Direitos dos refugiados: uma leitura com fundamento nos princípios constitucionais

14/04/2016

Por Pietro de Jesús Lora Alarcón - 14/04/2016

INTRODUÇÃO

Tem-se afirmado com razão que a Humanidade atravessa um momento excepcionalmente difícil e que alguns dos temas mais preocupantes são os relacionados com as consequências das guerras e das violações sistemáticas dos direitos humanos. Nesse marco se inscrevem os êxodos humanos, os deslocamentos forçados e o acolhimento dos refugiados.

Segundo os informes do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – de março de 2016, mais de um milhão e trezentas mil pessoas oriundas da Síria, Afeganistão e Iraque cruzaram fronteiras europeias. Entretanto, expõe o próprio ACNUR, a crise não é apenas de refugiados, mas de solidariedade dos Estados de Europa, cujas lideranças governamentais carecem de vontade suficiente para executar planos e ações contundentes e efetivas para acolher os migrantes forçados.

Não há como negar que a agressividade das potencias e as intervenções da OTAN agravaram a situação nas últimas décadas. Adicione-se a repressão policial e militar contra os refugiados e requerentes de refugio na Europa, muitos deles vivendo em condições desumanas.

No Brasil hoje vivem em torno de 7.000 mil refugiados de 80 nacionalidades diferentes. Deles, mais de 400 são reassentados, é dizer, oriundos de Estados nos quais obtiveram refúgio, mas onde, de forma comprovada, as forças que os perseguiam e que os obrigaram a deslocar-se forçadamente do seu país de origem conseguiram chegar ameaçadoramente.

Importante mencionar que o Brasil passou de acolher 4.500 refugiados a um número bem maior especialmente pela chegada dos refugiados sírios, acolhidos em função do recrudescimento do conflito nesse país através da Resolução Normativa número 17, de outubro de 2013, emanada do CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados –. A Resolução retira os trâmites que podem embaraçar a emissão de vistos para os sírios dispostos a requerer refugio em solo brasileiro. Hoje os sírios são o maior grupo de refugiados no Brasil; os refugiados africanos compõem o 65%, seguidos dos refugiados americanos e europeus.

O Brasil, através da Lei 9474 de 1997, e com fundamento em dispositivos constitucionais, regula a situação dos refugiados. Contudo, o tema do refúgio é ainda pouco analisado e as diretrizes legais são desconhecidas para a imensa maioria dos pesquisadores da área jurídica, bem como para o conjunto dos brasileiros.

Levando em conta esses dados e fatores foram realizados vários eventos, dentre os quais destacam os Seminários da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, que este ano programa sua edição número seis. A Cátedra desenvolve atividades de cunho científico relacionadas com o Direito Internacional Humanitário e o Direito dos Refugiados em várias universidades do país, realizando um diagnóstico sobre os avanços da proteção jurídica e social dos refugiados.

O presente artigo se inscreve na dinâmica dos trabalhos preparatórios do próximo Seminário. Aborda, assim, a história do instituto do refúgio, focalizando o Estatuto dos Refugiados emanado da Organização das Nações Unidas em 1951 e logo a Lei 9474 de 1997. Contudo, nosso objetivo consiste em comprovar como a própria Constituição Federal de 1988 estabelece os princípios básicos e orientadores da proteção dos refugiados no Brasil contemporâneo.

Destarte procura-se uma visão jurídica sobre o tema que permita demonstrar como a força normativa da Constituição e a chamada invasão constitucional, anunciada dentre outros por G. Zagrebelsky, também se verifica no campo do Direito dos refugiados.

1. CONSTITUCIONALISMO, INTERNACIONALISMO E DIREITO DOS REFUGIADOS

Temos sustentado em varias oportunidades que o Direito deve ser analisado sempre sob o prisma do seu lugar na história e como um projeto cultural. Trata-se de um fenômeno histórico, e desde logo, de uma construção humana susceptível de mudanças e em progressiva evolução.

Com essa base pode-se seguir ao exame do Direito como o reflexo de um processo no qual, logo de diagnosticar situações, os seres humanos tentam gerar um modelo ideal de funcionamento da sociedade, seja esta observada como conjunto relacional em sentido universal ou particular – sociedade internacional ou sociedades nacionais -. O modelo criado fundamenta-se em valores e objetivos imediatos, a meio ou longo prazo, para o qual dispõe de um conjunto institucionalizado de órgãos e procedimentos.

