admitindo a absolvição sumária por entender que os meios foram moderados, ou pelo próprio conselho de sentença quando. Logo, o que faz o artigo 23, §2º, do Código Penal é tão somente regular situação já existente e nada mais. A rigor, a proposta procurou melhor definição ao instituto em questão. Pois a legítima defesa é caracterizada quando efetivamente moderados os meios necessários para repelir a injusta agressão, sendo que no caso do excesso escusável da legítima defesa há verdadeira situação de inexigibilidade de conduta diversa, que, em razão da ausência de tratamento, acaba sendo confundida com a legítima defesa própria.

Decerto, há uma linha tênue entre uso moderado dos meios e excesso na legítima defesa, não raro se buscando punições pelo excesso advindo por medo ou pela emoção violenta quando das condutas defensivas. Assim, e.g., alguém que utilizando-se de uma arma de fogo repele injusta agressão mediante uso de uma arma branca pode ser processado criminalmente sob o apressado argumento de que a reação foi excessiva, portanto, imoderada, já que o meio utilizado não seria proporcional. No entanto, a prática ensina que em situações desta não há como se exigir do agente o recurso a qualquer outro meio se aquele era o único possível e moderado, uma vez que o excesso, naquele caso, é absolutamente escusável. Logo, essa seria uma situação de excesso que estaria abarcado pela novatio legis.

Não bastasse, a tutela prevista para o excesso escusável de legítima defesa receberia tratamento mais rigoroso aquele dispensado à excludente de culpabilidade da legítima defesa putativa. Com efeito, não há polêmica quando se reconhece que é possível isentar de pena o agente que, por erro escusável, acredita que está agindo acobertado por excludente de ilicitude. Ora, na legítima defesa putativa sequer há uma injusta agressão atual e eminente, mas por estar o agente em estado erro justificado acerca de norma permissiva penal, incide a excludente de culpabilidade, excluindo o crime. Qual a razão, então, para não se adotar lógica semelhante em situação muito mais justificada do que a legitima defesa putativa? Decerto, nenhuma.

 

CONCLUSÕES

As críticas dirigidas a tentativa de introdução do §2º do artigo 23 do Código Penal não são razoáveis. A rigor, não há positivação de nenhuma espécie de “licença para matar” com o dispositivo em comento, visto que não há qualquer comprovação da relação entre a introdução do dispositivo com o aumento de eventuais autos de resistência fraudulentos. A polêmica em questão é vazia e apenas retira do foco do debate acerca dos temas realmente relevantes e polêmicos do P.L. nº 882/2019, como a introdução do p.u. e seus incisos no art. 25 do Código Penal, que, diferentemente do §2º, é deveras problemático.

Não há qualquer possibilidade de que eventual positivação do §2º do artigo 23 do Código Penal subsidie a já superada teoria da legítima defesa da honra, tratando de situações diferentes. Outras legislações penais de países democráticos possuem previsões semelhantes à proposta legislativa brasileira.

É legítimo do ponto de vista político criminal e não representa qualquer inconstitucionalidade a eventual previsão de tutela penal específica para os casos de excesso escusável de legítima defesa na forma do §2º do art. 23 do Código Penal. A rigor, vem apenas secundar o que já se observa na praxe forense, considerando que o excesso escusável de legítima defesa acaba sendo reconhecido quando da valoração do elemento normativo da moderação dos meios, ofertando uma tutela mais racional e objetiva ao tema. Não bastasse, o Código Penal atual oferece solução ainda mais benéfica para casos de legitima defesa putativa (erro sobre elementos de justificação), em que sequer legítima defesa real existe, pelo que não se entende a razão de tamanha polêmica instada em face da proposta de inclusão do dispositivo em debate.

[i]Nesse sentido: CAMPOS, João Pedroso. Grupo na Câmara retira ‘excludente de ilicitude’ do pacote anticrime. Disponível em: < https://veja.abril.com.br/ politica/grupo-na-camara-retira-excludente-de-ilicitude-do-pacote-anticrime/> Acesso em: 30 set. 2019. Contudo, o tema de fundo, independente da sua sobrevivência política, continua possuindo interesse acadêmico e científico.

[ii] A exposição de motivos do PL 882/19 acerca dos pontos citados acima afirma: “(...) A realidade brasileira atual, principalmente em zonas conflagradas, mostra-se totalmente diversa da existente quando da promulgação do Código Penal, em 1940. O agente policial está permanentemente sob risco, inclusive porque, não raramente, atua em comunidades sem urbanização, com vias estreitas e residências contíguas. É comum, também, que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes. Por tais motivos, é preciso dar-lhe proteção legal, a fim de que não tenhamos uma legião de intimidados pelo receio e dificuldades de submeter-se a julgamento em Juízo ou no Tribunal do Júri, que acabem se tornando descrentes e indiferentes, meros burocratas da segurança pública. As alterações propostas, portanto, visam dar equilíbrio às relações entre o combate à criminalidade e à cidadania. No art. 23, que trata da exclusão de ilicitude, inclui-se § 2º, que faculta ao juiz reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção. É dizer, as circunstâncias em que o ato foi praticado serão avaliadas e, se for o caso, o acusado ficará isento de pena. (...)”

[iii] Strafgesetzbuch: “(...) § 32 Notwehr (1) Wer eine Tat begeht, die durch Notwehr geboten ist, handelt nicht rechtswidrig.  (2) Notwehr ist die Verteidigung, die erforderlich ist, um einen gegenwärtigen rechtswidrigen Angriff von sich oder einem anderen abzuwenden. § 33 Überschreitung der Notwehr Überschreitet der Täter die Grenzen der Notwehr aus Verwirrung, Furcht oder Schrecken, so wird er nicht bestraft. (...)”  

[iv] Ley Orgánica 10/1995, Artículo 20. Están exentos de responsabilidad criminal: (...) 4.º El que obre en defensa de la persona o derechos propios o ajenos, siempre que concurran los requisitos siguientes: Primero. Agresión ilegítima. En caso de defensa de los bienes se reputará agresión ilegítima el ataque a los mismos que constituya delito y los ponga en grave peligro de deterioro o pérdida inminentes. En caso de defensa de la morada o sus dependencias, se reputará agresión ilegítima la entrada indebida en aquélla o éstas. Segundo. Necesidad racional del medio empleado para impedirla o repelerla. Tercero. Falta de provocación suficiente por parte del defensor. (...) 6.º El que obre impulsado por miedo insuperable.

[v] Art. 52. Difesa legittima. Non è punibile chi ha commesso il fatto, per esservi stato costretto dalla necessità di difendere un diritto proprio od altrui contro il pericolo attuale di una offesa ingiusta, sempre che la difesa sia proporzionata all'offesa.

[vi] Diferentemente do Direito brasileiro, na Itália legitima defesa e estado de necessidade são tratados em um mesmo dispositivo com a rubrica de defesa legítima (Difesa legittima).

[vii] Art. 55. Eccesso colposo. Quando, nel commettere alcuno dei fatti preveduti dagli articoli 51, 52, 53 e 54, si eccedono colposamente i limiti stabiliti dalla legge o dall'ordine dell'autorità ovvero imposti dalla necessità, si applicano le disposizioni concernenti i delitti colposi, se il fatto è preveduto dalla legge come delitto colposo. Nei casi di cui ai commi secondo, terzo e quarto dell'articolo 52, la punibilità è esclusa se chi ha commesso il fatto per la salvaguardia della propria o altrui incolumità ha agito nelle condizioni di cui all'articolo 61, primo comma, n. 5) ovvero in stato di grave turbamento, derivante dalla situazione di pericolo in atto (1).

 

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