Coluna Defensoria e Sistema de Justiça / Coordenador Jorge Bheron
O Estatuto da Criança e do Adolescente compõe um microssistema próprio com intuito de oferecer proteção integral a pessoas vulneráveis que somado às disposições constitucionais implica em maior amparo legal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente regulamenta os direitos e deveres das crianças e adolescentes e tem como diretrizes básicas os princípios da proteção integral, da prioridade absoluta e do melhor interesse de crianças e adolescentes. Em seu art. 7º, o ECA dispõe que “a criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.
A regulamentação do trabalho do menor no Brasil tem como primeira limitação a idade, sendo permitida sua realização, seguindo as diretrizes traçadas pela Convenção 138 e Recomendação n. 146, ambas da OIT. Assim, para os menores de 16 anos o trabalho é proibido e para os adolescentes acima de 14 anos, o trabalho é protegido.
A Constituição Federal em seu artigo 7º, XXXIII veda qualquer espécie de trabalho aos menores de 14 anos, permitindo acima dessa idade o trabalho na condição de aprendiz.
A CLT, em seus art. 402 a 441, veda a celebração de contrato de trabalho aos menores de 16 (dezesseis) anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 (quatorze) anos. Aos adolescentes acima de 16 anos é lícito o trabalho, observando-se as condições, tipo de trabalho, turno em que é exercido de modo a preservar-lhes o desenvolvimento físico e mental e a compatibilidade com horário dedicado aos estudos, sendo vedado o trabalho noturno, nocivo, insalubre, penoso e prejudicial à moralidade e os realizados em lugares e horários que inviabilizem ou dificultem a frequência escolar.
Um dos direitos tutelados pelo ECA é o da profissionalização e a proteção ao trabalho exercido pelos adolescentes, entre 16 e 18 anos e, na condição de aprendiz, de 14 a 18 anos, nos termos do art. 60 usque 61 do ECA e art. 7º, XXXIII, da CF.
Em contrapartida, o trabalho infantil é definido pelo Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador[1] como sendo a atividade econômica e/ou de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remunerada ou não, realizada por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos, independentemente da sua condição ocupacional.
Dessa forma, compreende-se como trabalho infantil, o trabalho realizado por crianças e adolescentes que estão abaixo da idade mínima para a entrada no mercado de trabalho, segundo a legislação em vigor no país. Sendo assim, considera-se trabalho infantil a prática de qualquer atividade desempenhada por criança ou adolescente que não tenha por intuito um fim educativo.
Conforme sintetiza Gustavo Cives [2]:“O objetivo de tais normas é evitar que a adolescência seja utilizada como uma forma de obter, por parte dos empregadores, mão de obra mais barata e com vigor”.
O art. 227 da Constituição Federal de 1988 assegura à criança e ao adolescente, por intermédio da família, sociedade e do Estado, o acesso à educação, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Por aprendizagem considera-se a formação técnico-profisional ministrada segundo as diretrizes e base da legislação da educação. A profissionalização dos adolescentes, por sua vez está assegurada no art. 62 do ECA:
Art. 62.Considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor.
Art. 63.A formação técnico-profissional obedecerá aos seguintes princípios: :
I- garantia de acesso e freqüência obrigatória ao ensino regular;
II- atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente;
III- horário especial para o exercício das atividades.
O art. 403 da CLT prevê a possibilidade do menor na modalidade de aprendiz, com remuneração, dos 14 a 24 anos incompletos e que estiverem cursando o ensino médio.
Dito isso conclui-se que a liberação para o trabalho, tanto na condição de aprendiz, aos maiores de 14 anos, como fora dela, aos maiores de 16 anos, é permitida, desde que preservado o desenvolvimento saudável, a integridade física e mental dos adolescentes e desde que não prejudique sua rotina diária, o rendimento, a frequência escolar, o repouso, o lazer e não imponha qualquer espécie de risco cognitivo-emocional aos indivíduos ainda em desenvolvimento, sendo vedado o trabalho noturno, perigoso ou insalubre.
Em relação à proteção do trabalho do menor e a vedação do trabalho infantil, o tema não impõe, via de regra, muitos questionamentos. O debate ganha corpo quando se trata do desempenho artístico de crianças e adolescentes que tem sido permitido por parte da doutrina e da jurisprudência.
A doutrina tem se dividido sobre a possibilidade do trabalho infantil artístico ou infanto-juvenil artístico – TIA, isto é, o desempenho de atividade economicamente explorada exercida com a participação de crianças e adolescentes na televisão, no cinema, no circo, no rádio, redes sociais, como ator, cantor, apresentador, músico, dançarino, modelo.
Para a caracterização da exploração comercial da imagem do menor feita por terceiro prescinde de compensação econômica à criança e ao adolescente, mesmo que apenas ocorra em troca de brindes ou regalos, porque, muitas vezes, os lucros destinam-se ao terceiro que explora a imagem da criança ou adolescente.
