DIREITOS E CONTRATOS EM TEMPOS DE GLOBALIZAÇÃO: REFLEXÕES E CRÍTICAS AO DIREITO DIGITAL

20/07/2018

Coluna Espaço do Estudante

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente trabalho tem como objetivo analisar alguns aspectos do direito digital dos contratos. Busca-se, em linhas gerais, fazer uma reflexão crítica sobre a aplicação do direito digital na esfera das relações contratuais, à luz da obra Direito Digital de autoria de Patrícia Peck Pinheiro. O artigo fará algumas considerações, de cunho acadêmico, sobre pontos que a obra aborda, especificamente no que toca aos contratos. O trabalho se desenvolverá com o apontamento do assunto abordado na obra, seguido de algumas reflexões, interligando-as com as demais áreas do direito.

Os materiais utilizados como base da pesquisa foram a doutrina e legislação, fazendo-se uso de transcrições dos textos, tanto na forma direta, quanto indireta, quando imprescindíveis para o deslinde didático e informativo desta pesquisa, sempre no intuito de expandir o conhecimento sobre o tema, tornando-o mais compreensivo e instigador. Cabe registrar, ademais, que o presente trabalho não tem o condão de findar a discussão sobre as nuances trazidas pelo direito digital à contemporaneidade. Ao contrário, o objetivo é iniciar e ampliar a discussão crítica sobre o tema.

 

CONTRATOS E DIREITO DIGITAL: ALGUMAS REFLEXÕES NECESSÁRIAS

É certo que, historicamente, não se pode olvidar que tão antigo como o próprio ser humano é a definição de contrato, que surgiu a partir do momento em que os indivíduos passaram a se relacionar e a viver em sociedade. Isso porque, a própria ideia de sociedade, de sua essência, se extrai também a ideia de contrato, de composição entre partes (indivíduos sociais) com um objetivo específico (TARTUCE, 2016).

Em que pese o crescimento acelerado do direito digital fazer surgir a necessidade de aprimoramento das relações privadas, notadamente nas questões concernentes à orbita jurídica dos contratos, os elementos essenciais de criação dos pactos ainda permanecem e, neste prisma, Maria Helena Diniz, com propriedade, ensina que dois são eles. Um estrutural, que se constitui pela alteridade presente no conceito do negócio jurídico. O outro, funcional, formado pela composição de interesses contrapostos, porém, potencialmente harmonizáveis (DINIZ, 2009).

Sem embargo, possível afirmar que as exigências do direito digital de hoje são, em verdade, consequências da modernidade, posto que as normas que regulam a sociedade caminham de forma mais lenta que a tecnologia como um todo. Anthony Giddens há tempo alertava para uma um entrelaçamento entre o local e o global (a sociedade convergente do direito digital). Para Giddens, “o primado do lugar nos cenários pré-modernos tem sido destruído em grande parte pelo desencaixe e pelo distanciamento tempo-espaço. O lugar se tornou fantasmagórico porque as estruturas através das quais ele se constitui não são mais organizadas localmente. O local e o global, em outras palavras, tornaram-se inextrincavelmente entrelaçados. Sentimentos de ligação íntima ou identificação com lugares ainda persistem. Mas eles mesmos estão desencaixados: não expressam apenas práticas e envolvimentos localmente baseados, mas se encontram também salpicados de influências muito mais distantes. Até a menor das lojas da vizinhança, por exemplo, pode muito bem obter suas mercadorias de todas as partes do mundo” (GIDDENS, 1991, p. 121).

Imperioso reconhecer que, se de um lado a tecnologia caminha de forma mais acelerada do que as próprias normas que a regula, por outro, em atenção à coerência e ao desenvolvimento social, o direito como um todo deve buscar-se acompanhar dos avanços tecnológicos. Porém, pautado sempre nos princípios basilares da justiça, objetivo de toda e qualquer norma – considerando que o direito é o meio pelo qual se busca a justiça (considerando também que das mazelas jurídicas, políticas e sociais, a utopia da justiça talvez seja (é) a esperança do mundo melhor e quiçá o combustível daqueles que administram o Estado-sociedade – Judiciário, Executivo e Legislativo).

É de se destacar, outrossim, que todo direito (o que inclui o direito digital) deve ter uma função social, pois só é reconhecido para e pela sociedade a que se destina, conquanto é essa função social que dá conteúdo aos direitos/garantias, fornecendo-lhes direção e interpretação (SANTOS, 2004). Até porque, segundo a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei n. 4.657 de 04.09.1942), em seu art. 5º, “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Bom, embora a normatização de regência ainda careça de aprimoramentos no concernente ao direito digital e seu vertente avanço, não se pode exigir em demasia das instituições, notadamente das jurídicas, uma mudança tão rápida quanto a própria tecnologia, vez que tratar de direitos é tarefe complexa. Uma manifestação do legislativo, ou até mesmo do judiciário, é crível frisar, poderá ter repercussão nacional, e até mesmo influir nas relações internacionais do país.