Contudo, ao longo do tempo a distinção entre um Direito interno - surgido do reconhecimento das pessoas como sujeitos titulares de direitos e obrigações - e um Direito externo - emanado da idéia de que os Estados são também atores com personalidade jurídica - originou o desenvolvimento de varias estruturas normativas, mas especialmente duas de referência obrigatória: uma em cujo ápice se edificou a Constituição e outra fundada nos tratados ou convenções internacionais.

Não há dúvida de que contemporaneamente essas visões se entrecruzam e maneira tal que em qualquer dos seus âmbitos o objetivo do Direito consiste na proteção adequada, integral e efetiva do ser humano. Bem por isso é perfeitamente possível detectar que valores como a legalidade, a igualdade, a democracia, a justiça, entre outros que constituem verdadeiros baluartes jurídicos, reclamam efetividade plena tanto no campo nacional como no internacional.

Note-se que essa preocupação de amparo ao ser humano nas situações mais difíceis firmou-se tendo como gênese movimentos políticos de forte impacto no jurídico, na morfologia dos Estados e na interação Estado-sociedade.

Em especial deve-se prestar atenção ao Constitucionalismo e ao Internacionalismo, do qual emanam sistemas normativos conformados por princípios e regras, que convenientemente interpretados se aplicam aos mais diversos casos, dos mais singelos aos mais dramáticos.

Nesse sentido, é inegável reconhecer que o Constitucionalismo como movimento jurídico-político nascido precocemente na Inglaterra e depois copiado ou amoldado na tradição francesa e nos Estados Unidos criou as condições para que os Estatutos supremos dos Estados tivessem no seu interior um segmento considerado em nossos dias de obrigatória observância, pela sua legitimidade material, pois que fundados precisamente nos valores e fins mais prezados pela comunidade política.

Trata-se de um conjunto de direitos – direitos fundamentais, conforme a Constituição Federal de 1988 - aos quais se lhes reconhece o vigor normativo de se opor tanto a governos como a particulares – eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais -. Igualmente, de exigir uma abstenção e ação estatal que lhes inibe a possibilidade de retroceder – proibição de retrocesso – e que impulsiona uma ratio hermenéutica sempre em sentido favorável aos seres humanos. 

Sem abandonar as conquistas constitucionais, veja-se como também o Internacionalismo, numa progressão necessária e salutar, originou campos de normatividade complexa e vigorosa no mesmo sentido.

Vale a pena observar, assim, o terreno do DIDH – Direito Internacional dos Direitos Humanos –. Esta ramificação do Direito Internacional é definida como um sistema (...)

“que regula um setor das relações de cooperação institucionalizada entre Estados de desigual desenvolvimento socioeconômico e poder, cujo objeto é o fomento do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais universalmente reconhecidos, assim como o estabelecimento de mecanismos para a garantia e proteção de tais direitos e liberdades, os quais se qualificam de preocupação legítima e, em alguns casos, de interesses fundamentais para a atual comunidade de Estados no seu conjunto”. [1]

E, na mesma seara, o Direito Internacional humanitário – DIH – cuja base teórica consiste na formulação de critérios para distinguir o uso lícito e ilícito da força. Por essa via promove a proteção das pessoas que não tomam parte nas hostilidades próprias dos conflitos nacionais e internacionais, incluindo-se, ainda, aos membros das forças armadas que tenham deposto suas armas e aos colocados fora de combate por enfermidade, ferimentos, detenção ou qualquer outra causa. Os dispositivos aplicáveis a tais casos se encontram nas Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais e nas do Direito de Haia, que instam às partes a respeitar por igual às regras dos direitos humanos e do ius in bello. [2]

Numa vertente singular, dentro do mesmo campo internacional, emerge o Direito de Assistência Humanitária. Sobre seu conteúdo, tendo em vista as lições de Mario Bettati, na obra Le droit d`ingérence, Alberto do Amaral Júnior explica que a doutrina francesa costuma distinguir entre (...) a intervenção por humanidade, que tem por escopo substrair ao domínio de um governo ou de uma facção os seres humanos ameaçados de morte em um país estrangeiro, da intervenção humanitária, que visa fornecer abrigo, vestuário, assistência médica e sanitária às populações locais, sem que haja qualquer ato de interposição entre as populações e os responsáveis pela sua situação aflitiva. [3]

Nesse conjunto de blocos normativos, outra ramificação é composta pelo chamado Direito dos Refugiados, que especialmente hoje adquire uma singela, porém firme autonomia. Este se posiciona como disciplina que objetiva promover o dever de amparo da sociedade internacional, e dos Estados em particular, aos povos e pessoas ameaçadas em circunstancias político-militares, culturais ou econômico-sociais adversas, por governos, grupos armados ou forças que por qualquer via atentem contra seus direitos mínimos, especialmente contra a sua vida.

