É possível que haja exceção para essa afirmação, mas, como regra quase absoluta, ninguém que decide iniciar algum empreendimento de natureza econômica espera ou planeja ter prejuízo. Aliás, tanto do ponto de visto do ordenamento jurídico quanto do senso comum, o lucro é um fator determinante para caracterizar atividades de cunho empresarial.
Salvo se houver decisão em sentido contrário, o esperado é que os lucros passem a integrar o patrimônio dos sócios em caráter definitivo.
Conforme dispõe o art. 10 da Lei nº 9.249/95, os lucros distribuídos ingressam na esfera patrimonial do sócio sem gerar reflexo na tributação da renda para a pessoa física.
Por outro lado, a interpretação conjunta do art. 12, inciso V, alínea “f” e do art. 28, inciso I, da Lei n. 8.212/91, permite concluir que somente o que for recebido como contraprestação pelo trabalho se sujeita à incidência da contribuição previdenciária, o que certamente não abrange o lucro.
Essa questão pouco ou quase nada tem de controversa quando o sócio recebe a parte que lhe cabe do lucro na proporção de sua participação societária. O lucro recebido, nesse caso, ingressa no patrimônio da pessoa física sem gerar repercussão na seara tributária.
Ocorre que diversas empresas adotaram uma forma diferente de distribuição de lucros, dissociada da proporção que cada um participa do capital social, fazendo uso dos mais variados critérios para aferir, em cada período de apuração, quanto do lucro caberia aos sócios. Isso ocorre principalmente nas sociedades simples em que os sócios prestam serviço de forma pessoal.
Essa sistemática acabou por gerar embates entre essas sociedades e a Fazenda Pública federal, pois essa entendia que os valores recebidos além do correspondente às respectivas participações societárias não mais detinham a natureza de lucro, mas sim, de remuneração, atraindo a incidência do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Previdenciária.
O objetivo desse texto é identificar os condicionantes que foram estabelecidos pela jurisprudência do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) para considerar válida a distribuição de lucros de modo diverso das participações no capital social.
Partindo do pressuposto que realmente haja lucro em determinado período, seu destino depende essencialmente das previsões contratuais e legais, bem como da decisão tomada pelos sócios a partir dessas regras.
O Código Civil, especificamente em seu art. 997, prevê que “A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: […] a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas”.
Mais adiante, o art. 1.007 dispõe que, ”Salvo estipulação em contrário, o sócio participa dos lucros e das perdas, na proporção das respectivas quotas, mas aquele, cuja contribuição consiste em serviços, somente participa dos lucros na proporção da média do valor das quotas”. Tais regramentos aplicam-se às Sociedades Simples, bem como às Sociedades Limitadas.[1]
O ordenamento vigente partiu da premissa de que os sócios possuem alto grau de autonomia quanto à disciplina do tema. A lei atua no sentido de dar balizas para as decisões privadas e definir um campo negativo de atuação, em geral, com vistas a evitar abusos.
Desse modo, os sócios podem pactuar a forma de distribuição que lhes parecer mais adequada, com vistas a atender às finalidades do empreendimento, desde que respeitadas as limitações constantes da lei. Não é incomum os sócios acordarem que os lucros serão recebidos na proporção do desempenho individual ou mesmo em razão de algumas características pessoais, como formação acadêmica ou tempo de ingresso na sociedade.
A questão, logo, é saber se tal forma de distribuição de lucros afasta a isenção do Imposto sobre a Renda e possibilita a tributação pela Contribuição Previdenciária.
Em sessão realizada em 13 de maio de 2003, o Primeiro Conselho de Contribuintes (atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF), já havia decidido que a “Havendo no contrato social previsão para deliberação dos sócios sobre a distribuição de lucros, é possível fazê-lo desproporcionalmente a participação no capital social, haja vista a ausência de qualquer impedimento legal neste sentido”.[2]
Em julgamentos posteriores, o CARF apreciou outros recursos, que acabaram, de certo modo, estabelecendo condicionantes a serem observados pelos sócios e pela própria pessoa jurídica para legitimar a distribuição desproporcional.
