Discurso de justificação da pena - Parte 4 (Ferrajoli)

09/06/2015

Por Salah Hassan Khaled Junior - 09/06/2015

(Leia aqui: Parte 1 / Parte 2 / Parte 2.1 / Parte 3)

O chamado garantismo de Luigi Ferrajoli chegou de forma significativa ao Brasil no início do milênio. Recepcionado festivamente pelos penalistas brasileiros entusiastas da democracia, foi submetido a um processo de estigmatização nos anos posteriores que transformou a expressão "garantista" em etiqueta com conotação visivelmente pejorativa. Os garantistas foram considerados verdadeiras pragas: para quem estava acostumado com o status quo antidemocrático, o garantismo era visto como uma epidemia que precisava ser combatida e de forma ferrenha. O discurso que associava garantismo com impunidade se disseminou de tal maneira que a proposta de um "juiz de garantias" praticamente foi sepultada simplesmente com base na nomenclatura escolhida.

De qualquer modo, esta coluna não pretende estabelecer uma abordagem extensiva do garantismo. Para uma leitura nesse sentido, veja aqui. A intenção é bem mais modesta: identificar a teoria de justificação da pena presente na obra de Ferrajoli, ainda que de forma sintética. Como se sabe, Direito e Razão: teoria do garantismo penal é o produto mais acabado da construção teórica do Direito Penal moderno. Ferrajoli efetivamente sistematizou os postulados da narrativa jurídico-penal que emergiu no século XVIII, concebendo um sistema garantista por ele tido como condizente com o Estado Democrático de Direito contemporâneo. Como herdeiro dessa significativa tradição, Ferrajoli pode ser visto como expressão máxima tanto de suas qualidades – e de fato, não são poucas – como também de seus – muitos – limites discursivos, particularmente no que se refere ao aspecto de legitimação/deslegitimação do poder punitivo. A antinomia instalada por Beccaria entre legitimação e contenção também é visível na estrutura de pensamento de Ferrajoli, como também são visíveis muitas outras incongruências – ou no mínimo reservas – que de algum modo comprometem a vocação democrática da teoria.  Poderia citar, por exemplo, a manutenção da expressão "busca da verdade", bem como de um conceito de verdade como correspondência (ver aqui), a ideia de contrato social como metáfora da democracia (ver aqui) e muitas outras interrogações. Mas por uma questão de recorte, o objeto da análise aqui proposta – de forma sucinta e compatível com uma coluna – é o utilitarismo renovado de Ferrajoli.[i]

Ferrajoli critica o utilitarismo clássico, estruturado com base no viés preventivo. O leitor que vem acompanhando a série de colunas sobre as teorias da pena já conhece boa parte dessas críticas, estruturadas inicialmente aqui.  Ferrajoli reconhece que o utilitarismo sucumbe facilmente a tentativas de autolegitimação autoritária e argumenta que ele acaba fornecendo critérios de deslegitimação.

A questão que imediatamente surge é mais que óbvia: o utilitarismo renovado não é também vulnerável a tais críticas? O juízo é do leitor. Mas eu particularmente penso que sim: um sistema como o proposto por Ferrajoli também é passível de desconstrução, tanto pela via abolicionista como pela leitura do realismo marginal de Zaffaroni, ou mesmo da criminologia de verniz crítico.[ii]

Ferrajoli estrutura a lógica de seu sistema em torno de dois vetores: a) o máximo bem-estar dos não desviantes; b) mínimo mal-estar necessário dos desviantes. Desse modo, a intenção preventiva compreenderia tanto a prevenção de delitos como de penas informais, sendo estes os objetivos justificantes do Direito Penal. Uma vez que ele também acaba dando crédito ao aspecto de prevenção de delitos e com isso, designando ao Direito Penal funções positivas, logicamente torna-se receptáculo de críticas destinadas a Roxin (aqui e aqui) e Hassemer (aqui). Ferrajoli efetivamente justifica o exercício do poder punitivo, uma estratégia que considero particularmente contraproducente. De qualquer modo, não se pode culpar Ferrajoli por pensar assim. Um autor comprometido com a tradição na qual ele está inserido dificilmente poderia dar um passo além de algo que é tão constitutivo do Direito Penal moderno. Por outro lado, a catástrofe brasileira precisa de algo mais do que justificacionismo – penso que devemos rejeitá-lo – e por isso tenho dito insistentemente que é necessário conceber o sentido do Direito Penal de acordo com a especificidade da nossa realidade marginal. E para isso, é preciso abandonar o fetiche pelo pensamento importado e desconectado com os problemas locais, o que exige uma atitude positivamente decolonial, que deve partir de uma rejeição à tentação que representa acreditar na capacidade do Direito Penal para proteger, tutelar e prevenir danos a bens jurídicos. Como já repeti inúmeras vezes, o poder punitivo é o maior agente de destruição de bens jurídicos que a história recente da humanidade conheceu, não só na América Latina como no mundo.

Mas Ferrajoli não pensa assim. Para ele, o desenvolvimento do Direito Penal se dá como negação da vingança privada. Trata-se de uma argumentação rotineiramente desenvolvida nos cursos, manuais e tratados de Direito Penal, o que – com o perdão da palavra – conforma um verdadeiro delírio que contraria de forma flagrante a história de institucionalização do poder punitivo.[iii] Ferrajoli nutre uma visão romântica do Direito Penal, típica de quem tem uma percepção muito mais positiva do advento da modernidade do que a realidade permitiria (ver aqui).