Por evidente, todos esses terrenos normativos são complementares. E do campo do Direito Internacional se passa ao Constitucional e logo ao primeiro. E, logicamente, em sadia técnica poderíamos fazer o mesmo partindo do Direito Constitucional.

Dessa maneira pode-se aferir que estamos diante de estruturas jurídicas diversas, mas não desconexas nem confusas, senão limítrofes e susceptíveis de se tocarem. E em cada campo encontramos dinâmicas de amparo que atendem circunstâncias diferentes.

Vale a pena ressaltar o ponto porque durante muito tempo, e não somente no Brasil, o feliz encontro entre o Constitucionalismo e o Internacionalismo originou mais de uma discussão, cujo norte se centrou - e ainda hoje persistem elementos desse debate - na hierarquia entre Constituição e tratados internacionais, uma polêmica hoje tão inútil quanto defasada, que em ocasiões entorpeceu a conquista de novos patamares de resguardo de direitos.

Bem por isso nunca é demais reafirmar que é preciso, tanto na perspectiva do Direito Constitucional quanto na do Direito Internacional, orientar-se pela aplicação da norma mais favorável ao ser humano. Isto é, a aplicação do princípio pro-homine. 

Deve, seguindo essa direção, se aplicar sempre a norma mais ampla, outorgando máxima efetividade aos direitos em questão no caso a ser resolvido. A realização do Direito impende, concomitantemente, a mínima restrição dos mesmos direitos no mesmo caso, através de um delicado, mas necessário, juízo de ponderação no qual o juiz deverá atender postulados do Direito posto e do Direito pressuposto. [4]

Por essa via, a Constituição e os tratados de direitos humanos fazem parte de um mesmo sistema de amparo ao ser humano. Corresponde ao juiz extrair a norma de decisão mais adequada e ajustada aos princípios que orientam o ordenamento jurídico.

Essa visão deve ser levada em conta ao tratar-se dos direitos dos refugiados, que de agora em diante tentaremos esboçar com maior ênfase.

2. O DESLOCAMENTO FORÇADO COMO PREOCUPAÇÃO JURÍDICA AO LONGO DA HISTÓRIA 

No presente se comemoram os 65 anos do Estatuto dos Refugiados da ONU, que estabeleceu, logo após o final da Segunda Guerra, as bases para a compreensão do fenômeno do refúgio como problemática universal.

A atualidade do Estatuto, do ponto de vista geral, é indiscutível. Afirme-se também que constitui um importante marco de análise jurídica. Entre outras razões porque o problema do deslocamento forçado para o interior ou exterior das fronteiras nacionais é freqüente e tem-se acirrado como resultado de gravíssimas violações aos direitos humanos em distintos pontos do planeta.

Entretanto, o problema do refúgio é de índole transnacional não necessariamente porque entranhe ou possa implicar movimentos de pessoas para além das fronteiras estatais, senão porque supõe para sua solução o entendimento de sentido de comunidade internacional, de gênero humano, de solidariedade e de tolerância.

Após a Primeira Guerra, a sociedade internacional tomou para si o problema do deslocamento forçado através de um Protocolo Especial da Sociedade das Nações. Protegeu-se, assim, às pessoas que careciam de nacionalidade - os apátridas - e aquelas que a pesar de possuir uma não podiam exercer seus direitos por encontrar-se fora do seu território e com dificuldades para retornar.

Assim, para a época, a preocupação jurídica dava lugar a que os documentos internacionais tratassem não exatamente do fenômeno do refúgio, senão do problema da carência de nacionalidade das pessoas que nasciam filhos de pessoas sem identidade, sem passaporte ou meio de identificação algum, regularmente oriundas dos Estados em que se registravam cruentos combates.

