Discursos Inaudíveis, redes sociais e seus reflexos no mundo jurídico

17/03/2016

Por Alexandre Pinho Fadel, Andrey Lucas Macedo Corrêa e Karina Almeida Pinhão - 17/03/2016

O acirramento da disputa política brasileira vem conduzindo a sociedade para uma prática muito danosa que denominamos de "discussão inaudível", uma espécie de "guerra de todos” (os interlocutores) "contra todos" (os interlocutores), algo, portanto, que faz lembrar o estado de natureza em Hobbes[1]. Dentro desse paradigma, nada do que seja falado ou escrito, seja lá por quem, sobre fatos envolvendo eventos ou circunstâncias políticas (p. ex.,a acirrada disputa na eleição presidencial de 2014, a escolha de um ministro ou ministério, a utilização de urnas eletrônicas, uma decisão de política econômica) será ouvido ou levado em consideração pela parte adversa. O início da radicalização do discurso político pode ser identificado na transição do primeiro para o segundo mandato da Presidente da República Dilma Rousseff. Tal fenômeno teve um crescimento paulatino até chegar ao (grave) estágio em que nos encontramos. Suas raízes são político-partidárias e possuem um novo ingrediente, as redes sociais, sendo que seus reflexos, embora muito amplos, ainda não são possíveis quantificar e qualificar.

O discurso e a argumentação inaudíveis são, por óbvio, inócuos, não se prestam a absolutamente nada. É como tentar conter racionalmente uma turba que se prepara para um linchamento. Logo, diante de uma controvérsia política, jurídica ou social relevante é perdido algo central em uma democracia, que é a possibilidade de debater e convencer, por meio de argumentos racionais, sem violência, os interlocutores que pensam de maneira diferente em prol da construção de algo melhor ou na busca de um “meio termo” (consenso). A práxis do desprezo argumentativo é típica dos cenários que envolvem a “paixão” manifesta, por exemplo, nas discussões informais tratando sobre times de futebol, religião, partidos políticos. Nada do que seja dito em um cenário “apaixonado” demoverá os debatedores dos seus respectivos pensamentos iniciais. É adequado entender que a paixão e as emoções estão intrinsicamente ligadas ao jogo político (ideológico) e, consequentemente, à democracia. No entanto, o que passou a ser observado é a manifestação de uma paixão extremada, que supera o diálogo e a lógica, criando dois polos inconciliáveis (amigo-inimigo), onde ouvir e compreender outro se encontra fora da ordem do dia. O que se tem em vista com o debate democrático, portanto, não é a verdade, mas a melhor compreensão do assunto para a consecução de uma sociedade melhor. Nesse sentido, é fundamental que o debate não se esvazie nas emoções cotidianas na medida em que tem uma finalidade prática, qual seja, a de modificação e transformação social.

A partir dessa realidade, é de se observar a construção de um novo tipo de cidadania, uma cidadania eletrônica[2]. De fato, uma vez que há um avanço na tecnologia, o uso sobre esta possui poucos controles, o que apresenta tanto uma dimensão negativa como positiva. No que se refere ao aspecto negativo, temos estes debates repletos de emoções, mas com pouco comprometimento social. Por outro lado, há um aspecto positivo pelo qual não se pode passar despercebido. De fato, a internet e, principalmente as redes sociais, permitem que todo o discurso lá esteja, salvo quando, inesperadamente e injustificadamente, a administração de uma rede social resolve impor o que é “moral” e “bom costume” ao retirar determinadas fotos e publicações sem qualquer notificação ao usuário... Sob este ponto de vista, talvez, a internet seja o espaço mais democrático construído até o momento, não apresentando limitações espaciais ou financeiras (a não ser pelo próprio acesso, em si, da tecnologia). Assim sendo, esta não apresenta limitações de espaços televisionais que precisem ser pagos, e nem se depende de autorizações governamentais para o acesso à espaços públicos, por exemplo.

