DO CONTROVERTIMENTO DO DIREITO SOCIAL, O DEVER ESTATAL E OS INTERESSES POLÍTICOS NA DIVISÃO DA SOCIEDADE:

24/09/2024

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 e o Polêmico Adicional por Filho no Bolsa Família

A Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança em 1989, o que consiste em um tratado internacional fundamental para a proteção e promoção dos direitos das crianças em todo o mundo, o que, segundo o entendimento de uma variedade de teóricos, demorou a ser produzido. Esse instrumento jurídico - e também político em determinados sentidos - estabeleceu um amplo conjunto de direitos civis, econômicos, sociais e culturais dirigidos às crianças e adolescentes de todo o mundo, visando assegurar que todas as crianças tenham acesso a um nível adequado de desenvolvimento físico, mental, moral e social, e que sejam protegidos não só pelas famílias ou pelos cidadãos de seus países ou até mesmo por seus países, mas também pelo Direito e pelas Organizações Internacionais.

Nesta linha, a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança pelo Brasil ocorreu já em 1990, ou seja, o Brasil foi um dos primeiros países a ratificá-la, por meio do Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990, que promulgou o tratado para validade interna em todo o país. Este passo, que hoje se mostra fundamental, marcou o compromisso do Brasil com a proteção e a garantia dos direitos das crianças, alinhando-se às normas e princípios estabelecidos não só pela vontade interna, mas também pela comunidade internacional.[1]

A estrutura da Convenção é composta por 54 artigos que abordam os mais diversos direitos, desde a proteção contra abusos e explorações, passando pelo direito à educação, à saúde e à alimentação adequada, até comentários à participação ativa das crianças em assuntos que as afetam. Dessa forma, dentre os principais focos da Convenção sobre os Direitos da Criança é assegurar que os Estados signatários tomem todas as medidas possíveis e apropriadas para criar as melhores condições dentro das possibilidades de cada Estado, permitindo que o pleno desenvolvimento das crianças ocorra, considerando suas necessidades específicas e suas vulnerabilidades.

Ao ratificar a Convenção sobre os Direitos da Criança, e até antes disso, ao promulgar a Constituição Federal de 1988, o Brasil comprometeu-se a adotar políticas, e sobretudo práticas, que garantam o cumprimento desses direitos. Assim, a ratificação envolveu a adaptação das leis e políticas nacionais para assegurar que estejam em conformidade com os princípios estabelecidos pela Convenção, o que já havia sido em parte feito, de forma muito ímpar e impactante - inclusive gerando elogios dos mais diversos doutrinadores internacionais - pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, “inaugurado” pelo Brasil na Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Desta forma, o compromisso do Brasil nesses, e em outros diversos textos legais, inclui a proteção dos direitos das crianças e adolescentes como um dos pilares dos direitos sociais garantidos pelo Estado.

A linha cronológica e histórica da adoção, ratificação, promulgação e instituição da Convenção sobre os Direitos da Criança, da Constituição Federal de 1988 e do próprio Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 pelo Brasil destaca um avanço significativo na promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, refletindo uma crescente conscientização nacional e, sobretudo, global no que tange a necessidade de proteger e garantir o bem-estar, o respeito, a integridade, manutenção e expansão do direitos das crianças em todas as partes do mundo de maneira eficaz.

A Constituição Federal de 1988 reforça esse compromisso ao incluir o direito à alimentação entre os direitos sociais previstos no artigo 6º, impondo ao Estado brasileiro o dever de garantir as condições mínimas de vida digna para todos os cidadãos: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, 2024, p. 19). Neste artigo o legislador entendeu por adicionar um parágrafo único pela Emenda Constitucional nº 114/2021, contendo o conteúdo importante para o desenvolvimento e a efetivação dos direitos elencados no artigo:

Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária. (Brasil, 2024, p. 19)

Dessa forma, mesmo com as dificuldades econômicas que o Brasil enfrenta hoje e historicamente enfrentou, que não podem ser deixadas de lado ou esquecidas quando do planejamento das políticas públicas, ainda assim é inegociável, imperativo e definitivo que o Estado brasileiro possui dentre suas obrigações básicas, a vigilância constante sobre as condições de vida dos vulneráveis e implemente políticas públicas que assegurem o cumprimento de seus direitos, especialmente quando se trata de grupos vulneráveis em situação de vulnerabilidade, situação por exemplo de idosos e crianças e estado de pobreza, os quais não conseguem ou possuem enorme dificuldade de, sem auxílio, saírem por si só dessas situações. A proteção desses direitos assegurados pelo texto constitucional e pelas leis federais demanda e vincula uma atuação proativa e contínua por parte do Estado para que as necessidades dessas pessoas sejam plenamente atendidas, contribuindo para a construção de uma sociedade saudável.