Observe-se que o desenvolvimento das primeiras noções jurídicas de proteção dos refugiados exigiu da comunidade internacional e estatal não a mera proteção contra intervenções ilegítimas, como corresponderia aos denominados direitos de primeira geração, na ótica de Marshall e Bobbio, mas uma ação estatal a garantir uma existência humanamente digna. Por outras palavras, e assim como acontece hoje, somente é possível resolver o problema do refugio a partir de uma ação positiva do Estado ou da comunidade internacional levando em conta a natureza do problema, e não uma mera abstenção.

Voltando ao enfoque histórico, relata Alfred Verdross, no seu clássico Curso de Derecho Internacional Público, que a Sociedade das Nações, consciente de que os apátridas não eram protegidos pelo Direito Internacional atendeu aos migrantes da União Soviética, privados da nacionalidade russa, instituindo o passaporte Nansen pelo Acordo de Genebra de 05 de julho de 1922, que foi estendido em 1924 aos refugiados armênios.  Depois, um conjunto de acordos, assinados em Genebra em 12 de maio de 1926 e 30 de junho de 1928, complementaram esta primeira ação. O Alto Comissário da Sociedade das Nações, criado para o atendimento do problema, recebeu autorização para testificar a identidade, situação e outras circunstâncias com respeito aos refugiados e para recomendá-los às autoridades do país da sua residência. [5]

Um pouco mais à frente na história, em 1933, o Conselho da Sociedade das Nações criou o Alto Comissariado para os Refugiados da Alemanha.  E, após a Segunda Guerra Mundial, em 15 de dezembro de 1946, através de Resolução da Assembléia Geral, criou-se a OIR (Organização Internacional dos Refugiados) para o retorno das pessoas deslocadas durante a guerra. A Resolução 428 de 14 de dezembro de 1950 ordenou a substituição, em 1° de janeiro de 1951, da OIR por um Alto Comissariado para os Refugiados (ACNUR), para a proteção adequada destas pessoas, que com o Fundo de Ajuda aos Refugiados (U.N.R.E.F.) iniciou o apoio aos programas de integração dos refugiados nos Estados nos quais residiam.

Deve-se, entretanto, considerar que já um pouco antes, em 1948, as Nações Unidas, pela  Declaração Universal de Direitos Humanos tratou do instituto do asilo no seu artigo XIV in verbis: 

Art. XIV “1. Todo homem, vitima de perseguição, tem, o direito de procurar e de gozar de asilo em outros países.  2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos propósitos ou princípios das Nações Unidas”. 

Questão interessante e a ressaltar é que a Declaração utilizou a expressão asilo de maneira genérica. A conclusão razoável que se desprende é que a interpretação neste caso deve ser ampliativa, é dizer, a expressão se refere tanto aos solicitantes do denominado asilo diplomático quanto aos solicitantes de refúgio.

Essa distinção é deveras importante, porque a aplicação das regras de asilo e especialmente o desenvolvimento da figura do asilo da América Latina – em particular durante os períodos das ditaduras militares - tinham como alvo da tutela pessoas perseguidas pelas suas atividades políticas, torturadas e submetidas a constantes ataques de agentes estatais. Eram, em muitos casos, pessoas de notoriedade.

Hoje, a valiosa caracterização jurídica do refugio impõe reconhecer como alvo da tutela protetora aos perseguidos ou fugitivos de conflitos, que são regularmente pessoas anónimas. Seja qualquer que seja a condição do indivíduo – anônimo ou conhecido - a interpretação ampliativa orienta-se á máxima eficácia de um direito humano, reconhecido na ordem interna da maior parte dos Estados do mundo como um direito fundamental.

Não é possível perder de vista esta constatação, mas, continuaremos a retomar o fio da história, para deter-nos no Convênio de Genebra de 28 de julho de 1951, relativo ao Estatuto dos Refugiados, revisado em 16 de dezembro de 1967, que firmou o compromisso dos Estados signatários para estender cartões de identidade e documentos de viagem às pessoas que a conseqüência dos acontecimentos de antes de 1° de janeiro de 1951 e que por um temor fundado de se verem perseguidos por motivos raciais ou sociais, se encontrassem fora da sua pátria sem proteção e sem haver recebido outra nacionalidade, obrigando-se a equipara-os em parte aos seus nacionais e em parte aos estrangeiros, apoiando o trabalho do ACNUR.

Logo a seguir, o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, aberto para adesão em 31 de janeiro de 1967 e que entrou em vigor em 04 de outubro do mesmo ano, superou os limites geográficos e temporais na proteção dos refugiados.  

