Por Felipe Halfen Noll - 13/02/2016
A análise de caso trata do recurso de agravo de Execução Penal aviado pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina contra a decisão em primeiro grau, da qual o juízo da Vara Criminal da Comarca do município de Bigaçu concedeu autorização ao requerente para frequentar aulas do curso de Nutrição no Instituto de Ensino Superior da Grande Florianópolis, durante período noturno, mediante monitoramento eletrônico.
A Lei nº 7.210 (11/07/1984), ou Lei da Execução Penal, prevê esse benefício ao apenado que esteja cumprindo pena em regime semi-aberto, apresente um comportamento adequado e parcela da pena total cumprida, como disposto nos artigos 122, II e 123, I, II, III e também no art. 35, parágrafo 2º do Código Penal. Por ser o réu condenado a pena superior a 12 anos em regime fechado por narcotráfico e por não ter observados os pré-requisitos à concessão do benefício (não tendo decorrido o período necessário à progressão de regime, principalmente), o recurso foi reconhecido e provido.
Não se questiona, em se tratando de lei, a coerência da ação em questão. O benefício tem suas restrições de acordo com a legislação e, seguindo a lógica do regime progressivo de cumprimento da pena, faz sentido que o regime semi-aberto seja pré-requisito para a obtenção dessa liberdade condicionada. O que se questiona é a necessidade de se movimentar o judiciário para revogar um benefício concedido em primeira instância a um apenado, que é cidadão, sendo que a chance de cursar o ensino superior teria o potencial de contribuir com o fim da reintegração social do indivíduo.
Em contrariedade à essa perspectiva, que parte de um tratamento humanizado em relação ao apenado e principalmente de uma participação da sociedade no processo de retomada do diálogo com o indivíduo privado de liberdade, a decisão em segunda instância vem a reformar uma decisão benéfica em relação ao réu para agravar o cumprimento de sua pena, culminando em um regime de pena sem maior finalidade que a de excluir o indivíduo e de lhe impor a punição do Estado numa óptica retributiva, mesmo que provisoriamente. Questionável é a eficiência do cárcere, da pura privação de liberdade e neutralização do apenado ao cumprimento do propósito de ressocialização atribuído à pena.
Foi elemento constante da decisão em primeiro grau que, não tendo a unidade prisional de Bigaçu (unidade detentora da custódia do requerente) as condições necessárias ao provimento do estudo requerido pelo detento, seria obrigação do Estado ofertar a infraestrutura necessária aos presídios para que tivessem condições de efetuar suas atribuições determinadas na própria Constituição Federal e Lei das Execuções Penais, que seria, no caso, a garantia à assistência e acesso à educação.
O direito à educação, assegurado em nossa constituição enquanto não apenas direito, mas garantia social, não prevê restrições quanto a sua abrangência. O apenado, enquanto cidadão condicionado ao cárcere, deve ter acesso ao estudo. A Lei da Execução Penal (Lei n. 7.210 de 11/07/1984) prevê a assistência educacional em seu art. 41, VII e a possibilidade de saídas temporárias do estabelecimento para frequentar cursos profissionalizantes e ensino médio e superior no art. 122, II.
Sendo o estudo um direito subjetivo do apenado, cabe ao Estado o dever de proporcionar condições a ele. É inquestionável a importância do estudo na formação do caráter do indivíduo, pois acrescenta em termos de cultura e abre novos caminhos para o mundo do trabalho e consequente ressocialização, finalidade essa precípua da imposição da pena. Também é importante ressaltar a busca do requerente em afastar-se das condutas ilegais que o levaram ao cárcere. Se o apenado entrou com o requerimento do benefício visando o estudo como saída da situação presente, não caberia ao juiz da Execução aplicar a lei de forma a embaraçar seu propósito.
Fundamento para a decisão em primeiro grau também foi a gravidade do crime praticado, que não partiu de violência ou grave ameaça. A pena severa imposta a um crime de tráfico de drogas é reflexo da política brasileira de “guerra ao tráfico”, evidenciada no cotidiano e nos próprios sensos de população carcerária. Tomando por exemplo, em 2014, segundo pesquisas, cerca de 27% dos 607.731 presos brasileiros estavam cumprindo pena por crime de tráfico, que é crime considerado como “equiparado a hediondo” na determinação do regime inicial de cumprimento da pena e de progressão de regime pela lei brasileira.
Interessante ressaltar, a fim de evidenciar o exagero punitivo com que se trata o crime de tráfico de drogas, que o crime de tráfico de entorpecentes está situado como crime “equiparado a hediondo” ao lado do crime de tortura e terrorismo. Essa equiparação é polêmica, pois o que leva a maioria dos traficantes a praticar o ato ilícito é a promessa de riqueza, melhores condições e a busca pela vida de consumo, idealizada pela mídia e pelo próprio sistema capitalista.
Pelo mesmo senso de 2014, levantamos as estatísticas pertinentes: 27% dos presos em instituições carcerárias brasileiras estão cumprindo pena por crime de tráfico e 21% cumprem pena por roubo. Os dados sugerem a predominância de crimes capitais, praticada por uma massa de indivíduos sem acesso à educação (53% dos apenados sem Ensino Fundamental Completo), composta em por 31% dos presos com idade entre 18 e 24 anos e sua maioria avassaladora de 67% negros. Os dados trazem, no contexto brasileiro, a face dos desprivilegiados como a face do criminoso.
A tentativa de remediar o crime por meio do cárcere e a forma dura de lidar com os crimes capitais, imputando punição vazia ao invés de medidas socioeducativas, contribuem para o cenário desfavorável que as estatísticas destacam. Porém, mais que a forma dura de lidar com o crime já praticado, devemos questionar a falha estatal em garantir que a população brasileira tenha saciadas suas necessidades mais fundamentais, seja garantia de educação ou de qualquer outro aspecto fundamental à vida digna.
Voltando ao nosso caso concreto, podemos evidenciar, na decisão unânime em aceitar o recurso agravante proposto pelo Ministério Público, um desinteresse das autoridades judiciárias de dar chance à ética provida pela educação na tentativa de formar um indivíduo apto a se inserir e prosperar no mercado de trabalho e na sociedade. A vontade pura de aplicação da pena, na defasada perspectiva do “indivíduo em débito com a ordem”, partindo da exclusão como forma de disciplinar, imperou sobre as apostas de reinserção social por via da educação. Mais uma vez a lei foi severa e legitimadora da realidade social brasileira.
Fonte: Infopen, jun/2014; Senasp, dez/2013; IBGE, 2014
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. Felipe Halfen Noll é acadêmico do Curso de Direito da UNIJUÍ-RS e bolsista voluntário no projeto de pesquisa “Direito e Economia às Vestes do Constitucionalismo Garantista”, coordenado pelo Prof. Dr. Alfredo Copetti Neto. . .
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