Discurso de justificação da pena - Parte 3 (Hassemer)

02/06/2015

Por Salah Khaled Jr. – 02/06/2015

(Leia aqui: Parte 1 / Parte 2 / Parte 2.1 / Parte 4)

As inúmeras contribuições de Winfried Hassemer para o Direito Penal são mais do que reconhecidas. Acadêmico com numerosa e significativa produção e juiz da Corte Constitucional alemã, teve inclusive algumas obras publicadas no Brasil (Introdução aos fundamentos do Direito Penal; Direito penal: fundamentos, estrutura, política e Introdução à criminologia, em parceria com Munõz Conde). Faleceu no ano passado e deixou um legado que merece todo respeito (veja aqui).

Evidentemente isso não impede que existam discordâncias, particularmente no que diz respeito ao âmbito da temática desta série de colunas, que consiste na desconstrução dos discursos de justificação da pena. [1] Assim como Roxin (ver aqui e aqui), Hassemer também dá crédito ao poder punitivo, justificando a pena através de uma argumentação que efetivamente responde ao "por que punir?" e com isso funciona como elemento discursivo de legitimação.

Hassemer introduz a discussão sobre o sentido da pena criticando a retribuição e o conhecido exemplo da ilha de Kant.[2] Para ele a situação retratada por Kant contraria as bases sociais e humanitárias dos fins preventivos do Direito penal; não há nenhuma intenção de ressocialização ou intimidação, nem mesmo de reparação de danos (já que com a dissolução da sociedade nada disso teria sentido): resta somente a realização da justiça. Uma justiça definida por Hassemer como peculiar, rígida, estrita, vingativa e que visa destruir a vida do condenado. Para Hassemer é uma concepção peculiar do sentido da pena, elitista e quase arrogante.

Não há dúvida de que a leitura de Kant é inaceitável e quanto a isso certamente é preciso concordar com Hassemer, ainda que a crítica pudesse contemplar também outros aspectos. Mas como já vimos desde a primeira coluna, a simples rejeição da retribuição não é suficiente para a concretização de um horizonte agnóstico de descrença no poder punitivo (ver aqui)

Se por um lado Hassemer critica a retribuição, por outro lado recepciona a prevenção geral negativa e a prevenção especial positiva, ainda que de forma muito distinta do que encontramos em Roxin, por exemplo. De qualquer modo, Hassemer entende que elas não são mais suficientes para esgotar o sentido da pena no contexto contemporâneo.

Segundo Hassemer, as teorias preventivas prometem a recuperação dos delinquentes condenados ou a intimidação dos delinquentes potenciais, ou seja, de todos nós. A sociedade pensa assim e os políticos também pensam assim: baseiam suas posições na eficácia do Direito Penal e o fazem criando novas figuras penais e endurecendo as penas, confiando ao Direito Penal a solução de inúmeros problemas que esperam resolver com a ameaça penal e em casos extremos, com a pena de prisão. Não é por acaso que eu disse em outras oportunidades que o discurso da prevenção geral negativa é facilmente cooptado pelos adeptos da maximização do sistema penal. Roxin também reconhece esse problema, mas assim como Hassemer, foi incapaz de romper com a prevenção geral negativa abrir mão dos aspecto de legitimação que ela representa. Como vimos, o máximo que fez foi colocar a prevenção especial a culpabilidade como limites a tais necessidades preventivas gerais.

Mas Hassemer considera que não se sustenta mais a ideia de que a pena deva ser compreendida exclusivamente a partir dos vetores assentados das teorias preventivas. Para ele, está superada a ideia de que o conceito de ressocialização deve ter relação somente com o delinquente: a vítima não aparece mais como uma simples figura de papel que encarna desde o ponto de vista sistemático a lesão ao bem jurídico, mas sim como uma pessoa viva (alguém de carne e osso), cujos interesses devem ser contemplados – desde um ponto de vista sistemático – na teoria dos fins da pena. Nesse sentido, está superada a orientação ao futuro dos conceitos de intimidação e ressocialização: uma visão retrospectiva que considere os interesses da vítima pressupõe necessariamente considerar os fatos ocorridos no passado e tê-los em conta para estabelecer a finalidade da pena, não como lesão abstrata da norma, mas como acontecimento concreto. Não é passado com o sentido vingativo de uma retribuição mas de uma reparação, o que de algum modo permite falar em uma perspectiva de ressocialização da vítima.

Segundo Hassemer, a atenção para a vítima agrega algo mais ao conceito normativo de pena: a satisfação ou reparação da vítima não significa apenas reparação do dano material causado; com a reparação da vítima é também feita referência a algo normativo, ou seja, a reabilitação da pessoa lesionada, a reconstrução de sua dignidade pessoal, a demarcação de uma linha divisória entre o comportamento justo e o injusto, a constatação ulterior para a vítima de que efetivamente foi vítima (e não delinquente nem tampouco protagonista de um simples acidente). Para Hassemer, é um sentido da pena muito diferente da ressocialização e da intimidação.