O exercício político-partidário, na era midiática (potencializado pelas redes sociais), tem tornado os argumentos dos adversários inaudíveis.  Uma boa contextualização dessa prática pode ser vista nos debates com os candidatos aos cargos do Poder Executivo: pergunta-se, fala-se e responde-se o que bem quiser, como se fosse um “papo de surdo e mudo”. Portanto, são escolhidos, segundo o gosto do internauta, do telespectador ou do editor, os “pontos altos e baixos” do debate. Na essência, em regra, o que vale é ocupar o espaço com armadilhas retóricas, assim como, com respostas rápidas (e enfáticas) para colher os votos dos indecisos. O conteúdo e a veracidade das alegações ficam para um segundo plano, ou melhor, tendem a não existir. É possível ir adiante com a argumentação construída bastando ver a importância que ganharam o marketing político e o financiamento privado das campanhas. Enfim, dentro do pragmatismo e da lógica própria da política tais técnicas estão dentro de um “padrão de normalidade”, ainda que indesejáveis para um processo democrático mais substancial. Ressalte-se, todavia, que a forte concentração dos grandes meios de comunicação, e de todas as suas plataformas, a poucos grupos e famílias faz da prática teatral, pomposa e vazia da política algo bem desleal no resultado dos pleitos eleitorais.

No embalo do acirramento da intolerância político-partidária, as manifestações no novo locus de discussão política, as redes sociais, tornam-se igualmente inaudíveis e, consequentemente, carreadoras de práticas profundamente danosas como os discursos de ódio. Isto é, diante do colapso da argumentação racional, exsurge a violência nos seus mais variantes formatos. Em recente entrevista, Bauman retrata as relações existentes na “rede” nos termos seguintes: “É uma questão rica de ambivalências. Em geral, porém, as pesquisas sociais mostram que a maior parte das pessoas usa a internet não para abrir a própria visão mas para fechar-se dentro de cercados, para construir ‘zonas de conforto’.”[3]

A política e seus discursos transformam-se, dessa forma, em um grande mercado, a publicidade de falas incendiárias e irresponsáveis fomenta cada vez mais essa nova indústria. Contraria-se até mesmo a lógica liberal, para a qual uma economia de mercado seria desejável enquanto uma sociedade do mercado seria abominável[4]. Para além disso, uma análise mais profunda revela que no espectro atual, os “mercadores-políticos”, ou melhor, os marqueteiros, vendem produtos iguais com rótulos diferentes.

As reflexões que se fazem necessárias: a quem serve essa divisão social pautada no desprezo da argumentação adversária? Será que ela favorece de fato a criação de um discurso político coerente para o país ou apenas serve de distração na busca, a qualquer custo, pelo poder?

Ocorre, todavia, que estamos ingressando em uma nova seara, distinta das que até aqui foram abordadas. Ultrapassamos as fronteiras clássicas das paixões e ingressamos no mundo do Direito, da Constituição da República, dos Direito e Garantais Fundamentais, contudo, parece-nos que trouxemos na bagagem o ranço da paixão extremada que aqui pode se tornar o estopim de um perigoso processo de ruptura institucional ou de retrocessos em relação a garantias e direitos duramente conquistados ao longo de pouco mais de 27 anos. Isto é, transformar questões eminentemente jurídicas em uma euforia apaixonada é um equívoco tremendo, e mais perigoso se torna quando os protagonistas (Poder Judiciário, Ministério Público, Advocacia Pública e Privada) ingressam nesse circuito. Mesmo que tenha se tornado comum, por exemplo, há algum tempo, os julgamentos ao vivo das sessões plenárias do Supremo Tribunal Federal, será que é razoável a exposição de um ministro da Suprema Corte ao esbravejar em uma entrevista um posicionamento contrário a um determinado partido político? O que se pode esperar de um juiz que, no curso de um processo sob sua competência, pede o apoio da sociedade? Como devemos interpretar abaixo-assinados de membros da magistratura e do ministério público sobre a legalidade de atos de uma investigação, de pedido de prisão preventiva ou de qualquer tema que diga respeito às suas respectivas competências constitucionais?  Indaga-se ainda: quais os efeitos de tais atos perante à sociedade? Quem irá apaziguar os ânimos diante de um conflito social? Quem terá legitimidade para fazê-lo? É importante consignar que os membros da magistratura e do ministério público não extraem sua legitimidade do voto popular, mas da Constituição da República, logo, acima de qualquer disputa política ou social estão os juízes circunscritos à lei.