O trabalho artístico tem sido permitido como expressão da arte em todas as suas modalidades, lúdicas, de entretenimento, de cultura, de lazer, sendo, portanto, relativizada a vedação do trabalho pelo interesse e bem-estar das crianças e dos adolescentes, por se entender que expressões e manifestações artísticas são essenciais ao desenvolvimento biopsicossocial e à saúde mental e física dos indivíduos.
O art. 8º, item I, da Convenção 138, da OIT ratificada pelo Brasil, em 2002, que detém força vinculante na ordem jurídica interna (Convenção de Viena) e natureza de norma constitucional, admite, em situações excepcionais, individuais, específicas, a participação de crianças e adolescentes em atividades artísticas e em determinadas produções, mediante autorização judicial do Juízo da Infância e Juventude:
Art. 8º.A autoridade competente poderá conceder, mediante prévia consulta às organizações interessadas de empregadores e de trabalhadores, quando tais organizações existirem, por meio de permissões individuais, exceções à proibição de ser admitido ao emprego ou de trabalhar, que prevê o artigo 2 da presente Convenção, no caso de finalidades tais como as de participar em representações artísticas
Admite-se, pois, a possibilidade de exercício de trabalho artístico, para menores de 16 anos, na hipótese do art. 8°, item I, da Convenção n. 138 da OIT, desde que presentes os seguintes requisitos:
- excepcionalidade. Neste caso, para se apurar essa excepcionalidade é necessário que haja a imprescindibilidade de contratação de uma criança ou adolescente menor de 16 anos, de modo que aquela específica atividade artística não possa, objetivamente, ser representada por maior de 16 anos. Ademais, deve se analisar se a função artística pode proporcionar o desenvolvimento do potencial artístico do infante;
- situações individuais e específicas;
- ato de autoridade competente (autoridade judiciária);
- existência de uma licença ou alvará individual;
- o labor deve envolver manifestação propriamente artística;
- a licença ou alvará deverá definir em que atividades poderá haver labor, e quais as condições especiais de trabalho. E em razão dos princípios da proteção integral e prioridade absoluta, são condições especiais que devem ser observadas, em qualquer alvará judicial que autorize o exercício de trabalho artístico para menores 16 anos, sob pena de invalidade:
- prévia autorização dos representantes legais e concessão de alvará judicial, para cada novo trabalho realizado;
- impossibilidade de trabalho em caso de prejuízos ao desenvolvimento biopsicossocial da criança e do adolescente, devidamente aferido em laudo médico-psicológico;
- matrícula, frequência e bom aproveitamento escolares, além de reforço escolar, em caso de mau desempenho;
- compatibilidade entre o horário escolar e a atividade de trabalho, resguardados os direitos de repouso, lazer e alimentação, dentre outros;
- assistência médica, odontológica e psicológica;
- proibição de labor a menores de 18 anos em situação e locais perigosos, noturnos, insalubres, penosos, prejudiciais à moralidade e em lugares e horários que inviabilizem ou dificultem a frequência à escola;
- depósito, em caderneta de poupança, de percentual mínimo incidente sobre a remuneração devida;
- jornada e carga horária semanal máximas de trabalho, intervalos de descanso e alimentação;
- acompanhamento do responsável legal do artista, ou quem o represente, durante a prestação do serviço;
- garantia dos direitos trabalhistas e previdenciários quando presentes, na relação de trabalho, os requisitos previstos em lei (arts. 2° e 3° da CLT).
Por sua vez, a Constituição Federal, em seu art. 5º, IX, dispõe que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
A leitura conjugada dos arts. 5º, IX, e art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal, a luz da hermenêutica constitucional, autoriza a concessão excepcional, individual, ponderada e protegida à regra proibitiva do trabalho infantil, para permitir a prática laboral de crianças e adolescentes, nos casos em que for estritamente necessária, mediante concessão de alvará judicial que avaliará a necessidade da ordem jurídica do trabalho para menores de 16 anos de idade, nos casos de trabalho infantil artístico, inclusive, por menores de 14 anos, desde que observados critérios para a proteção das crianças e adolescentes.
Para a validade do trabalho artístico de crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos, na forma do item I do art. 8 da Convenção n. 138 da OIT, é imprescindível, portanto, a concessão de alvará judicial, onde se fixem as garantias de um trabalho protegido e consentâneo com a proteção integral.
Para a autorização da participação de crianças e adolescentes em atividades artísticas, a autoridade judiciária deve observar os princípios da proteção integral e demais previstos na CF e no ECA; a limitação com o número de horas da duração do emprego ou trabalho; as peculiaridades locais; a existência de instalações adequadas; o tipo de frequência habitual ao local; a adequação do ambiente a eventual participação ou frequência de crianças e adolescentes e a natureza do espetáculo, nos termos do art. 406 da CLT[3]:
Art. 406- O Juiz de Menores poderá autorizar ao menor o trabalho a que se referem as letras a e b do § 3º do art. 405: (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
I- desde que a representação tenha fim educativo ou a peça de que participe não possa ser prejudicial à sua formação moral; (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967)
II- desde que se certifique ser a ocupação do menor indispensável à própria subsistência ou à de seus pais, avós ou irmãos e não advir nenhum prejuízo à sua formação moral. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 229, de 28.2.1967).
O art. 149, II do ECA, também dá margem à interpretação favorável à autorização para participação de crianças e adolescentes em espetáculos públicos ao dispor sobre a competência da autoridade judiciária para disciplinar, mediante portaria ou alvará, a entrada, a permanência e participação de criança e adolescente, inclusive, desacompanhada dos pais ou responsável, caso necessário, em espetáculos públicos e seus ensaios, certames de beleza, dentre outros.
“Art. 149. Compete à autoridade judiciária disciplinar, através de portaria, ou autorizar, mediante alvará:
(…)
II – a participação de criança e adolescente em:
a) espetáculos públicos e seus ensaios;
b) certames de beleza.
§1º. Para os fins do disposto neste artigo, a autoridade judiciária levará em conta, dentre outros fatores os princípios desta lei;
b) as peculiaridades locais;
c) a existência de instalações adequadas;
d) o tipo de frequência habitual ao local;
e) a adequação do ambiente a eventual participação ou frequência de crianças e adolescentes;
f) a natureza do espetáculo.
§2º. As medidas adotadas na conformidade deste artigo deverão ser fundamentadas, caso a caso, vedadas as determinações de caráter geral”.
Em sentido contrário, não configura, em tese, trabalho infanto-juvenil, as atividades com fins pedagógicos ou recreativos, que não envolvem finalidade econômica ou comercial e que visem o desenvolvimento pessoal e social do ser em formação.
Em suma, a despeito de inexistir legislação específica sobre a participação de crianças e adolescentes em canais de redes sociais parece-nos acertado concluir pela similitude com a regulamentação dada às atividades artísticas e culturais, consoante Convenção 138 da OIT, desde que a participação não configure exploração, veiculação inadequada de imagens, a violação da intimidade de crianças e adolescentes. Ademais, esses canais estão sujeitos à fiscalização constante e a sanções, em caso de conteúdo impróprio ou inadequado e os violadores poderão responder civil, administrativamente e penalmente por seus atos.
É cada vez mais comum a presença de crianças e adolescente no meio artístico. O trabalho artístico infantil, ainda que lícito, se não realizado com as devidas cautelas e precauções, sob a devida supervisão dos pais, responsáveis e autoridades, pode comprometer o desenvolvimento biopsicossociológico da criança, em razão de seu desenvolvimento mental incompleto e imaturidade.
De fato, o trabalho precoce pode acelerar o crescimento, o amadurecimento, prejudicar a infância saudável, o tempo destinado ao estudo, ao descanso e a convivência familiar e social e acarretar traumas. São atividades, portanto, que devem ser acompanhadas pelos pais, responsáveis, por toda sociedade e pelo Estado para efetiva proteção da criança e do adolescente.
Todavia, se realizado em proveito da criança e do adolescente, respeitadas suas especificidades, necessidades e interesses, o exercício do trabalho artístico pode ser um instrumento de inclusão, de garantia à educação e de emancipação para a construção de cidadania plena.
A proteção não deve importar em vedação quando o desempenho desse tipo de atividade não importar em prejuízo, dano ou risco a saúde física, mental e aos interesses da criança e do adolescente. Isso porque as expressões artísticas, culturais, recreativas, educativas, informativa são essenciais ao desenvolvimento humano e à saúde mental de crianças e adolescentes.
Proteger é preciso, mas impedir a participação artística, quando respeitados todos os critérios, os interesses das crianças e dos adolescentes não nos parece representar o real significado da proteção integral, nos termos do art. 3º do ECA, que assegura às crianças e aos adolescentes todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Notas e Referências
[1] Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador. Disponível em https://www.gov.br/mdh/pt-b . Acesso em 20/06/2020.
[2]Seabra, Gustavo Cieves. Manual de direito da criança e do adolescente. Belo Horizonte: CEI, 2020.
[3]Em decisão majoritária, o Supremo Tribunal Federal (STF) referendou medida liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio para suspender a eficácia de normas conjuntas de órgãos do Judiciário e do Ministério Público nos Estados de São Paulo e de Mato Grosso que dispõem sobre a competência da Justiça do Trabalho para conceder autorização de trabalho artístico para crianças e adolescentes. Para a maioria dos ministros, a matéria é de competência da Justiça comum. Os ministros analisaram medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5326, ajuizada pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Segundo a entidade, as normas questionadas atribuíram indevidamente nova competência à Justiça do Trabalho, em detrimento da Justiça comum estadual. Trata-se da competência para processar e julgar “causas que tenham como fulcro a autorização para trabalho de crianças e adolescentes, inclusive artístico”. Disponivel em http://www.stf.jus.br. Acesso em 20/06/2020.
[4] Manual de Atuação do Ministério Público na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil https://www.cnmp.mp.br. Acesso em 20/06/020
[5] Convenção 130. Disponivel em http://www.tst.jus.br. Acesso em 20/06/2020.
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