Discurso do Ódio e o Limite Democrático

01/09/2017

Por Flávio Baumgarten - 01/09/2017

Mais de uma semana após o conflito em Charlottesville parece que uma das principais discussões geradas é sobre a possibilidade de discursos de ódio, supostamente abarcados pela liberdade de expressão. Dessa forma, muitos foram os que defenderam que a liberdade de expressão não poderia ser restringida, por mais insano ou racista, e principalmente, irresponsável, que um discurso possa ser, já que “o remédio a ser adotado [para a falsidade e falácias] é mais diálogo, não silêncio forçado.”[1].

O objetivo aqui não é discutir se a liberdade de expressão garante o discurso de ódio, tampouco se a manifestação dos nazistas e supremacistas brancos, em Charlottesville, está, ou não, abarcado pela liberdade de expressão, – apesar de serem feitas referências aos acontecimentos a título de exemplo ao final -, mas sim, ainda que aceitando o discurso de ódio, busca-se refletir se, de fato, a liberdade de expressão pode ser um direito que não pode ser limitado, ou se, pelo menos em alguns casos, mesmo o discurso de ódio encontra um limite.

As normas jurídicas são divididas em duas espécies, ou são regras, ou são princípios. Aquelas são mandamentos definitivos que exigem algo numa medida exata, nem mais, nem menos; em sentido oposto, os princípios são mandamentos de otimização, exigindo sua realização tanto quanto for possível, dadas as circunstancias fáticas e jurídicas do caso concreto[2].

Como as regras exigem algo na medida exata, quando duas entram em colisão, ou uma deve ser determinada como clausula de exceção da outra, ou em casos mais graves, uma deve ser considerada inválida[3]. Os Direitos Fundamentais são princípios, portanto exigem sua realização na maior medida possível, sendo assim, a chance de que eles entrem em conflito é tanto maior que no caso das regras. Este conflito de princípios, no entanto, não pode ser resolvido com um deles sendo expurgado do ordenamento jurídico, mas estabelecendo uma relação de precedência de um sobre o outro naquele caso concreto em específico[4]. Dessa forma, o conflito de Direitos Fundamentais estabelece uma relação de precedência relativa, pois aplica-se apenas àquele caso concreto. Pode-se expressar esta ideia na seguinte formulação: (P1PP2)C [5]. Essa relação de precedência se dá mediante ponderação entre os princípios em questão[6], que se realiza por meio das técnicas de discurso prático racional[7].

Dito isso, a simples menção à liberdade de expressão não legitima o discurso de ódio, visto que direitos fundamentais não possuem precedência absoluta, mas apenas relativa, em face de uns com os outros[8]. Porém, tomando o discurso de ódio como aceito precisa-se buscar uma justificativa para ele que não a ausência de limitação da liberdade de expressão. É o que se passa a fazer.

Para aceitar o Discurso de ódio então, é preciso aceitar que nossa dignidade como indivíduos, somente pode ser mantida caso não possamos ser privados de manifestarmos nossos pensamentos, sejam eles quais forem[9], já que o ser humano é um ser social e a comunicação faz parte da nossa construção de identidade, bem como é a exteriorização do direito de livre pensamento[10]. Consideremos também que, a expressão de crenças individuais, mesmo que odiosas, constituam parte da democracia, e que, de fato, conforme dito acima, o discurso de ódio ajude a evidenciar o preconceito e a combatê-lo[11].

O fato é que mesmo aceitando os argumentos supracitados em defesa do discurso de ódio, ainda é possível dividir este em duas espécies, a primeira se constitui de expressão de uma ideia – ainda que preconceituosa – e uma tentativa do processo democrático e deliberativo[12]; a segunda tem como objetivo a pura tentativa de ofender e humilhar o público alvo – de modo geral minorias historicamente desprotegidas[13].

Assim sendo, parece ser claro que, talvez a primeira espécie até possa ser compreendida como juridicamente aceitável e, nessa hipótese, o discurso de ódio ser aceito, pois promoveria a liberdade de expressão dos manifestantes, bem como a discussão e conscientização, além da participação democrática. Já a segunda espécie, de modo algum poderia ser aceita; é que, quando não está presente o elemento deliberativo da manifestação, cai por terra o papel democrático, conscientizador e não promoveria a liberdade de expressão dos manifestantes o suficiente para sobrepor a dignidade humana daqueles que são o alvo do discurso. Assim, já encontramos um primeiro impedimento à liberdade de expressão, mesmo na figura do discurso de ódio.

Poderia se dizer, contudo, que no caso de Charlottesville os manifestantes não estavam expressando um mero discurso ofensivo, e que este possuía um elemento deliberativo e democrático contundente, já que a manifestação era primordialmente contra a retirada da estátua do General Lee de uma praça local. Porém, há que se considerar que tais manifestantes, por mais que estivesse presente o elemento deliberativo em suas reinvindicações, os mesmo portavam não apenas placas e materiais afins de uma manifestação – muitos os quais punham em dúvida se realmente o elemento deliberativo estava presente neste caso -, mas muitos carregavam fuzis, tochas e demais armas, todas expostas. Além disso, alguns ainda tinham em mãos, camisetas, escudos e armas brancas, com símbolos do grupo racista. Para piorar, alguns manifestantes que portavam armas, tanto de fogo, quanto brancas e escudos, vestiam mascaras da Ku Klux Klan, o que impossibilitaria qualquer responsabilização posterior, no caso desta ser necessária. Estes sinais criam uma ameaça real de formação, desenvolvimento, ou até, demonstração/publicização de um grupo paramilitar, o que evidenciava um perigo eminente à segurança pública.