É claro que o aprimoramento das normas é necessário. Contudo, não é desairoso observar que os grandes períodos da história jurídica “foram sempre constituídos por épocas nas quais a imagem do direito dos juristas estava consciente ou inconscientemente em consonância com a imagem da sociedade dominante nesse tempo” (WIEACKER, 1967, p. 716-717). Por isso, é de se entender que, não obstante o direito digital apresentar-se novo no mundo jurídico, é preciso tomar muito cuidado quando se aborda uma questão pragmática, como é o caso do direito digital dos contratos. A discussão deve ser pautada sobretudo, na serenidade. Sem atropelos – não mais do que aqueles da própria tecnologia!

Pertinente a ponderação da autora no tocante ao aumento da distância entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, como uma das consequências da sociedade convergente (sociedade virtual), isso em razão do analfabetismo digital, posto que muitos trabalhadores não têm preparação para lidar com a tecnologia. Todavia, ao que parece, ao sustentar a autora que no direito digital a norma deve ser genérica, aplicada ao caso concreto pela utilização da analogia e com recurso da arbitragem, em que o árbitro seja atualizado com a tecnologia do momento, faltam fundamentos concretos para melhor defender a ideia. Explica-se.

Seria um tanto quanto arriscado pensar num direito pautado em normas genéricas, ao passo que, como bem afirmou a autora, o mundo virtual cria um novo território, com dificuldades de demarcação. Essa ideia perde mais ainda a razão de ser quando se sustenta o uso da arbitragem. Isso porque, a resolução de um eventual conflito (considerando que não haveriam normas específicas, delimitando as decisões e o direito), ficariam sob o arbítrio de um indivíduo parcial – o árbitro.

Ainda que ambos os contratantes escolham o árbitro, imagine-se o caso de instituições de grande porte (bancos, por exemplo) em relação aos indivíduos economicamente hipossuficientes. Seria um tanto quanto ingênuo pensar que a livre formação das cláusulas do contrato seria plena, com igualdade de opinião entre ambas as partes.

Acredita-se que uma normatização genérica seria perigosa. Além do que, toda a proteção conferida aos hipossuficientes por meio do Código de Defesa do Consumidor não teria mais eficácia. Entende-se que, enquanto o direito é aplicado ao caso concreto por um juiz (imparcial, em tese, porque serve aos interesses do Estado e, este, também em tese, deve cumprir com o, sim, utópico pacto social) as abusividades seriam repelidas, enquanto que se tal tarefa é designada a um árbitro (reitero, parcial aos interesses da parte mais forte), corre-se o risco de a sociedade presenciar flagrantes injustiças – sim, o risco enquanto uma eventualidade deve ser visto em tese, porque o que se presencia hoje (com a intensa aplicação do Código de Defesa do Consumidor, inclusive), é que os abusos dos economicamente favorecidos é rotineira.

Será então que um direito digital com normas genéricas a serem aplicadas por meio da arbitragem seriam – também sob o ponto de vista teórico –, satisfatoriamente benéficas à sociedade, seja ela física ou virtual? Bom, pelo exposto, acredita-se que a resposta há de ser negativa. Nesse contorno, oportunas as palavras de Norberto Bobbio, segundo o qual “não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados” (BOBBIO, 1992, p. 25).

Não se está afirmando, com o presente, que o direito digital não precisa ser estudado. Do contrário, precisa ser substancialmente debatido. A presença do direito digital, sem embargo, é flagrante em todas as searas jurídicas. Porém, vislumbra-se sua maior (e necessária) aplicação no que diz respeito aos contratos. Estudar o direito digital no mundo dos contratos é de relevância ímpar. É certo, e com razão a autora, que o direito digital, em se tratando de contratos, vai ao encontro da celeridade, posto que as avenças podem ser firmadas em qualquer lugar (pense-se mundialmente) e tempo (pense-se em segundos, com um click no “aceitar termos de uso”).

Um ponto que, pelo que extraí das palavras da autora, não foi abordado e de importante observação nos contratos digitais é a questão da fiscalização da capacidade das partes contratantes. Ora, embora o contrato seja firmado virtualmente, ainda subsistem pressupostos de validade do mesmo. Como saber se quem está do outro lado da rede possui capacidade para contratar? E se quem contratou não possuía capacidade, mas o fez com outorga de quem podia, pode-se discutir a anulabilidade do contrato? Mas quem realmente firmou o contrato?

Em que pese essa situação não ficar satisfatoriamente esclarecida no texto, o direito digital, na ótica contratual, traz uma questão de direito ambiental sustentável muito interessante. Ao pensar que com as contratações virtuais, não mais existirá a necessidade de contrato físico, consectário lógico é o desuso de papeis em grande massa. Logo, diminuição de fabricação de papel e de seu descarte, após o cumprimento ou alterações nos contratos impressos.

Pensar um direito digital (e assim, contratos digitais/virtuais), nada mais é do que cumprir os objetivos fundamentais positivados pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, notadamente a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e garantir o desenvolvimento nacional (art. 3º, incisos I e II, respectivamente). O direito digital/virtual no mundo dos contratos, outrossim, entende-se ser uma das funções sociais do Estado contemporâneo. Nessa toada, com razão Cesar Luiz Pasold, quando propõe que o Estado Contemporâneo “tenha e exerça uma Função Social – a qual implica ações que – por dever com a sociedade – o Estado tem a obrigação de executar, respeitando, valorizando e envolvendo o seu SUJEITO, atendendo o seu OBJETO e realizando os seus OBJETIVOS, sempre com a prevalência do social e privilegiando os Valores fundamentais do Ser Humano” (PASOLD, 2003, p. 92-93). O direito digital, portanto, caminha para esta sociedade justa, livre e solidária, além de promover o desenvolvimento da nação.

Outra crítica que se faz ao debate traçado pela autora diz respeito ao Direito Penal/Direito Criminal em relação à generalidade das normas. A proposta do direito digital, neste aspecto, caminha mal. Isso porque, entende-se que vai de encontro com as diretrizes de um direito penal mínimo (mínimo, estritamente legalizado e taxativo).

O Princípio da Estrita Legalidade Penal, que constitui, per si, efetiva limitação ao poder do Estado, seria uma barreira à ideia de generalidade normativa do direito digital. Por este princípio, a lei deve definir com exatidão e de maneira cristalina a conduta defesa pelo ordenamento jurídico, não bastando, ademais, que a conduta esteja legalmente prevista. É necessário que ela seja elaborada de forma taxativa e com rigorosa precisão técnica possível, ao arrepio da Máxima Taxatividade Legal Penal (ZAFFARONI; BATISTA, 2013).

Quanto ao novo profissional do direito a que alude a autora, é de se concordar com o fato de que é preciso que os profissionais da área se atualizem, acompanhem a tecnologia. No entanto, alguns pontos não foram acertados.

Primeiro. A autora abre um título de discussão sobre o novo profissional do direito, entretanto, apenas tece comentários sobre o profissional advogado (não se está a fazer qualquer juízo de desvalor sobre a carreira da advocacia, para que fique bem claro, vez que é atividade indispensável ao acesso à justiça), esquecendo-se que o corpo de juristas é muito mais amplo. Existem professores, juízes, procuradores de justiça, delegados de polícia, registradores, doutrinadores, etc.

Segundo. A partir do momento em que a autora afirma que o advogado deve ter uma visão e conduta de negociador, de igual modo, leva a crer que os valores da busca pela justiça plena devem ficar de lado. Tratar-se-á de negócios de mercancia e não de direitos?

Terceiro. Quando a autora diz que as faculdades de direito não ensinam empreendedorismo, não havendo capacitação para os alunos montarem seus próprios escritórios jurídicos, é de se dizer: ainda bem! Como já exposto, tratar de direitos é matéria por demais complexa. Dizer que as faculdades de direito devem preparar os alunos para montarem seus escritórios é um tanto quanto forçado demais. Um dos maiores problemas que as universidades que oferecem curso de direito hoje em dia têm (e aqui é de se expor os sentimentos de um acadêmico), é uma preparação do início ao fim do curso voltada, preponderantemente, à advocacia. Então é de se questionar: todos querem advogar? E quem pretende seguir carreira diversa, faz o quê? A advocacia não é a única procura dos alunos!

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ainda em 2006 – vale destacar – Loacir Gschwendtner escreveu que o Código Civil vinha perdendo a sua posição de centro no Direito Privado, conquanto sua grandiosidade cedia espaço aos inúmeros microssistemas do ordenamento jurídico, criando, desse modo, o que se pode chamar de um direito civil do mundo globalizado (GSCHWENDTNER, 2006). O direito digital nos moldes de hoje, portanto, vem para concretizar o que outrora já se discutia.

Enfim, à guisa de conclusão, é de se reconhecer a relevância do direito digital à sociedade. No entanto, alguns cuidados devem ser tomados para que não ocorra (consequentemente), violação de direitos e/ou garantias que os indivíduos lutaram para conseguir. Deve haver muito cuidado, pois com o advento do direito digital, consequentemente surgirá uma crise de valores em que alguns desaparecem e ouros são questionados, prevalecendo, em muitos casos, os interesses pessoais dos mais fortes em detrimento dos princípios garantidores dos indivíduos (BRÜGGEMANN, 2005).

 

Notas e Referências

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

BRÜGGEMANN, Sirlane Melo. Um caminho para a justiça. Florianópolis. OAB/SC Editora, 2005, p. 57.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações contratuais e extracontratuais. 25. ed. v. 3. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 12-15.

GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora Unesp, 1991.

GSCHWENDTNER, Loacir. A constitucionalização do direito privado contemporâneo. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006, p. 141.

PASOLD, Cesar Luiz. Função social do estado contemporâneo. 3. ed. Florianópolis: OAB/SC Editora, 2003.

PINHEIRO, Patrícia Peck. Direito digital. 6. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva: 2016, p. 67-88, 535-548, 563-568.

SANTOS, Eduardo Sens dos. A função social do contrato. Florianópolis: OAB/SC Editora. 2004, p. 153.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 6. ed. rev. atual., e ampl. Rio de Janeiro: Forense. São Paulo: Método, 2016, p. 593-594.

ZAFFARONI, Eugênio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A. M. Botelho Hespanha, 1967, p. 716-717.

 

 

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