Dissonância cognitiva, autoengano e ignorância autoimposta (Parte 2)

15/04/2015

Por Atahualpa Fernandez - 15/04/2015

«Es una ilusión creer que somos dueños de nosotros mismos». Ranulfo Romo

Esta tendência a dar as explicações que necessitamos e justificar o que fazemos, pensamos, elegemos e decidimos se deve a que nosso ego luta encarniçadamente por defender sua honra: miramos em nosso interior e vemos objetividade, miramos em nosso coração e vemos bondade e honradez, miramos em nossa mente e vemos racionalidade, miramos a nossas crenças e desejos e vemos a realidade, miramos a nossas razões, motivos e preferências e vemos infalibilidade. Tendemos a confundir nossos modelos da realidade com a realidade mesma. [5] Não  vemos mundo que é, vemos o mundo que somos; somos uma idiossincrasia com patas: “¿Por qué no han de ser todos tan razonables como yo?”.

O nosso é o mundo verdadeiro; desquiciados, falsos, ilusórios, excêntricos, profanos, disparatados ou ao menos estúpidos são os mundos dos «outros». Por este motivo, dos que não pensam como nós dizemos que não estão no mundo real, quando o que queremos dizer é que não habitam nosso modelo do mundo, que não compartem nossa visão de como são as coisas. E uma vez que estamos cegamente convencidos de que não há mais que uma maneira correta de ver a realidade - a saber, a nossa – e totalmente persuadidos de saber o que passa pela cabeça dos outros (até o ponto de fazer inecessária toda comprovação ulterior), alçamos a mirada desdenhosa por encima dos demais sem ver a superfície sobre a qual caminhamos.

Assim que não deixamos de intentar por todos os meios evitar a incomodidade que nos causa a dissonância, ainda que para lográ-lo tenhamos que  desacreditar aos que não estão de acordo conosco como malvados ou ignorantes, ajustar nossos recordos ou reconstruir nossas opiniões de ontem para fazê-las mais consistentes com o que sabemos hoje. Não somente interpretamos cada situação segundo nossos desejos, crenças, expectativas e intenções, senão que também reconfiguramos constantemente o passado para proteger-nos. Exceto para os descerebrados, para quem a realidade física não resiste à distorção mental fácil, reconhecer que isto é verdade constitui o melhor preventivo contra o excesso de confiança que descansa em estruturas mais profundas de autoengano (R. Trivers).

Os estudos sobre a evolução das relações conjugais, por exemplo, ilustram como a memória trata de minimizar as dissonâncias. As pessoas que se consideram felizes ao casar-se, mas cuja relação se deteriorou de maneira progressiva entre os cinco e dez anos seguintes, quando se lhes pergunta de forma individual sobre a qualidade de sua relação tendem a recordar que se sentiam infelizes desde o primeiro momento, quando em realidade não é certo. Quanto mais negativa seja a opinião acerca da relação conjugal no presente, piores serão as lembranças dessa relação no passado. Da mesma maneira, as pessoas divorciadas se inclinam a valorar sua relação retrospectivamente de forma que lhes ajude a justificar sua ruptura (L. R. Marcos)[6].

De um modo similar, a necessidade de evitar dissonâncias cognitivas e criar um argumento coerente sobre quem somos e o que fazemos pode levar às pessoas a interiorizar valores e atitudes que ao princípio adotaram por outros motivos. Quer dizer, uma vez que conseguimos desenvolver uma identidade coerente gerada por essas interiorizações, também evitamos as dissonâncias de forma preventiva ao eleger seletivamente a maneira de reforçar esta identidade. Por exemplo, os homens que se casam (ou convivem) com mulheres hiper-religiosas ou pouco dotadas para as atividades intelectuais (ou vice-versa) tendem a relacionar-se com amigos religiosos ou intelectualmente superficiais (o mesmo padrão pode ver-se entre os membros de qualquer grupo: de “direita” ou de “esquerda”, teístas, ateus, “alternativos”, católicos, evangélicos, etc.). O resultado final destas interações elegidas com “liberdade” é que não somente satisfazem nossa instintiva necessidade de pertencer a um grupo, senão que também facilitam a fixação de nossa (nova) identidade com o tempo e a tornam mais facilmente definível para aqueles que nos rodeiam (S. Iyengar).

Por outro lado, a dissonância é especialmente dolorosa e particularmente pungente e angustiante quando ameaça um elemento importante do conceito que temos sobre nós mesmos: quando a informação que processamos gera um conflito que põe em perigo a forma de ver-nos ou quando questiona uma crença pessoal  (religiosa, política, intelectual...) que consideramos fundamental. A título de exemplo, se nos consideramos pessoas competentes, honradas, amáveis e boas, e de repente nos chega a informação de que fizemos algo incompetente ou que talvez não resulte muito ético ou pouco amável, o bálsamo a que recorremos para reparar e conservar nossa autoestima é o autoengano: “nos mentimos a nosotros mismos para mentir y engañar mejor a los demás” (R. Trivers).

Na verdade, quanto maior é a ameaça contra sentir-se bem consigo mesmo, maior é a tendência a ver a realidade através de umas lentes que a distorcem. Daí que para Robert Feldman a dissonância cognitiva é um dos elementos essenciais para compreender a mecânica do autoengano: “... quando nossas opiniões, nossa conduta ou nossas crenças se contradizem, nos vemos obrigados a alterar nossos sentimentos, a criar uma série picassiana de distorções do que pensamos; as ideias que aparecem em nosso interior são mais coerentes entre si, mas não são necessariamente coerentes com a realidade.”[7]

Na fábula de Esopo, se a história houvesse funcionado de maneira distinta e a raposa tivesse conseguido apanhar as uvas, somente para descobrir que eram amargas, haveria dito que lhe gostava o sabor amargo para evitar sentir que seu esforço havia sido absurdo e inútil. O fato é que “quando nos explicamos a realidade tratamos de evitar ideias ou recordos contraditórios ou dissonantes porque nos provocam sentimentos desagradáveis, nos desorientam, alteram o equilíbrio ou a harmonia de nossa lógica; [...] não suportamos manter ao mesmo tempo dois pensamentos ou crenças contraditórias e, automaticamente, justificamos dita contradição, ainda que para isso seja necessário recorrer a argumentações absurdas” (L. Festinger).

O importante é compreender que esta alteração de ideias (pensamentos, desejos, crenças e preferências) e reavaliações de critérios e valores representam um mecanismo natural e fundamental da mente humana (R. Feldman). Nos inventamos “contos a nós mesmos para poder viver”. Com esses contos reafirmamos nossas crenças, abraçamos informação que apoia o que preferimos ou que serve para justificar e confirmar nossas hipóteses e juízos (independentemente de serem ou não verdadeiros), expressamos nossas opiniões, reinventamos nossos recordos e encontramos a maneira de navegar pelas estranhas águas da vida sem cruciantes contradições internas.

O que parece claro é que as coisas não são tão claras como às vezes pensamos e que nosso cérebro altera nossas percepções de forma permanente. Estamos todos programados para justificar nossas ideias, valores, crenças, preferências e ações, e reduzir assim a dissonância quando determinados aspectos de nossa experiência não se curvam a nossos caprichos e desejos; quer dizer, para mentir-nos a nós mesmos, para adaptarmos nossa percepção de nós mesmos e construirmos uma falsa explicação do que pensamos, elegemos, decidimos e fazemos.

Criamos “pontos cegos” mentais e ao mesmo tempo vemos quão “hipócritas” são os demais, mas não (“nunca jamais!”) nós mesmos. É assim: não somente tendemos a sobrestimar inclusive nossa capacidade para resistir-nos a sobrestimar nossas mentiras autoimpostas, senão que também nos importa muito sentir-nos distintos dos outros e superiores, “por nimias que sean las razones que subyacen a nuestro sentido de superioridad y por mucho que podamos acabar saboteándonos a nosotros mismos”(L. Mlodinow).

Nas sensatas palavras de J. Lehrer, “todos calamos a dissonância cognitiva mediante a ignorância autoimposta.” Quanto sofrimento humano deixa sua raiz mais profunda em um conflito entre nossas ordens de preferências, no abandonar à deriva nossas crenças e pensamentos, na tensão gerada por nossas dissonâncias mais cotidianas e na incapacidade para conformarmo-nos com o disponível em cada momento e equilibrar os desejos impossíveis que modelam nosso trato com o mundo exterior que nos limita e “de lo que no podemos cambiar o controlar mediante un mecanismo de nuestra voluntad” (H. Frankfurt).


Notas e Referências:

[5] Seguramente o amável leitor (a), como ser humano que é, estará neste momento pensando que isto só ocorre com as outras pessoas. Supina insensatez. Basta com que seja humano, disponha de um equipo sensorial humano e tenha um cérebro humano para abandonar a cautela, buscar e encontrar padrões e narrações para interpretar a própria realidade, e sentir como irrefutavelmente reais as acolhedoras ficções e veleidades que que se inventa. Por isso, ante a nossa natural tendência a negar a relevância dos fatos e a rechaçar instintivamente as debilidades que nos caracterizam, Steven Novella propõe que cultivemos uma espécie de “humildade neuropsicológica”: uma “simples” questão de atitude . Mas essa é outra história.

[6] E logo está o amor… Realmente podemos prometer? Estamos imunes às dissonâncias  em nossas relações conjugais? Inclusive hoje se promete amor até que “a «vida» nos separe, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza...”, segundo famosa formulação. Mas, está obrigado o “homem de hoje” por aquela promessa que fez à “mulher do passado”, a uma jovem esbelta e alegre com quem falava da filosofia existencialista de Sartre, e que agora, amargada e multiatarefada, se passa a maior parte do tempo “conectada” e ocupada com a vida dos demais, mirando e “atualizando” Facebook, Instagram, Twitter... ou vendo novelas? Ou, está obrigada a “mujer de hoje” pela promessa que fez ao “homem do passado”, a um jovem atencioso, sobrecarregado de ambição, sonhos e projetos de futuro, e que agora se converteu em uma criatura obesa, egocêntrica e narcisista a quem só interessa a ociosidade inútil, a boa culinária e o palavreado com amigos reais ou virtuais?

[7] Um bom exemplo parece ser a atitude subjetiva adotada por um agente ou “cidadão” corrupto: não costuma ser consciente, distorce ou ignora deliberadamente essa sua natureza imoral. Quando eu me enriqueço injustamente à custa do cargo que exerço, não vou ficar pensando ou dizendo todo o tempo a mim mesmo que sou um canalha desonesto, um hipócrita e um empedernido criminoso. Não! Confabularei e tecerei uma rede de justificações e racionalizações: que ao fim e ao cabo todos fazem o mesmo e que não serei o pior dos mortais por fazer parte desse “espírito compartido”; que pareceria “anormal” ou muito insensível de minha parte rechaçar algum “obséquio” que me passa alguém em troca de um favor para violar (com "jeitinho” e sem que a humanidade se inteire) uma norma legal ou constitucional; que a gente geralmente tem o que se merece e que deve aprender a viver e a aproveitar as oportunidades...[e não duvido que muitos, por segurança, ainda rezem para algum Deus (necessariamente) indiferente ao mal moral]. É assim! Aos corruptos lhes costuma ir muito bem a arte do autoengano para essas coisas suas de autorregulação moral, de  “limpeza moral mental”.


Veja a Parte I aqui


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


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