Vale dizer que os apátridas, que não foram acobertados pelo Estatuto dos Refugiados, foram protegidos pela assinatura em 28 de setembro de 1954 do Convênio sobre o Estatuto dos Apátridas, complementado pelo Convênio para a redução do Problema dos Apátridas de 30 de agosto de 1961, no qual se regula sua situação, entrega de documentos e outros problemas que obstaculizavam sua locomoção por conta da indefinição da nacionalidade.

Conforme o artigo 1(1) da convenção de 1954, o termo “apátrida” designará toda pessoa que não seja considerada como seu nacional por qualquer Estado, de acordo com a sua legislação”.  Conforme o ACNUR, o artigo deve ser aplicado em contexto de migração e de não migração. Assim, um apátrida pode nunca ter cruzado uma fronteira internacional e ter vivido no mesmo país por toda a sua vida. Por outro lado, alguns apátridas também podem ser refugiados ou elegíveis para proteção complementar (...) por exemplo, podem se encaixar no regime de proteção subsidiária da União Europeia , estabelecidos na Diretiva do Conselho 2004/83/EC de 29 de abril de 2004 (...)” [6]

O progresso da proteção humana no contexto internacional consolidou-se no que se refere ao tema dos refugiados com este valioso arcabouço de Estatutos, Documentos e Resoluções. Adicione-se que a ONU, na idéia de afirmar o compromisso de seus membros com os direitos humanos, através da Resolução 428 (V) da Assembléia Geral, determinou que o mandato do ACNUR se aplica a todos os Estados, mesmo que eles não reconheçam o Estatuto dos Refugiados.

Justamente por isso é preciso chegar a conclusões jurídicas não absurdas ao interpretar o texto da Resolução número 2312 de 1967 que deu a conhecer a Declaração sobre o Asilo Territorial, [7] porque nela se faz ênfase em que o ato de concessão de asilo é uma potestade soberana do Estado, que deve ser respeitada pela comunidade internacional e que é o Estado que concede o asilo quem qualifica as causas que o motivam.

Em novembro de 1984 foi realizado na Colômbia o chamado Colóquio de Cartagena, que analisou a crise de direitos humanos da América Central e os esforços realizados pelo Grupo de Contadora para a promoção da paz e o atendimento aos refugiados nessa região. O Grupo, que já tinha deixado expresso nas suas resoluções a necessidade de que os Estados realizassem (...) as alterações constitucionais, para a adesão à Convenção de 1951 e ao Protocolo de 1967 sobre o Estatuto dos Refugiados, viu suas orientações acolhidas pelo Colóquio quando ao final se determinou, nos seus dois primeiros artigos, a intenção dos Estados participantes de “Promover dentro dos países da região a adoção de normas internas que facilitem a aplicação da Convenção dos Refugiados de 1951 e do Protocolo de 1967, e, em caso de necessidade, que estabeleçam os procedimentos e afetem recursos internos para a proteção dos refugiados”.

Os acordos do Colóquio instam aos Estados a iniciar um processo de harmonização sistemática das legislações nacionais em matéria de refugiados, advertindo que a ratificação ou adesão à Convenção e ao Protocolo não fosse “(...) acompanhada de reservas que limitem o alcance de tais instrumentos e convidar os países que as tenham formulado a que considerem o seu levantamento no mais curto prazo.”

Os motivos para o fortalecimento dessa proteção aos refugiados decorreram de um maior entendimento do problema. Precisamente, ao introduzir em nome do ACNUR o informe sobre a situação dos refugiados no mundo de 1998, Sadako Ogata expressava que o fenômeno do refugio converteu-se em um problema mais amplo e complexo que aquele que se visualiza como um simples campo de refugiados:

“(...) Es mas, hoy en día, en el sentido convencional del término, los refugiados constituyen un poco más de las personas protegidas y ayudadas por ACNUR. Los siguientes grupos de personas también se encuentran bajo la protección de este organismo: las personas desplazadas internas y las poblaciones afectadas por la guerra: los solicitantes de asilo; los apátridas y aquellos cuya nacionalidad está en disputa; los ‘retornados’- refugiados y desplazados que han podido regresar a su país pero que siguen necesitando ayuda de la comunidad internacional”.[8] 

Destarte, é perfeitamente compreensível que o Colóquio de Cartagena de novembro de 1984, preocupado com a necessidade de ampliar o conceito de refugiado, tenha exposto no seu terceiro item da Resolução final:

“(... )

Terceiro - Reiterar que, face à experiência adquirida pela afluência em massa de refugiados na América Central, se toma necessário encarar a extensão do conceito de refugiado tendo em conta, no que é pertinente, e de acordo com as características da situação existente na região, o previsto na Convenção da OUA (artigo 1., parágrafo 2) e a doutrina utilizada nos relatórios da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Deste modo, a definição ou o conceito de refugiado recomendável para sua utilização na região é o que, além de conter os elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, considere também como refugiados as pessoas que tenham fugido dos seus países porque a sua vida, segurança ou liberdade tenham sido ameaçadas pela violência generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação maciça dos direitos humanos ou outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública”.

Finalmente, há que destacar a Declaração e Plano de Ação do México para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina de 15-16 de novembro de 2004, que determina a importância da cooperação, da incorporação da legislação sobre refugiados e da responsabilidade dos Estados no atendimento e procura de estratégias e soluções duradouras que confrontem o problema.  

O Brasil, em consonância com toda essa dinâmica protetiva, promulgou a Lei n° 9474 de 22 de julho de 1997 que define os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados e cria o CONARE – Conselho Nacional para os Refugiados –. O país também foi sede, em agosto de 2004, de uma das reuniões consultivas preparatórias á reunião de México que deu origem ao Plano de  Ação.

3. AS DIMENSÕES DO DIREITO DOS REFUGIADOS

Da anterior exposição se desprendem algumas conclusões. Em primeiro lugar, a opção por traçar um panorama histórico do tema permite distinguir as originais qualidades ou elementos característicos do fenômeno em momentos concretos da vida da sociedade internacional.

Obviamente, as duas Grandes Guerras do século XX e os conflitos de media e baixa intensidade produzidos e ainda em curso em várias regiões do Planeta, oriundos da política externa irresponsável de potencias e da própria OTAN, ocasionam o deslocamento forçado tanto interno quando externo.  Na verdade, podemos dizer sem exageros que a existência corriqueira de conflitos na atualidade traduz a crise do modelo de sociedade internacional reproduza após a Segunda Guerra e logo após o final da Guerra Fria. Nesse sentido, muito embora a realização de esforços por consolidar as organizações internacionais como artífices de um clima de diálogo e cooperação, ainda no fundo as relações internacionais se sustentam numa estrutura hegemônica de poder que se contrapõe à conquista de uma comunidade internacional organizada sobre essas bases.

No que se refere a regiões nas quais os conflitos são mais agudos como em alguns Estados da África e no caso da Colômbia, é preciso passar a uma postura proativa, que exija soluções políticas aos conflitos, evitando-se o incremento das ações militares e paramilitares que aterrorizam a população. Simultaneamente é preciso ampliar a proteção, evitando que as vitimas das perseguições, que abandonam seu local de residência, seu trabalho, famílias e propriedades para procurar refúgio em outros Estados, sejam expostas à exploração, ao descaso e ao abandono.

Em segundo lugar, focalizando o plano teórico no campo do Direito, deve-se estar atento ao fato de que a ampliação do conceito jurídico de refugiado e das medidas de proteção à população deslocada é uma resposta humanitária em sentido universal, regional ou local, tendo em vista a ausência de efetividade dos direitos humanos como uma característica da nossa época. Dizemos isso, naturalmente, sem nenhuma pretensão de afirmar que a ampliação conceitual seja algo que necessariamente deva ser comemorada. Na verdade, com pena deve ser reconhecida, pois ela atesta a crise que temos apontado. Acontece que o Direito como fenômeno histórico procura acompanhar as diversas realidades humanas; procura ordená-las, aproximando tais realidades a uma valoração ou sentido ético que repousa na nossa noção da humanidade. A ampliação conceitual significa que novas modalidades de refugio tornaram-se necessárias porque infelizmente os conflitos não acabaram e, muito pelo contrário, outras modalidades surgiram.

Complementarmente, ainda nessa possível adição de conceitos, a possibilidade de acobertar como refugiados através de um exame do conjunto de circunstâncias novas que provocam a fuga em massa de pessoas não pode nem deve ser descartada. Assim, a questão dos migrantes por causa de situações de degradação do meio ambiente há de se levar em conta de forma urgente. Não em vão hoje a doutrina começa a trabalhar a idéia de refugiados ambientais.

