Discurso de Posse na Defensoria Pública do Amazonas, em 11 de fevereiro de 2019

16/02/2019

 

Bom dia a todas e todos. O tempo de colher frutos é também tempo de agradecer. Às nossas famílias, amores, amigas e amigos. Com vocês, as emoções têm tamanhos. Hilda Hilst, num conjunto de poemas entitulado “Poemas aos Homens do nosso Tempo”, nos fala: “Dizer que coisa ao homem, propor que viagem? Reis, ministros, e todos vós, políticos, que palavra além de ouro e treva fica em vossos ouvidos? (...) Lúcidos? São poucos. Mas se farão milhares, se à lucidez dos poucos te juntares.”

Um tanto disso é o trabalho da Defensoria Pública. Somos poucos (por enquanto), mas somos feitos de utopias. Nos faremos milhares.

Um diálogo de Valter Hugo Mãe, em seu livro “O Filho de Mil Homens”, diz o seguinte: “Todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é, sobretudo, a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós”.

Nós, todos os presentes neste auditório hoje, somos seres sociais, emocionais, afetivos e políticos. Viver é um ato político. Angela Davis, no livro “Mulheres, Cultura e Política”, nos diz que "A política não se situa no pólo oposto ao de nossa vida. Desejemos ou não, ela permeia nossa existência, insinuando-se nos espaços mais íntimos". No Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha, há pouco mais de ano, Angela nos lembrou de Lélia Gonzales, que insistiu que não só deveríamos compreender a complexa inter-relação entre raça, classe e gênero, mas que deveríamos ter em mente as conexões entre os povos negros e os povos indígenas.

Percebermo-nos é perceber também quem está diante de nós.

Mas o que leva um mortal a querer obrigar o outro a não ser quem se é? A antipatizar a orientação sexual que fuja da heteronormatividade? A impor à população indígena a adaptação a um modo eurocêntrico de vida? A negar aos indígenas e quilombolas a relação ancestral com suas terras? A discriminar, distinguir ou limitar alguém em razão de sua cor, ascendência, origem étnica? A hostilizar uma mulher que rejeite os padrões comportamentais do patriarcado?

Por isso precisamos, quantas vezes for necessário, falar sobre alteridade. Como defender algo que eu não vivi? Só o encontro é capaz de transformar o sentimento de incompletude em pertencimento.

Há pouco tempo, ao refletir sobre o desafio de ser defensora de direitos humanos, Vilma Reis, presidenta do Conselho Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas, falava a uma plateia que é tempo de resistência constitucional e vigilância cidadã. Tempo de repartir o poder.

Hoje, estamos aqui para fortalecer o corpo funcional da Defensoria amazonense na defesa do direito à igualdade, mas também do direito à diferença. A nossa função constitucional é, sobretudo, a garantia dos direitos humanos. E os direitos humanos
são direitos e liberdades básicas de absolutamente todos nós. E não só nós que estamos aqui hoje neste lindo Palácio do Governador. Mas todos nós. 

O empoderamento, além de um instrumento de luta social e de erradicação das desigualdades, é um ato político coletivo. Joice Berth explica que ninguém se empodera sozinho. O empoderamento não é um processo solitário.

Djamila Ribeiro, ao explicar o que é lugar de fala, questiona quem tem direito à voz numa sociedade que tem como norma a branquitude, masculinidade e heterossexualidade pautando a existência. E a nossa voz aqui é uma voz de alguns muitos privilégios. É daqui que precisamos partir. Nós conhecemos suficientemente os nossos privilégios? Nós refletimos suficientemente acerca dos nossos privilégios? Há uma diferença abismal entre falar sobre algo e falar de algo. A escuta é coisa rara. Mas só através da escuta podemos ser ferramenta, emprestar nossa voz, propiciar uma multiplicidade de vozes. Repartir o poder.

A razão de existir da Defensoria Pública são os beneficiários dos nossos serviços. Mais do que respeitar a diversidade: nossa tarefa é amplificar o respeito à diversidade.

Dentre avanços e retrocessos, tal qual Sísifo, continuamos a empurrar pedra morro acima. Um exemplo. Quando a minha avó nasceu, as mulheres ainda não tinham direito a votar neste país. Quando a minha mãe nasceu, as mulheres, ao casar, se tornavam relativamente incapazes. Ainda estamos em fevereiro e mais de 100 casos de feminicídio já foram registrados no Brasil. Manaus registra em média 50 casos de violência doméstica por dia. O direito, este instrumento aparentemente belíssimo que nos parece tão caro, é tantas vezes utilizado como mais uma forma de opressão estatal.

Paulo Freire dizia que ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra. Vladimir Safatle diz que a luta política é sobre formas diferentes de vida que se organizam a partir de afetos. Estar aqui, hoje, nos faz ter certeza de que somos o que fazemos e de que sermos Defensoras Públicas e Defensores Públicos revela a rota que escolhemos seguir: olhar nos olhos das pessoas, impulsionar estratégias de inclusão, alterar históricos de silenciamento e perceber quem está diante de nós. É por vocês e para vocês que estamos aqui hoje.

O que desejamos, para esta trajetória, é a certeza de viver no afeto.

Acreditamos piamente na atuação da Defensoria Pública enquanto agente de transformação social porque ansiamos pela emancipação do povo brasileiro em sua parcela mais vulnerabilizada. É mais do que uma honra – é uma missão – fortalecer esta Instituição e defender o legado que a Defensoria está vivendo.

Quanta potência, Amazonas. 

Estamos todos, hoje, no início de uma estrada em conjunto. Thiago de Mello, poeta amazonense, nascido em Barreirinha, o poeta da floresta, no poema Para os que virão, dizia: “Como sei pouco, e sou pouco, faço o pouco que me cabe me dando inteiro. É tempo sobretudo de deixar de ser apenas a solitária vanguarda de nós mesmos. Se trata de ir ao encontro... Se trata de abrir o rumo. Os que virão, serão povo, e saber serão, lutando”..

Muito obrigada.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Justice // Foto de:Becky Mayhew // Sem alterações

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