Ele considera que a função do Direito Penal guarda relação com um papel positivo que ele é chamado a desempenhar: para ele, as proibições penais são dirigidas para a tutela de direitos fundamentais. Em um modelo de Direito Penal mínimo, uma argumentação nesse sentido certamente despertaria maior simpatia. Mas a legislação penal contemporânea caminha em direção tão apartada da ultima ratio que pensar assim parece quase que uma alucinação de quem está tão preocupado com o dever ser que acaba se esquecendo do próprio ser. E o pior de tudo é o quanto essa ideia é facilmente sequestrável pelo pensamento autoritário, como elemento de legitimação de práticas típicas de um estado de polícia. Não é por acaso que a expressão garantismo integral ganhou tanto espaço recentemente. Ferrajoli não está livre deste mal que é a crença na bondade do poder punitivo e por isso vários crentes encontraram nele um inesperado lugar de conforto, o que vale inclusive para devotos dessa religião que no passado satanizaram o garantismo.

Segundo Ferrajoli, os objetivos justificantes do Direito Penal podem ser visualizados no processo: acusação e defesa se confrontam em contraditório diante de um juiz que deve ser um terceiro imparcial. A primeira está interessada na defesa social, na prevenção e punição de delitos, enquanto a segunda na defesa individual e prevenção de penas arbitrárias. Que não se tenha uma impressão equivocada: é evidente que Ferrajoli não concordaria com a apropriação discursiva que é feita de sua teoria. Mas não é difícil perceber que nos deparamos aqui com um dos núcleos do discurso autoritário: a ideia de que no processo temos uma espécie de confronto entre os interesses do acusado e os interesses da sociedade, que facilmente degenera na falácia de que a forma e até mesmo as garantias podem ser flexibilizadas em nome dos interesses de dita "sociedade" ou da opinião pública (na verdade, opinião publicada). Caminham nessa direção tanto o famigerado in dubio pro societate  como uma certa leitura da proporcionalidade que é particularmente apta a capacitar o decisionismo típico de um magistrado travestido de inquisidor, algo que certamente não teria a simpatia de Ferrajoli.

Ferrajoli reconhece que existem objetivos e interesses conflitantes, uma vez que a possibilidade de prevenção de delitos é efetivamente mínima, enquanto que a possibilidade de prevenção de penas arbitrárias é máxima, desde que os postulados do sistema por ele proposto sejam seguidos, é claro. Logicamente essa consideração deve(ria) demarcar a ênfase do funcionamento do sistema penal, que para ele tem capacidade para desempenhar uma dupla função proibitiva do exercício das próprias razões e com isso proteger tanto possíveis ofendidos como acusados (e inocentes ameaçados). Ferrajoli considera que a "tutela de valores e direitos fundamentais e sua satisfação mesmo contra interesses da maioria é o objetivo justificante do DP". Isso compreende: a) proibição de proibições e punições arbitrárias; b) Respeito às regras do jogo; c) preservação da dignidade da pessoa do imputado.

Segundo Ferrajoli, a justificação do Direito Penal só é possível se a soma das violências (delitos, vinganças e punições arbitrárias) que ele é capaz de prevenir é superior à violência dos delitos não prevenidos e penas cominadas. O próprio Ferrajoli considera que um cálculo dessa espécie é impossível, restando para ele a pena justificada como mal menor e, logo, necessária.

De minha parte, não há como não se sentir insatisfeito com a conclusão do argumento. A provocação que merece ser esboçada aqui é mais do que clara: qual o nível de benefício que extraímos de um sistema como o nosso – que sem dúvida nem remotamente se assemelha ao que Ferrajoli define como garantismo – desde a perspectiva do critério proposto pelo autor? Mesmo que a pergunta não possa ser respondida – até porque a cifra negra sempre colocará em questão o seu próprio fundamento – a realidade vivida por um sistema com o nível de seletividade e brutalidade do nosso parece fazer com que ele seja irremediavelmente vítima de uma profunda deslegitimação. Sem dúvida isso parece mostrar o quanto é irresponsável a tentativa de legitimação do sistema penal brasileiro com base na teoria de Ferrajoli e mais ainda, as tentativas de fazer com que ele atue de forma ainda mais incisiva com base em tal teoria.

Não que isso baste para que não tentem. E o pior é que há quem dê ouvidos.

Abraços e até a próxima semana!


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Notas e Referências:

[i] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

[ii] Uma desconstrução aprofundada do utilitarismo renovado de Ferrajoli terá que aguardar. Esta é apenas a versão inicial de um texto em construção, que integrará uma obra específica de Direito Penal, com previsão de publicação para 2016.

[iii] Ver FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003 e ZAFFARONI, Eugenio Raúl, SLOKAR, Alejandro e ALAGIA, Alejandro. Derecho Penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2002.


                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       


Imagem Ilustrativa do Post: Jail // Foto de: Luigi Caterino // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/luigipics/401770711 Licença de uso: https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/legalcode


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