Sobre o ponto, não podemos esquecer que o problema do deslocamento forçado é bastante complexo e adota uma multiplicidade de formas, as que regularmente advêm da própria situação do Estado ou das causas e elementos próprios da crise. O ACNUR reconhece que as circunstâncias e características que assumem as modalidades de deslocamento são também variadas. Regularmente se indicam a expulsão em massa, o deslocamento econômico, a limpeza étnica, o traslado de população, a repatriação involuntária ou retorno forçado. Atente-se para o fato de que, em todos os casos o elemento comum é a necessidade de efetiva proteção social e jurídica e de um tratamento em conformidade com os princípios humanitários e as normas dos direitos humanos.[9]

Em terceiro lugar, algo que deve ser frisado, é que a dignidade humana, a vida e a segurança são alguns dos valores que constituem o transfundo da normatividade nacional e internacional com relação aos problemas humanitários e, em particular, ao problema do refúgio. 

Na atualidade, e com fundamento naquilo já exposto, o Direito dos refugiados aparece em perfeita sintonia com outros sistemas de proteção projetando dois aspectos: a) o referente ao conjunto de condições necessárias à obtenção da qualidade de refugiado e b) o referente ao compromisso dos poderes públicos nacionais e da ordem internacional para efetivar os direitos fundamentais e fomentar uma política de inclusão com relação aos refugiados ou de retorno pacífico aos seus lares.

Nessa linha de argumentação, o problema de refúgio deve ser abordado levando em conta, em primeiro termo, os postulados principiológicos que orientam a política externa dos Estados; sua responsabilidade na preservação dos direitos humanos; o compromisso com o cumprimento das normas do DIH pelos grupos rebeldes, insurgentes ou dominantes em uma região; o desenvolvimento dos princípios da solidariedade e da fraternidade como postulados jurídicos que conduzem a fortalecer os laços de cooperação, especialmente entre Estados, organizações internacionais - em particular as que integram sistema das Nações Unidas - e demais atores no seu interior.

Não obstante, preocupa que no campo da responsabilidade estatal, a via do amparo aos refugiados e migrantes em geral deu um passo atrâs quando a União Européia e os Estados Unidos, em função das variáveis econômicas relacionadas a sua capacidade de absorção de mão de obra e até de seu interesse nacional, criaram legislações restritivas à livre circulação de pessoas. A pesar dos argumentos que partem de uma prerrogativa estatal ilimitada para legislar sobre temas migratórios, essas justificativas podem cair por terra se levamos em conta que esses países obtiveram benefícios enormes com a obtenção de mão de obra de migrantes, a custos irrisórios. Já não é nenhum segredo que a questão migratória é utilizada como mecanismo de crescimento econômico, para logo promover-se o descarte de seres humanos que deixam de ser de presença valiosa no território do Estado que os rejeita.

4. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E A PROTEÇÃO DO REFUGIADO NO BRASIL 

Como já foi afirmado, especialmente em virtude da internacionalização e do sentido universal dos Direitos Humanos, o tema do refúgio constitui uma preocupação jurídico-científica na qual se entrecruzam as formulações do constitucionalismo e do internacionalismo. Talvez a maior conquista nessa simbiose tenha sido o surgimento do denominado Direito Constitucional Internacional.

Nessa perspectiva, as peças normativas básicas da ordem jurídica que pretendam tratar do refugio devem levar em conta esses elementos – internacionalização e sentido universal - assumindo um ponto de convergência irrenunciável, tanto na ordem nacional e internacional, que consiste no amparo às pessoas em qualquer circunstância ou diante de qualquer tragédia.

Naturalmente que se observamos pelo ângulo das sociedades nacionais a proteção dos seres humanos pelo Direito sugere o cumprimento dos fins constitucionais, a ausência da violência estatal, a consideração de um clima de participação política, de efetividade dos direitos fundamentais e dos princípios da tolerância e da solidariedade, acompanhados de um sistema imparcial de acesso à justiça. Considere-se, ainda, que não resulta plausível que exista uma pretensão da proteção nacional sem um apoio efetivo da comunidade internacional.

Sob este ponto de vista, focalizaremos a Constituição Federal de 1988 - observada como um sistema normativo de princípios e regras, de natureza dialógica, que impacta a realidade a partir dos seus dispositivos-. Convêm examinar alguns de seus postulados principiológicos, especialmente aqueles que podem e devem ser tomados como pontos de obrigatória referência para um amparo efetivo da pessoa refugiada ou requerente do refúgio.