Pode-se, então, observar que agora estamos diante de duas limitações ao discurso de ódio:

O primeiro limite se caracteriza por um discurso que não possui qualquer cunho deliberativo, já que não estaria presente o elemento democrático e nem conscientizador, que, por isso, viola desproporcionalmente a dignidade da pessoa humana de quem é atingido. Perceba-se que não se está utilizando do fato deste do discurso promover raiva e indignação nas demais pessoas como elemento caracterizador desta primeira hipótese, mas sim, o intuito e o objetivo buscado por quem está se manifestando, ou seja, se este está se manifestando, única e exclusivamente, para ofender e desmerecer a existência alheia.

O segundo limite é aquele no qual, mesmo com a presença do elemento deliberativo, e, portanto, democrático e conscientizador, cria um risco grave à segurança pública pelo porte de fuzis, tochas e demais armas de fogo, bem como escudos, armas brancas e camisetas com símbolos próprios, o que também torna esta medida juridicamente inaceitável.

Muitos argumentos contra o discurso de ódio ainda poderiam ser manifestados, por exemplo, que este tipo de manifestação correria o risco de produzir em algumas minorias o sentimento de inibição de participar do espaço público[14], porém, o objetivo aqui buscado era meramente verificar se seria possível, pelo menos em alguns casos, que o discurso de ódio pudesse ser legitimamente limitado. O quê, conforme pôde se demonstrado acima, as hipóteses disto existem, e são mais próximas do que imaginamos. Portanto, mesmo que se aceite o discurso de ódio, este nunca poderia ser ilimitado, para que se evitem atos ilícitos, e até crimes, travestidos de manifestação, sejam aceitos.


Notas e Referências:

[1] Whitney v. California, Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/274/357. P. 377 e 378. Último acesso em: 21/08/2017.

[2] Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, 2008. P. 90 e 91.

[3] Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, 2008. P. 92 e 93.

[4] Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, 2008.  P. 93 à 103.

[5] Leia-se: o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2, no caso concreto C. Dessa relação decorre a regra de precedência R, que diz que para todo caso C o princípio P1 deve prevalecer sobre o princípio P2, ou seja, C→R. Contudo, qualquer alteração nas peculiaridades do caso concreto (C), esta relação de precedência deve ser reavaliada. Teoria dos Direitos Fundamentais. P. 99 e 164.

[6] Importante ressaltar que antes de se ponderar os princípios colidentes, é necessário realizar um exame de Adequação, em seguida de Necessidade, para então se chegar à ponderação; ou seja, primeiro se questiona se a medida averiguada é apta a fomentar a realizar a princípio a ser promovido, em seguida se dentre as medidas igualmente apta, ela é a que menos restringe o princípio contrário, para, enfim, chegar-se à ponderação.

[7] Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, 2008.  P. 593 à 610.

[8] Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, 2008.  P. 111 à 114.

[9] Ronald Dworking. Why must speech be free? Freedom’s law: the moral reading of the american constitution. Harvard University Press, 1996. P. 200.

[10] José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, 2016. P. 243

[11] Nota de rodapé 1 deste texto.

[12] Júlio César Casarin Barroso Silva. Liberdade de Expressão e Expressões de Ódio, Revista Direito GV, São Paulo, 11(1)/p. 37-64/JAN-JUN 2015. P. 54.

[13] Júlio César Casarin Barroso Silva. Liberdade de Expressão e Expressões de Ódio, Revista Direito GV, São Paulo, 11(1)/p. 37-64/JAN-JUN 2015.  P. 54.

[14] Júlio César Casarin Barroso Silva. Liberdade de Expressão e Expressões de Ódio, Revista Direito GV, São Paulo, 11(1)/p. 37-64/JAN-JUN 2015.P. 56.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Malheiros Editores, São Paulo. 2008.

DWORKIN, Ronald. Why must speech be free? Freedom’s law: the moral reading of the american constitution. Harvard University Press, 1996.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros Editores, São Paulo. 2016.

SILVA, Júlio César Casarin Barroso. Liberdade de Expressão e Expressões de Ódio, Revista Direito GV, São Paulo, 11(1)/p. 37-64/JAN-JUN 2015.

Whitney v. California. Legal Information Institute. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/274/357. Último acesso: 21/08/2017.


Flávio Baumgarten. Flávio Baumgarten é acadêmico de Direito da Faculdade CESUSC,  membro-fundador da Sociedade de Debates da mesma instituição, e Presidente do Centro Acadêmico João Luiz Duboc Pinaud. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Charlottesville "Unite the Right" Rally // Foto de: Anthony Crider // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/acrider/35780277204/in/album-72157685215725283

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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