Mostra-se igualmente fundamental o Art. 27 da Convenção sobre os Direitos da Criança, o qual ressalta a obrigação dos Estados “de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades”, ou seja, condições essas que serão diferentes para cada país, mas que, mesmo com dificuldades, os países signatários possuem uma capacidade, ao menos razoável, de prestar auxílio às camadas mais vulneráveis da população. Para o cumprimento dos acordos firmados, das convenções ratificadas e das leis impostas diversos programas sociais foram e continuam sendo implementados, com o objetivo final de mitigar os impactos e as razões das vulnerabilidades, assegurando assim um nível mínimo de dignidade aos cidadãos, e em especialmente às crianças.

São diversos os exemplos de programas, sendo o mais famoso - e igualmente o mais questionável por parte dos cidadãos brasileiros - o Programa Bolsa Família, mas existindo outros como a “merenda escolar” que traz a garantia para uma gama de crianças e adolescentes em situações extremas de ao menos terão refeições nos dias de semana. Contudo, este objetivo possui como objeto de estudo a política polarizável do questionamento ao aumento gradual do Bolsa Família conforme o número de filhos, que se tornou, mais que tudo, um “discurso de ódio” replicado por milhões de brasileiros.

Portanto, a partir da redação do artigo 27 da Convenção sobre os Direitos da Criança sublinha-se a obrigação dos Estados signatários de apoiar famílias em estado precário, auxiliando a sua manutenção e, no que possível, socorrendo as famílias em suas necessidades básicas para com as crianças, em especial no que diz respeito à alimentação e habitação. Esses compromissos pretendem garantir que as crianças e adolescentes dos países signatários possuam os instrumentos necessários para desfrutar de um nível de vida adequado e humano, mesmo com as dificuldades que os circulam. Por conseguinte, o artigo 27 da Convenção sobre os Direitos da Criança, que se transformou no Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990, atua para:

1. Os Estados Partes reconhecem o direito de toda criança a um nível de vida adequado ao seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.

2. Cabe aos pais, ou a outras pessoas encarregadas, a responsabilidade primordial de propiciar, de acordo com suas possibilidades e meios financeiros, as condições de vida necessárias ao desenvolvimento da criança.

3. Os Estados Partes, de acordo com as condições nacionais e dentro de suas possibilidades, adotarão medidas apropriadas a fim de ajudar os pais e outras pessoas responsáveis pela criança a tornar efetivo esse direito e, caso necessário, proporcionarão assistência material e programas de apoio, especialmente no que diz respeito à nutrição, ao vestuário e à habitação.

4. Os Estados Partes tomarão todas as medidas adequadas para assegurar o pagamento da pensão alimentícia por parte dos pais ou de outras pessoas financeiramente responsáveis pela criança, quer residam no Estado Parte quer no exterior. Nesse sentido, quando a pessoa que detém a responsabilidade financeira pela criança residir em Estado diferente daquele onde mora a criança, os Estados Partes promoverão a adesão a acordos internacionais ou a conclusão de tais acordos, bem como a adoção de outras medidas apropriadas. (BRASIL, 1990, p. 7).

O artigo da Lei (e da Convenção sobre os Direitos da Criança) impõe ao Estado brasileiro o dever de adotar medidas que ajudem os pais ou responsáveis na manutenção - em diversos sentidos - de vida adequada às crianças e adolescentes. Isso inclui, não somente, mas como um dos pilares inegociáveis a assistência material, bem como vestuário suficiente e habitação. O Brasil, dentro de suas possibilidades e condições nacionais, dessa forma, tem implementado políticas públicas que visam cumprir essas obrigações, garantindo que, mesmo diante de limitações econômicas, as crianças tenham acesso, ainda que de forma escassa, aos recursos necessários para seu desenvolvimento.