O dimensionamento apropriado dessa questão exigiria considerações quanto ao que efetivamente implica a introdução da vítima nos aspectos referidos por Hassemer na realidade alemã. De imediato os argumentos encontrariam muita ressonância no que se refere às vítimas da ditadura militar brasileira, por exemplo. Mas Hassemer não fala somente em situações dessa ordem. O sentido é muito mais abrangente. Sob esse aspecto, um diálogo com Garland pode ilustrar os reflexos na realidade estadunidense, que por sinal são muito semelhantes ao que testemunhamos no Brasil. [3]

Garland mostra como a preocupação com a vítima começou a interferir na individualização da pena, que passou a ser determinada muito mais de acordo com o sofrimento da vítima do que de acordo com a conduta do criminoso. Muitas leis foram batizadas com o nome de vítimas. Inclusive qualquer preocupação com o delinquente começou a ser vista como uma manifestação de desprezo pelo sofrimento da vítima. O criminoso passou a ser representado de forma estereotipada e distante da pessoa real. Os interesses dos criminosos (quando levados em consideração) são agora vistos como essencialmente opostos do público, conformando uma “autorização” para desconsideração de direitos. A lógica do valor do criminoso “zero” fez com que esse espaço fosse preenchido pela vítima: se não há vítima identificável, refere-se uma vítima coletiva: a “comunidade” e sua “qualidade de vida”.

Nesse sentido, de acordo com Hassemer, no Direito Penal não há apenas uma pessoa em particular que foi lesionada: a categoria vítima está configurada de forma mais ambiciosa e maior. "Vítima" de um delito somos todos nós, naturalmente não em sentido empírico mas em sentido normativo, já que o objetivo consiste em assegurar normas fundamentais. Para Hassemer, o Direito Penal não se ocupa somente da relação entre delinquente e vítima. Segundo ele, o que poderia ter alguma importância para a amizade e o amor (mesmo sobre eles o autor mostra dúvidas), não serve desde logo para o Direito Penal: na "relação" penal o delinquente e a vítima não estão sozinhos, pois todos somos afetados, mesmo quando o fato não é percebido pela coletividade. O Código Penal protege bens jurídicos, cujo reconhecimento é essencial para a convivência normativa e social de nossa configuração democrática. A vida em sociedade hoje em dia seria impossível de outra forma.

Apesar de ter elaborado um respeitável livro de introdução à Criminologia com Munõz Conde, Hassemer não consegue escapar do limite discursivo que é a atribuição de uma função de proteção de bens jurídicos ao Direito Penal. Como já referi em outras oportunidades, essa premissa não apenas parte de falsos dados sociais, como identifica o Direito Penal com a totalidade da cultura. [4]

Segundo Hassemer, o delito ataca normas de comportamento que pretendem proteger tais bens jurídicos, o que no caso concreto as deixa sem efeito. Para ele, este não é um problema exclusivo da vítima, mas de todos: as normas de comportamento somente podem sobreviver quando seu descumprimento é corrigido de forma pública e enérgica, quando se deixa claro que não vamos tolerar qualquer violação da norma, julgando essa violação e preservando a norma de qualquer tipo de negação.

Com certeza o leitor tem subsídios suficientes para fazer as conexões com Garland e perceber como essa argumentação é facilmente passível de apropriação por discursos que alavancam práticas punitivas típicas de um estado de polícia. Não parece aceitável que a vítima seja incorporada ao discurso penal para legitimar o exercício autoritário do poder punitivo estatal, quando foi justamente o poder punitivo que historicamente sequestrou o conflito e com isso eliminou as possibilidades de sua efetiva resolução. [5] Se a vítima deve ser reintroduzida e com isso revertida a sua expulsão, não deve ser como argumento de legitimação, mas como outro horizonte de significação, como propõem os defensores da justiça restaurativa.

Para Hassemer, vista assim, a sanção penal se orienta tanto para o passado quanto para o futuro: a sanção penal é uma resposta que corrige a violação de uma norma imprescindível para a vida em sociedade. Para ele, o Direito Penal estabelece um modelo de normas de comportamento fundamentais e irrenunciáveis e as impõe.  Os fins preventivos da pena (ressocialização do delinquente e intimidação da coletividade) têm seu lugar (ainda que modesto) neste contexto, pois ambos são meios de assegurar normas fundamentais. Hassemer chama seu ponto de vista sobre a questão da pena de prevenção geral positiva (que não pode confundida com a prevenção geral positiva de Welzel).

É evidente que poderia se dizer em defesa de Hassemer que o Direito Penal por ele defendido é mínimo. E isso é mais do que conhecido pelas valiosas discussões do autor sobre Direito Penal simbólico, bem como é visível pela proposta de um Direito Interventivo. Mas a realidade concreta de um Direito Penal hipertrofiado como o brasileiro torna de escassa valia a contribuição de Hassemer para quem argumenta com intenções de hostilizar o poder punitivo. Penso que é mais um caso de necessário cuidado para evitar que construções teóricas desenvolvidas para outros contextos sejam importadas de forma impensada e irrefletida para a nossa realidade marginal, que definitivamente exige uma maior ênfase no aspecto de contenção do poder punitivo necessário para a promoção da justiça social e combate da seletividade do sistema penal.

Abraços e até a próxima semana!


Notas e Referências:

[1] Recordo o leitor que colunas não equivalem a artigos estritamente acadêmicos e não devem ser julgadas como tais, uma vez que sempre carregam uma dose de simplificação. As colunas são apenas versões iniciais de textos mais densos sobre a temática, que farão parte de uma obra maior sobre Direito Penal que será publicada em 2016.

[2] HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad. Bogotá: Temis, 1999.

[3] GARLAND, David. A Cultura do Controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de. Janeiro: Revan, 2008

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, , ALAGIA, Alejandro,. SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo, , ALAGIA, Alejandro,. SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2010


                                                                                                                                                                                                                                        


Imagem Ilustrativa do Post: A lot like LOVE. // Foto de: Jason Clapp // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jasonclapp/2409474974 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura