Direitos humanos, gênero e raça no cárcere

24/10/2023

A inspiração advinda das duras vivências das mulheres negras na sociedade brasileira é essencial para sempre manter não somente em brasa, mas bem acesa a luta por direitos, uma vez que o reconhecimento de direitos e a posição de mulheres negras na estrutura social evidencia um longo caminho ainda a percorrer, diante das múltiplas violações da dignidade humana negra, que são inclusive endossadas por discursos e práticas racistas do nosso meio social, tanto de críticos como de apoiadores da promoção da igualdade racial.

Os obstáculos impostos a quaisquer avanços são diversos e muitas vezes de engenharia social bastante articulada e complexa. O campo de batalha é assim sorrateiro, pois até os supostos aliados estão ali para apontar infundados desalinhos e excessos das pautas de direitos, o que pode ser classificado até como uma Síndrome da Princesa Izabel, em que pessoas negras somente podem ter reconhecidos direitos, se aprovados e validados por pessoas brancas.

A centralidade da proteção de direitos humanos com a perspectiva racial causa receios e inseguranças, nas disputas de discursos, bens e direitos. Nesse contexto, é importante citar Cida Bento (2022, p. 87-88), que tratou em sua obra – O pacto da branquitude – um episódio que vivenciou:

[…] me lembro de quando, ao questionar uma pesquisadora branca a respeito da ausência de uma atividade discutindo a condição das mulheres negras em um seminário sobre trabalho, ela disse que mulheres negras têm uma história de vida tão dramática que isso ganharia uma ‘centralidade temática’, deslocando a atenção para a mulher negra, quando o propósito do evento era discutir as questões de gênero e trabalho.  

Os direitos humanos devem ser compreendidos como construções que assumem significados, por meio do contexto histórico e social, em que estão inseridos. Dessa forma, o passado escravocrata, que foi base do sistema econômico por séculos e gerou a riqueza das pessoas brancas, não pode ser dissociado do atual déficit de direitos da população negra, que foi atingida pelo ódio racial e pela exploração desumanizadora. 

Esse contexto deve ser um dos pontos fundamentais para a análise das ações necessárias para assegurar à população negra os seus direitos constitucionais, como, por exemplo, a identificação dos mecanismos que a leva a ocupar de forma majoritária o sistema penitenciário brasileiro. Não se pode olvidar que os índices de encarceramento da população negra são influenciados, entre outros motivos, pelo cenário de exclusão racial, social e econômica. Tais dados, se observados com olhares de gênero, tendem a indicar ainda os contornos da maior vulnerabilidade das mulheres negras. 

Outro aspecto importante é observar que os locais em que há reiteradas e graves violações de direitos humanos são ocupados majoritariamente pela população negra, como o sistema penitenciário, ao passo que espaços de poder e prestígio, como os Tribunais Superiores, são ilhas de exclusão e ausências negras[1].

Em 2021, os dados consolidados pelo Conselho Nacional de Justiça apontaram que 37 mil mulheres integravam a população carcerária, “representando 4,9% do total, com 17,5 mulheres presas a cada 100 mil habitantes” (O sistema prisional brasileiro fora da Constituição – 5 anos: balanço e projeções a partir do depois do julgamento da ADPF 347). Por outro lado, no que diz respeito ao perfil das mulheres presas em flagrante, os dados consolidados em recente pesquisa registram que “a maioria das mulheres são negras, jovens e com baixa escolaridade” (Mulheres presas e adolescentes em regime de internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até 6 anos de idade).

A necessária reflexão sobre direitos humanos, gênero e raça no cárcere é dever inadiável do Sistema de Justiça, cuja composição reflete, por ser espaço de poder, a presença majoritária e quase exclusiva de pessoas brancas. Conforme a análise da Promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz e da Procuradora Federal Chiara Ramos (2021, p. 199-200):

É árdua a tarefa de abordar o racismo entre as/os membras/os dos órgãos do sistema de justiça. A cegueira – e a consequente falta de empatia – quanto à questão racial faz com que as/os juristas desconsiderem fatores de extrema relevância para a prestação de um serviço que não se limite a garantir a manutenção do status quo. Nessa perspectiva, assumir o papel de desvendar os olhos da Justiça para as interseccionalidades de gênero e raça – e outras tantas – é assumir o risco de não ser compreendida e, até mesmo, de ser transformada de vítima em algoz.  

Assim, conclui-se que as mudanças esperadas das instituições ocorrerão no momento em que as pessoas negras, especialmente as mulheres, sentarem à mesa, para serem verdadeiramente ouvidas (Gonzalez, 2020).

 

Notas e referências 

Bento, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2018;

Conselho Nacional de Justiça. Mulheres presas e adolescentes em regime de internação que estejam grávidas e/ou que sejam mães de crianças até 6 anos de idade. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/04/eixo1-primeira-infancia-relatorio-final.pdf>. Acesso em 17 set. 2023;

Conselho Nacional de Justiça. O sistema prisional brasileiro fora da Constituição – 5 anos: balanço e projeções a partir do depois do julgamento da ADPF 347. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/06/Relato%CC%81rio_ECI_1406.pdf>. Acesso em 17 set. 2023;

Gonzalez, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In:_____. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Flávia Rios e Márcia Lima (Org.). 1ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 75-93;

Vaz, Lívia Sant’Anna; Ramos, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte, Casa do Direito, 2021.

[1] Nesse sentido, é preciso observar, por exemplo, o forte movimento contrário à pauta de indicação de uma jurista negra para o Supremo Tribunal Federal, o que evidencia os diversos obstáculos para que haja pluralidade institucional.

 

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