Há, contudo, quem sustente que o lucro não se descaracteriza pelo fato de que sua distribuição venha a se dar em desacordo com eventual formalidade exigida pela lei societária ou pela falta de previsão no Contrato Social. A isenção do Imposto sobre a Renda não estaria condicionada a qualquer fato posterior. Além disso, o lucro recebido pelo sócio já teria sido submetido à tributação no âmbito da pessoa jurídica. Logo, se houvesse incorreção sob o enfoque da lei comercial ou societária, isso não poderia repercutir na esfera tributária.
Há um precedente do CARF[3] que abordou esse último aspecto, e que, inclusive, o tomou como fundamento para desfazer o lançamento fiscal que fora lavrado contra a sociedade.
Ainda que se concorde com tal precedente, em especial pela consistência de sua fundamentação, não há como adotar sua conclusão de modo absoluto, pois o referido recurso tinha por objeto apenas a tributação da renda. Logo, não se pode afirmar que a distribuição desproporcional, sem o cumprimento de qualquer formalidade, esteja longe de qualquer tributação.
A partir da análise dos recursos disponíveis na base de dados do CARF pode-se identificar alguns elementos norteadores. O primeiro deles, é a previsão da opção pela distribuição desproporcional nos atos constitutivos da pessoa jurídica.
A interpretação conjugada do art. 1.007 e do art. 997, inciso VII do Código Civil, permite afirmar que cabe ao Contrato Social dispor sobre a participação de cada sócio nos lucros e nas perdas.
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, ao apreciar o Recurso formalizado nos autos do processo n. 10580.726848/200989, acórdão n. 2301003.368 (3ª Câmara/1ª Turma Ordinária - 12/03/13), no qual figurava como recorrente uma Sociedade Simples de serviços médicos, manteve a autuação que fora formalizada pela Receita Federal exatamente porque a citada empresa havia realizado distribuição desproporcional sem observância a tais formalidades.
Um outro requisito, refere-se à existência de demonstração contábil idônea que embase a distribuição desproporcional.
É imprescindível a elaboração de atos contábeis que evidenciem os fatos efetivamente ocorridos, de modo a possibilitar à Autoridade Fiscal aferir a regularidade das informações, em especial, no tocante à verificação da existência e da destinação dos lucros. A Receita Federal e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais já se pronunciaram que, independentemente da forma de apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (lucro real ou presumido), somente poderão ser recebidos os lucros devidamente verificados em regular procedimento de apuração contábil.
No âmbito do CARF, quando da apreciação dos recursos no Processo n. 10140.722768/201158 (acórdão 2302003.375 – 3ª Câmara / 2ª Turma Ordinária), se decidiu que a distribuição desproporcional é possível para as sociedades civis de prestação de serviços profissionais, desde que haja previsão no Contrato Social e as demonstrações contábeis cumpram as formalidades que lhe são inerentes.
Na hipótese de opção pela distribuição de lucros com base em período de apuração não encerrado, deverá a pessoa jurídica elaborar balanços ou balancetes intermediários. Nesse caso, como expresso na Solução de Consulta n. 6 - SRRF 01/Disit, “[…] caso estes lucros distribuídos antecipadamente sejam superiores ao lucro apurado no final do período de apuração, a diferença será imputada a lucros acumulados ou reservas de lucros de períodos anteriores, ficando sujeitos ao recolhimento do imposto de renda nos termos da legislação vigente à época a que se referirem, com os acréscimos legais respectivos”. Em sentido similar, tem-se também a Solução de Consulta n. 140 da Secretaria da Receita Federal da 6ª Região Fiscal (DISIT).
Caso haja distribuição de lucros em montante superior ao efetivamente devido para o período, estes serão tidos como recebíveis em razão de lucros acumulados. A ausência de reserva de lucros ou lucros pendentes de distribuição, entretanto, fará com que o valor recebido a maior seja tido como remuneração, sujeitando-o à incidência dos tributos já mencionados.
Por último, um importante aspecto dessa discussão diz respeito aos critérios que podem ser adotados para a distribuição dos lucros.
As regras de isenção, no caso do Imposto sobre a Renda, não contemplam nenhum condicionante, tendo os sócios liberdade para escolher os critérios que se mostrarem mais convenientes. Por outro lado, a Fazenda não pode exigir algo que não consta da norma isentiva, não apenas em respeito ao princípio da legalidade, mas também por conta da interpretação literal que o CTN, em seu art. 111, inciso II, determina que se adote em relação às regras dessa natureza.
Neste particular, há uma importante decisão do CARF.
A 2ª Turma Ordinária (3ª Câm., 2ª Sec. Julg.), em julgamento no qual ficou vencido apenas o Relator, cancelou a autuação aplicada pela Fazenda Federal por entender que na Sociedade Simples o capital social assume caráter simbólico, de modo que a desproporção entre as quotas e o lucro auferido não representa fraude. Decidiu-se que os “os sócios [podem] optar por correr integralmente o risco da atividade e nada perceberem a título de remuneração pelo trabalho”, já que não há norma legal que obrigue o sócio a receber pro labore, de modo que “[…] Havendo a demonstração da existência de lucro, ainda que se comprove que o sócio colaborou com seu trabalho, há ampla liberdade, nos limites do contrato social, para que o pagamento se dê a título de distribuição de lucros”.
Tal decisão merece atenção especial por três motivos.
Primeiro, porque reconhece não existir obrigatoriedade de recebimento de remuneração pelo trabalho (pro labore), o que contrasta com a previsão contida no art. 201, do Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999, que considera como remuneração todo valor recebido pelo sócio quando não houver a devida segregação do que é lucro.
Em segundo lugar, porque que o Contrato Social da referida sociedade continha regra absolutamente genérica, sem a estipulação de qualquer critério pré-definido. Constava em seu texto que "A sociedade elaborará demonstrações financeiras mensalmente, e o lucro mensal apurado será distribuído aos sócios, de acordo com os critérios estabelecidos pelo conselho Diretor, ao passo que o prejuízo apurado será suportado pelos sócios proporcionalmente à participação societária, consolidando se os resultados mensais através das demonstrações financeiras do exercício”.
A existência de instrumento paralelo para disciplina da distribuição de lucros foi tida como válida pelo CARF, pois “o que complementa o contrato social, como no caso a definição do destino ou a divisão do lucro, não viola a lei civil, não servido de base, portanto, para a desconstituição da previsão societária”. Nessa linha, se tal subjetivismo é possível, não haveria óbice à adoção de critérios objetivos inerentes ao trabalho do sócio.
E, por último, a decisão se mostra relevante por admitir que o lucro não é descaracterizado apenas por ser resultado direto do trabalho do sócio. Nesse cenário, seria válida a estipulação contratual que adotasse como critério a contribuição individual para a geração da receita ou outros critérios que forem relevantes à atividade da sociedade.
Em linhas gerais, a distribuição de lucros de modo diverso das participações societárias encontra previsão legal e sua adoção não afasta a isenção do Imposto sobre a Renda, tampouco possibilita a incidência da Contribuição Previdenciária. Além disso, a distribuição desproporcional, em especial nas sociedades simples, pode, se bem usada, ser um importante elemento motivador para a atuação de cada sócio junto à sociedade.
Notas e Referências:
[1] A previsão legal quanto à autorização para distribuição desproporcional encontra-se em capítulo do Código Civil que disciplina as Sociedades Simples, cuja referência posterior, quando das normas aplicáveis às sociedades limitadas, faz com que a regra do art. 1.007 também seja aplicável a estas. O CARF, quando do julgamento realizado em apreciação ao processo 10580.726848/200989.2301003.368, reconheceu a possiblidade de distribuição desproporcional de lucros para as sociedade limitadas.
[2] Acórdão n. 10613.305, da Sexta Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes
[3] CARF, Proc. n. 10920.000372/200792, acórdão 210201.496 – 1ª Câmara/2ª Turma Ordinária
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