Discursos legitimantes residuais x Abolicionismo Penal: novos muros ou novos caminhos? – Por Guilherme Moreira Pires

29/03/2015

Sabemos onde discursivamente pisamos?

Entre pleonasmos e contradições (a depender do referencial), proponho algumas reflexões, dessa vez bem mastigadas, no sentido de resgatar, no nosso imaginário, a curiosidade que nos permite questionar nossas estruturas de pensamento, e criticamente identificar como cada qual molda seu castelo sistêmico e lingüístico, que, no final, é também um castelo de poder, de legitimação e (re)produção de algo, e que serve para algo. Resta saber: o quê; para que(m)?

Isso dito, para debatermos com um mínimo de comprometimento e seriedade, mostra-se absolutamente necessário, como pressuposto inclusive semântico,  entendermos o conteúdo a ser legitimado e (re)produzido em cada arquétipo de racionalidade, em cada estrutura de pensamento, em cada (des)construção edificada ou manejada pelos operadores jurídicos, aqueles que, não raro, operam dores absolutamente ilógicas, ainda que ostentando as vestes da “técnica legítima”, com as cores do “direito” e da “razão”, até mesmo a pomposa etiqueta de garantista: elementos que, quando reunidos, especialmente de tal forma, resultam no enfraquecimento da oposição radical ao poder punitivo.

Mas há mundo para além dessas embalagens e limites, mesmo os reais; mundo cuja descrição de realidade evidencia o caráter retórico e meramente discursivo de tantas etiquetas e mecanismos de legitimação; o próprio cárcere, planetarizado, desmente os princípios cínicos que estudamos nas mais introdutórias aulas de Direito Penal; desmente mesmo a vigência dos direitos humanos.

Zaffaroni, durante bastante tempo, apontou o “delinquente comum” como o candidato a inimigo residual, o bode expiatório ante a ausência de colossais inimigos a serem elencados a todo instante. Não seriam, alguns discursos legitimantes do poder punitivo, os discursos residuais? Isto é, aqueles que “sobraram”, que não foram suficientemente golpeados a partir de perspectivas deslegitimantes, senão que golpeados, ao contrário, pelas perspectivas punitivistas? Pelos discursos criminológicos do cotidiano?

Não seriam esses discursos legitimantes residuais do poder punitivo, cada qual e todos juntos, uma barreira aos abolicionismos, talvez uma maior que os próprios discursos criminológicos do cotidiano, na medida em que sustentados precisamente pelos “especialistas da pena”?

Deparamo-nos com uma armadilha, e, (muito) pior: discursos legitimantes residuais visam conter os punitivismos dentro dessa armadilha, dentro de uma caixinha que, no fundo, é um recorte punitivista, legitimante do poder punitivo e que nele encontra seu referencial de ordenação e auto-preservação; a tendência não é a desconstrução! Vale frisar que não há suicídio sistêmico, assim como não há suicídio do poder, não como tendência, isso sabemos!

Quem se beneficia com a disputa interpretativa “dentro da caixa”? O quão longe pode ir essa oposição ao poder punitivo dentro da caixa, enquanto pensar nesses lindes; enquanto refém desses lindes, enquanto refém dessa linguagem?

Ilustremos um pouco; desenhemos um pouco.

“A” adora ler sobre Direito Penal do Inimigo; se fascina com a temática do “inimigo”, e pensa que Jakobs inventou isso.

“B” lhe explica que isso constitui uma contradição em si mesmo,  que a aberrante diferenciação cidadão-inimigo (em que pesem os frágeis malabarismos sustentando não se tratar dessa dicotomia) não pode vislumbrar espaço legítimo em um Estado Democrático de Direito.

“B” prossegue, sorridente, afirmando que todo Direito Penal é, necessariamente, do Cidadão; assim, Direito Penal do Cidadão seria um pleonasmo; e do Inimigo, uma terrível deturpação, uma contradição em si mesmo, não podendo o Estado destituir ninguém do status de pessoa, de sujeito de direitos; é dizer: não poderia nutrir um viés desedificador da dignidade humana.

Empolgado, “B” ainda cita Zaffaroni em El enemigo en el Derecho Penal (p. 18): “No es la cantidad de derechos de los que se priva a alguien lo que cancela su condición de persona, sino la razón misma en que se basea esa privación de derechos”.

“B”, no embalo, cita mais dezenas de citações, de distintos livros e autores.