Na quadra vivida, em que a política e a relações sociais são judicializadas diuturnamente e o direito penal é tomado como elixir para todos os males, as Instituições do Estado Democrático de Direito precisam fazer da Constituição e das leis os anteparos para as arbitrariedades. O gosto pessoal de quem julga ou acusa e a figura de quem é julgado não podem ser levados em conta em um processo, sob pena de colapso do secular princípio do devido processo legal (due process of law). Se a opinião pública, em tempo de discursos inaudíveis, paixões extremadas e concentração dos meios de comunicação, pautar os julgamentos judicias, passaremos a ter, na verdade, linchamentos sufragados pelo judiciário. Aquele que busca na opinião pública a legitimidade de suas decisões não poderá mais decidir senão com base nela, portanto, tem-se perdida a imparcialidade do juiz e, consequentemente, um importante freio ao desmando estatal, esvazia-se o “guardião das promessas”.

As redes sociais, nesses termos, são espaços “públicos” de liberdade pela qual os sujeitos do direito tem se utilizado de forma preocupante. Mas é claro que assim como na sociedade real, na virtual também se enfrenta o problema dos limites da liberdade, principalmente sobre os discursos de ódio. Por outro lado, cabe ressalvar que diferentemente da sociedade real (não virtual), é necessário se avaliar em que medida os discursos virtuais extrapolam esta virtualidade e atingem a concretude do real. Portanto, atenta-se para que os direitos e seus necessários limites e condições nos espaços virtuais da internet (e nas redes sociais) devem ser estudados de forma diferente do que ocorre em sociedade apesar de com elas se assemelharem. Tem-se, por fim, a proteção destes direitos e o receio de que os limites impostos a estes não estabeleça um controle excessivo de modo a torná-los ineficazes.

Deve-se ter em mente que não se parte aqui de um discurso elitista intelectual em que pressupõe-se que uns discursos são legítimos e outros não, mas que os discursos devem perquirir a construção de uma sociedade melhor. Assim sendo, não se trata de estabelecer uma metódica para que se possa discutir, mas de observar onde estes debates tem nos encaminhado. O que se percebe é que o povo, colocado diante de um grande mercado político e jurídico, demasiadamente expandido com as redes sociais, transformando a política e o direito em prato presente no seu dia-a-dia, passou a reproduzir ofertas como se mercadores fossem, utilizando das mesmas técnicas de venda dos oponentes (ou de inimigos), mas sem auferir avanço razoável para a República. A quem, realmente, serve esse modelo e forma de agir?

Por fim, nesses momentos de insegurança política e jurídica, os juristas devem desempenhar um papel de suma importância: evitar que nossa Constituição perca seu valor. Não se trata aqui de ser advogado de um ou outro lado, trata-se sim de buscar o respeito pelo texto constitucional de 1988. O papel do jurista, como formador de opinião, deve demonstrar o que a Constituição da República desenha e delimita no jogo político e, a partir disso, defender uma legitimação da política. Só por esse caminho podemos nos realinhar no caminho de uma democracia melhor, uma política decente, uma sociedade mais consciente e, por isso, mais justa.


Notas e Referências:

[1]  HOBBES, T.. Hobbes’s Leviathan reprinted from the edition of 1651 with an Essay by the Late W.G. Pogson Smith. Oxford;Indianapolis: Clarendon Press; Liberty fund. 2016

[2] RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, 2008

[3] “Bauman examina crise da internet e da política”. http://outraspalavras.net/capa/bauman-examina-crise-da-internet-e-da-politica/.  Acesso em: 11/03/2016.

[4] Ideia muito trabalhada por Boaventura de Sousa Santos: http://visao.sapo.pt/jornaldeletras/ideias/boaventura-sousa-santos-para-uma-sociedade-melhor-desmercadorizar=f605755


Alexandre Fadel

. Alexandre Pinho Fadel é Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor da Universidade da Amazônia (UNAMA) e da Faculdade Metropolitana da Amazônia (Famaz). Pesquisador do Direitos Humanos, Ética e Hermenêutica (UFPA) e do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições – LETACI (PPGD/UFRJ). E-mail: pinhofadel@gmail.com


Andrey Lucas Macedo Corrêa. Andrey Lucas Macedo Corrêa é Bacharelando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU com período de mobilidade internacional na Universidade de Coimbra-Portugal. Bolsista de iniciação científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq e bolsista de mobilidade internacional pela UFU. Pesquisador do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU.


Karina Almeida Pinhão

Karina Almeida Pinhão é Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC -Rio/Brasil. Especialista em Direito Constitucional-Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ/Brasil. Mestranda em Ciências Jurídico-políticas com menção em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra - Portugal. Pesquisadora do Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados – LAECC/PPGD-UFU. E-mail: pinhao.karina@gmail.com

Imagem Ilustrativa do Post: listening to the light // Foto de: Derek Swanson // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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