DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO PRIVADO

19/09/2019

Coluna Espaço do Estudante

Falar na relação entre direitos fundamentais e direito privado é penoso, tendo em vista a raiz histórica desse, amplamente conectado com a máxima valorização da autonomia de vontade, prezando pela ausência de interferência coercitiva do Estado. Tal modelo é oriundo, principalmente, do período posterior ao absolutismo europeu, representado sobretudo pelo Código Civil Francês de 1804. Portanto, uma limitação ao exercício da autonomia privada em virtude de direitos fundamentais é sempre um assunto delicado, uma vez que coloca em jogo até mesmo a base epistemológica do Direito Civil.

Esse cenário começa a auferir gradativas modificações no decorrer do século XX, com a crescente funcionalização dos institutos jurídicos, com enorme impacto na liberdade contratual e exercício do direito de propriedade. Tais institutos tem o condão de figurarem como maiores representantes do Direito Civil, concedendo azo para sua característica patrimonial, ou seja, o “ter” sobre o “ser”.

A reconstitucionalização na europa após as duas grandes guerras fez surgir uma espécie de nova teoria constitucional, deveras discutido por parte da doutrina esse caráter “novo”, isto é, o neoconstitucionalismo. Embora presente essa discussão, fato é que começa a ser desenvolvido na doutrina constitucional fatores como: a) reconhecimento da força normativa da constituição; b) expansão da jurisdição constitucional; c) desenvolvimento de uma nova dogmática de interpretação constitucional (BARROSO; 2016; p. 20-21).

Com efeito, começa-se a refletir acerca da constitucionalização do direito, com efeitos diretos e indiretos (SILVA; 2008; p. 46). Dentre os diretos, possível destacar a constitucionalização-transformação, a qual geraria uma crescente constitucionalização de diversos ramos do direito. Daí que se fala em Direito Civil Constitucional.

Em vista disso, é uniforme na doutrina nacional hoje a possibilidade da aplicação dos direitos fundamentais no direito privado, havendo divergências, no entanto, se essa aplicabilidade seria de modo direto ou indireto. Essa discussão é originária do paradigmático caso Luth julgado pelo Tribunal Constitucional Alemão, em 1958. Na oportunidade, a corte cuidava da possibilidade da aplicação da liberdade de expressão envolvendo dois particulares. Em decisão, ficou consagrada a tese da ordem objetiva de valores, com uma aplicação indireta dos direitos fundamentais entre particulares (SARLET; 2000; p. 64).

No Brasil, principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, há uma verdadeira cisão entre a doutrina que defenda a aplicação direta e a defensora da aplicação indireta. O presente artigo tem como fulcro apresentar as razões e fundamento de cada uma.

A teoria da eficácia indireta foi desenvolvida na Alemanha por Günter Dürig, negando a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações particulares sob o fundamento de que haveria a possibilidade de extinção da autonomia privada, principal identidade do Direito Civil. Estaria em jogo, ainda, a concessão de enorme poder ao Judiciário, podendo fazer interpretações solipsistas das normas abstratas costitucionais, acarretando decisões perigosas para o desenvolvimento da sociedade.

Assim, de acordo com a aplicabilidade indireta dos direitos fundamentais no campo privado, seria necessário uma atuação do legislador e mecanismos próprios do Direito Civil, como por exemplo o exercício das cláusulas gerais (SARMENTO; GOMES; 2011; p. 67-68). No Brasil, são diversos os autores que sustentam tal teoria.[1]

A limitação da autonomia privada é a maior preocupação dos defensores da teoria da aplicação indireta dos direitos fundamentais nas relações particulares. Ora, essa autonomia estaria em risco até mesmo em uma dicussão em reunião de condôminio, no qual, segundo autores, deveria haver o pleno respeito ao contraditório e ampla defesa se seguido os moldes da aplicação direta dos direitos fundamentais.

Por seu turno, a maior parte da doutrina nacional sustenta a aplicação direta dos direitos fundamentais entre particulares. Essa teoria foi desenvolvida, sobretudo, na Alemanha por Hans Carl Nipperdy. Para seus defensores, seria necessária sua adoção, em virtude dos direitos fundamentais constituírem normas expressando valores aplicáveis para toda ordem jurídica, em decorrência do princípio da unidade jurídica e da força normativa da constituição (SARLET; 2000; p. 62-63).

Nisso reside o impacto do neoconstitucionalismo, impedindo que qualquer ramo do direito fique à margem da Constituição, com o consequente fenômeno da constitucionalização do Direito Civil. Uma metodologia civil-constitucional seria suficiente para permitir a aplicação direta dos direitos fundamentais, em virtude de uma despatrimonialização e interpretação do sistema jurídico como unitário.

Além disso, os defensores nacionais desse tese sustentam que o artigo 5º, §1º, da Constituição Federal de 1988, por si só, bastaria para demonstrar o tratamento privilegiado que os direitos fundamentais ganham no sistema jurídico brasileiro atual. Há, inclusive, positivações de direitos fundamentais exclusivamente de caráter privado tal qual a proteção de correspondências e reparação por dano material e moral (RODRIGUES JR; 2019; p. 281).

Advogam também a irradiação da dignidade da pessoa humana sobre todo o sistema e não somente no Direito Constitucional, bem como a desigualdade fática existente entre as partes no país, principalmente quando envolve grandes empresas. Haveria, então, um dever geral de respeito e aplicação dos direitos fundamentais, não só por parte do Estado, mas também por parte dos particulares (Idem; Ibidem; p. 282).

A aplicação direta dos direitos fundamentais é defendida de modo majoritário hoje no Brasil[2], mas certamente encontra problemáticas advindas de sua base epistemológica. Há críticas hoje aos limites e natureza do neoconstitucionalismo, principal responsável por sustentar uma metodologia civil-constitucional que, por sua vez, permitiria de modo indubitável uma aplicação direta dos direitos fundamentais no direito privado.

 

Notas e Referências

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tadio do direito constitucional no Brasil). In THEMIS – Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará,v.4. n. 2. 2016;

PERLINGIERI, Pietro, Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2007;

_________________. O direito civil na legalidade constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2008;

RODRIGUES JR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro. Forense. 2019.

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em torno da Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais. In Revista do Direito do Consumidor, v. 26, 2000, p. 54-104;

SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito: Os Direitos Fundamentais nas Relações entre Particulares. São Paulo. Malheiros. 2008.

[1] Como autores que não adotam a vinculação direta pode-se citar: HECK, Luís Afonso. Direitos fundamentais e sua influência no Direito Civil. Revista de Direito do Consumidor, no 29, p. 40¬54, jan./mar. 1999; JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. RTDC: Entrevista com o Prof. Antonio Junqueira de Azevedo e RODRIGUES JR, Otavio Luiz. Direito Civil Contemporâneo: estatuto epistemológico, constituição e direitos fundamentais. Rio de Janeiro. Forense. 2019.

[1] Pode-se citar as seguintes obras em que há a defesa da eficácia direta dos direitos fundamentais: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed., rev., atual. e ampl, 2. tiragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015 ; FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: senti¬ dos, transformações e fim. 1. ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2014; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Iuris. 2006 e TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In Revista do Direito do Estado: RDE, N.2, abr/jun, 2006, p. 37-53.

[2] Pode-se citar as seguintes obras em que há a defesa da eficácia direta dos direitos fundamentais: SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed., rev., atual. e ampl, 2. tiragem. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015 ; FACHIN, Luiz Edson. Direito Civil: senti¬ dos, transformações e fim. 1. ed. Renovar: Rio de Janeiro, 2014; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Iuris. 2006 e TEPEDINO, Gustavo. Premissas metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil. In Revista do Direito do Estado: RDE, N.2, abr/jun, 2006, p. 37-53.

 

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