Muito bonito, interrompe “C”, que,  prossegue: você me diz que Direito Penal do Inimigo é uma contradição em si mesma, e do Cidadão um pleonasmo… ora, mas não seria, em verdade, o Direito Penal do Cidadão uma enorme contradição? Existe Direito Penal do Cidadão? O Direito Penal é para o cidadão? Mesmo? Não se trataria, o Direito Penal, estruturalmente de um arquétipo idealizado e edificado sob o desígnio – inclusive configuracional – de jugular inimigos? Destroçar nossas (supostas) monstruosidades ferais? De abatê-los e contê-los? Que palhaçada é essa de que “todo Direito Penal é do Cidadão, “B”? Você não consegue mesmo pensar além da caixinha?

Entendem, amigos, o que ocorre?

“B” e “C” situam-se discursivamente em espaços demasiado distintos. Vocês conseguiriam identificar, ainda que minimamente, em torno de quais estruturas de pensamento orbitariam essas palavras?

Palavras dizem coisas, e constroem nossa percepção de realidade.

Não podemos “captar” tudo, automaticamente inferindo cada mínimo detalhe, mas podemos nada captar? Não identificarmos nada sobre as premissas, pressupostos, visões, significados, caminhos?

Quando Zaffaroni se refere ao poder punitivo e Ferrajoli indiretamente ao ius puniendi (direito de punir), percebemos a diferença? Ou não existem diferenças gritantes? Ora, é claro que existem!

 Se não enxergá-las, preocupe-se (e muito)!

Percebem, ainda, que nenhum dos dois é abolicionista? Que Zaffaroni, apesar de não o ser, consegue pensar muito mais “fora da caixinha” que Ferrajoli? Aliás, conseguimos perceber que sua Criminologia Cautelar Preventiva de Massacres, mesmo que insuficiente, representa um esforço de conseguir pensar “fora da caixinha”, ainda que em certos momentos fraqueje, cedendo às estruturas, instituições e significações (im)postas, sedimentadas, cristalizadas?

Entendemos que, apesar dos problemas, esses senhores se esforçaram, e que devemos transcende-los e superá-los, não reproduzi-los acriticamente?

Prosseguindo com o desenho:

“B” há pouco reclamava sobre o tal Direito Penal (do) Subterrâneo, referindo-se, energicamente, a um exercício despótico da legislação em que ilegalidades eram perpetradas pelos próprios agentes da Administração Pública.

Discorria sobre um uso desmedido do ius puniendi, que, abaixo da terra, no abismo sem luz,  desencadeava inúmeros crimes (a lista era longa, incluindo execuções sumárias, torturas, sequestros, roubos, corrupção, extorsão, intimidação, jogos ilícitos, exploração sexual e tudo de mais podre a ser conjecturado, em especial quando presente o elemento financeiro); falava “B” de um sistema formal e um informal, oculto e terrível, extrapolando os limites do Estado Democrático de Direito através de suas ramificações clandestinas, cujas operacionalidades reais urgentemente careceriam de controle; e, sugere “B”, controle do sistema formal, que precisaria se expandir e engolir essa zona de ilegalidades e excessos subterrâneos; seria necessário que o brilho da Constituição alcançasse essas zonas sem luz, atualmente abandonadas. Diz que está lendo um livro sobre esse Direito Penal Abissal, do abismo sem luz e sem interesse midiático, o excesso do sistema.

Ora, ora… “C” está perplexo. São muitos os problemas, e seu sangue começa a ferver.

“Excessos subterrâneos”? Excessos do sistema?? “Brilho da Constituição”???

Que ficções retóricas são essas? Que nomenclaturas são essas? Visando relativizar toda a podridão do sistema penal, podemos aleatoriamente desmaterializá-la e arremessá-la novamente materializada em algo alheio? Numa faceta alheia?

Não seria, todo o narrado como “excesso do sistema”, o próprio sistema, que É excesso.?

Nesse instante, “B” e “C” se estranham mais, “A” já foi dormir, e existe todo um alfabeto prestes a entrar no debate do dia seguinte.

De modo geral, a situação do alfabeto é terrível, e respira acorrentado numa caixa; algumas letras não acreditam que exista mais mundo. Algumas até acreditam, flertam um pouco com as chaves e sonham com um horizonte maior; mas, no final, não vão muito além: desistem, são incentivadas em sentido contrário pelas demais letras e não raro até quebram.

Ainda assim, algumas poucas letras não quebram, e às vezes parecem mesmo indestrutíveis.

Seguem num diálogo improvável com as demais, aos poucos introduzindo curiosidade e criticidade, plantando desejos e ideias, por um mundo fora da caixa; por uma vida além da caixa.

Você deseja pensar além da caixa?

 


Imagem Ilustrativa do Post: Wall and walkers // Foto de: Matt Brown // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/londonmatt/32846157893

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