Essas medidas demonstram que, mesmo o Brasil enfrentando desafios econômicos, o país possui mecanismos e programas que, quando bem implementados e geridos, podem proporcionar condições de vida mais dignas para as crianças em situação de vulnerabilidade, o que precisa deve ser tratado como uma obrigação em vista dos enormes gastos de menor importância realizados pelo país, quando comparado à prioridade do tema, assim, o cumprimento desses compromissos, mostram-se essenciais para assegurar o direito e a efetivação das garantias trazidas nos textos legais a todas, ou ao máximo de crianças brasileiras.

Apesar das inúmeras críticas dirigidas a programas sociais como o Bolsa Família, é inegável que eles desempenham um papel crucial na garantia dos direitos básicos das crianças e adolescentes no Brasil. Por seu poder de transformação social e, consequentemente, de apelo popular e eleitoral, o programa tem sido continuado e sobrevivido pelos mais diversos governos, independentemente das críticas, que, inclusive, possuem espaço para serem feitas, sejam eles de orientação política mais à esquerda ou à direita. Este fato demonstra a importância e a necessidade de uma política pública que transcende disputas partidárias, sobretudo em países com desigualdades tão profundas, sendo essencial observar que é economicamente viável, possível e favorável a todos que todas as crianças e adolescentes tenham acesso a condições mínimas de subsistência.

A crítica ao Bolsa Família e a outros programas e políticas públicas com viés social muitas vezes se concentra em aspectos como o modelo de gestão, impacto econômico ou uma suposta criação de dependência dos beneficiários. Ainda, o incentivo à dependência é, por vezes, utilizado para polarizar discussões e dividir a sociedade entre “nós e eles” com referência aos que apoiam a produção e aos que apoiam a utilização de auxílios econômico-financeiros para os que se encontram em um momento de vulnerabilidade. No entanto, é crucial refletir que a existência de tais programas não é uma mera escolha de governo, mas sim uma escolha de Estado, que pela dependência direta de uma grande parte da população brasileira, pode ser alterada no modelo, mas não pode ser extinta ao prazer de escolhas políticas, pois são direitos adquiridos por aqueles que necessitam de tais políticas para subsistência. Assim, esta escolha, pautada por compromissos internacionais e constitucionais, assumiu, ao longo das últimas décadas, o título de política pública mais famosa e uma das mais transformadoras do Brasil, o Bolsa Família.

Importa frisar que tais compromissos não podem ser apenas promessas vagas ou intencionalidades políticas, são obrigações jurídicas que o Brasil assumiu perante a comunidade internacional e perante seus próprios cidadãos. A responsabilidade de garantir que todas as crianças e adolescentes no país tenham acesso a alimentação, por mais básica que seja, e a condições dignas de habitação não pode ser tratada como uma política de governo sujeita às oscilações do poder. Pelo contrário, trata-se de uma política de Estado, que deve ser respeitada pela passagem de todo e qualquer governo, afinal os governos passam e o Estado e os cidadãos ficam, assim devem pelo contrário, ser expandidas e aprimoradas independentemente das mudanças no cenário político e dos interesses envolvidos.

Em última análise, a existência de programas como o Bolsa Família é uma manifestação concreta do compromisso do Brasil em cumprir os preceitos de sua Constituição Cidadã, que não assume esse apelido sem motivos, mas por ser muito clara em seus ordenamentos e objetivos para com o povo e a sociedade brasileira, bem como os tratados internacionais que ratificou. A garantia de uma vida digna para todos os brasileiros, especialmente para as crianças e adolescentes, é uma obrigação inegociável do Estado brasileiro, que não pode ser negligenciada de nenhuma forma. É, portanto, imperativo que esses programas sejam mantidos, fortalecidos e ajustados conforme necessário visando o melhor para o Brasil e para sociedade.

A criança - e de forma semelhante o adolescente - é o ser mais vulnerável nas sociedades, uma vez que sua capacidade de comunicação se mostra ainda em construção, e por conseguinte não sendo possível expressar plenamente suas necessidades e desejos e estando especialmente suscetível às adversidades que possam surgir em seu entorno, até pela dependência completa ou parcial de outros, até mesmo legalmente. Por essa razão, a proteção da criança e do adolescente não pode ser vista “apenas” como uma obrigação do Estado, mas como um dever coletivo, que deve ser assumido por todos os cidadãos e por qualquer pessoa consciente da fragilidade inerente à infância, e nesta proteção também consta o discurso, dirigir discursos de ódio a políticas que visam apoiar o desenvolvimento de cidadãos na fase da infância, a fim de que se tornem os melhores cidadãos possíveis nas demais fases de sua vida, não devem ser motivo de discursos contrários, ainda que seja possível requer alterações nos moldes das políticas públicas, desejar sua extinção conclui-se como um desfavor à cidadania, a urbanidade, a bondade e à própria humanidade das relações.

Qualquer erro que afete uma criança não é de sua responsabilidade uma vez que na verdade, crianças são puramente o reflexo das circunstâncias e das ações de terceiros, sejam elas familiares, instituições ou a sociedade como um todo. Observe-se que a criança não possui os meios, a autonomia ou a maturidade para evitar ou superar sozinha as situações adversas que podem comprometer seu desenvolvimento nos mais diversos fatores, como físico, mental e emocional. Dessa forma, a proteção integral da criança e do adolescente é imperativa, exigindo o máximo esforço de todos os cidadãos e em especial do Estado.

Ademais, em relação aos programas de assistência social, como o Bolsa Família, é possível e até desejável que se discutam formas de melhorar sua eficácia, já que o objetivo principal é obter o maior efeito positivo com o menor gasto. A implementação de critérios mais rigorosos para a distribuição de benefícios ou o aperfeiçoamento de mecanismos de controle e avaliação são mudanças que podem ser benéficas para assegurar que os recursos cheguem àqueles que mais necessitam. No entanto, essas reformas jamais devem resultar no abandono das famílias, e consequentemente das crianças e adolescentes mais vulneráveis, que dependem desses programas para ter acesso ao mínimo necessário para sua subsistência e desenvolvimento.

A importância dessa proteção vai além de uma simples questão de responsabilidade social, uma vez que se trata do reconhecimento de que as crianças representam o futuro da sociedade e que seu desenvolvimento saudável é essencial para o bem-estar coletivo. Negligenciar as necessidades das crianças é, em última análise, comprometer a médio e longo prazo o futuro de toda nação. Assim, nota-se como essencial que tanto o Estado quanto cada indivíduo assumam um papel ativo na proteção e no cuidado das crianças, assegurando que cresçam em um ambiente seguro, saudável e capaz de proporcionar todas as condições necessárias para que se desenvolvam plenamente como seres humanos, o que perpassa as necessidades econômico-financeiras, e a consequente necessidade de atuação do Estado.

Nesse contexto, a saída para garantir a proteção e o bem-estar das crianças passa, necessariamente, pelo apoio econômico por parte do Estado, inclusive com políticas econômicas dirigidas às classes das crianças e adolescentes, como vêm ocorrendo. Isso, no entanto, não significa a ausência da necessidade da ampliação da discussão e introdução do planejamento familiar. Contudo, aquém desta discussão, é fundamental que o Estado garanta a proteção das crianças e adolescentes que já existem no mundo factual e precisam de cuidados de seus concidadãos e do Estado.

Portanto, proteger as crianças e os adolescentes não é apenas uma questão de cumprir com obrigações legais e morais, mas sobretudo nota-se um imperativo ético e humano. Garantir que os programas de assistência social e as políticas públicas sejam eficazes e inclusivas é fundamental para assegurar que as crianças não fiquem aquém dos Direitos e Deveres que o Estado tem para com elas. Assegurar que suas vidas sejam pautadas pela dignidade, pelo respeito e pela justiça é assegurar um futuro mais saudável para a sociedade brasileira como um todo.

 

Notas e referências:

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2024. e-book (284 p.).

BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1990.

CONVENÇÃO sobre os Direitos da Criança. Assembleia Geral das Nações Unidas, Resolução 44/25, de 20 de novembro de 1989.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança. Salvador: Juspodivum, 2019.

[1] Para um aprofundamento sobre o tema cf.: VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança. Salvador: Juspodivum, 2019.

 

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