É o que faremos a continuação.

4.1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Em época recente a doutrina do campo constitucional se deteve na análise mais aprimorada do princípio da dignidade da pessoa humana. No Brasil, para além da sedução acadêmica do tema, que tem implicações no campo da Ética, da Filosofia do Direito, da Bioética e de outras disciplinas científicas, a questão implica um tratamento inspirado no artigo 1°, inciso III da Carta de 1988, que a consagra como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito.

De outra banda, no marco internacional a Declaração Universal dos Direitos Humanos expressa nos seus preliminares: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis, é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Logo, o mesmo Documento, no seu artigo I declara: “Todas as pessoas nascem livres e iguais e dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”.

Veja-se que, se observamos este último dispositivo, a convicção sobre a proteção das pessoas parte de que todas são igualmente dignas.  Nessa premissa se concentra uma potencialidade jurídica de inusitada força, que significa a impossibilidade de reduzir as condições de vida do ser humano a um patamar tal que se provoque sua degradação à categoria de animal ou coisa. É dizer, partindo dos chamados três graus do ser - a coisa, o animal e ser humano - [10]é uma tarefa essencial para o Direito impedir qualquer tentativa de colocar ou enquadrar este último em um dos graus do ser que não lhe corresponda.

Bem por isso, Panea Márquez explica que reconhecer que o homem tem dignidade é reconhecer que tem umas exigências que lhe são devidas, uns direitos que lhe pertencem. O homem tem dignidade e este não é um factum de caráter empírico nem um teorema que seja possível demostrar matematicamente, porque também não é realidade nem ideal. Não pertence à ordem ôntica, senão axiológica, não ao é, senão ao deve. Pertence não à ordem das coisas futuríveis, senão ao das valorações, é uma qualidade que outorgamos, que realça ao homem e o fazemos simplesmente porque sem ela não haveria horizonte moral possível, moralidade possível, estaríamos no plano da mera natureza, da animalidade, da faticidade instintiva. [11]

No caso dos refugiados, a dignidade humana, em sadia hermenêutica, indica que o ser humano é merecedor de algo mais, de um plus, de um elevar aquele que está a ponto de ser abatido, cercado pelas contingências que deram lugar ao fugir, uma adversidade que ameaça sua opção existencial, sua vida, liberdade e condições mínimas de existência.

A negação da qualidade de refugiado, daquele que mais o precisa, ou a impossibilidade do reassentamento, pode significar o predomínio da perversidade, contribuindo a converter ao ser humano em objeto, em coisa. Sujeito vulnerável, alvo da indiferença e insensibilidade diante da sua condição factual.

4.2. O PRINCÍPIO DA TOLERÂNCIA

Na Constituição Federal, a tolerância é princípio implícito. Perfeitamente dedutível da interpretação do preâmbulo da Carta, que expressa a intenção constituinte de promover uma sociedade pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social.

De igual forma no artigo 3°, inciso IV, quando ao expor os objetivos fundamentais da República o constituinte afirma o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

A vocação democrática do constituinte e, desde logo, a firmeza com a qual expus o princípio da igualdade e rejeitou as discriminações negativas que tanto afetam a consolidação de um clima de paz e convivência harmônica, atestam a indicação do princípio no Texto Maior. Afirme-se de passagem que suas virtudes, muito embora os estudos por sobre seu conteúdo jurídico ainda se iniciem em nossa meio, o colocam como um baluarte de elevada estatura na ordem jurídica.

A reivindicação do princípio da tolerância aplica-se ao campo do Direito dos Refugiados porque implica reconhecer a pluralidade, é dizer, a possibilidade da convivência universal determinada pelo aconchego social e jurídico a partir de uma atitude de reconhecimento do direito a ser distinto. Por isso a tolerância somente cabe em uma situação em que existe o pluralismo em matéria de crenças, atitudes ou condutas, onde habitualmente há alternativas de vida que se opõem, contudo onde uma relação de poder subjaz com capacidade de proibir ou permitir. [12]

Sendo assim, a efetividade do princípio impõe uma procura permanente pelo respeito à diferença, sem receios nem temores, criando os mecanismos e institutos jurídicos para acolher a refugiados e, em geral, as pessoas em situação de extrema necessidade.   

4.4. O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE 

O princípio é decorrente da leitura do inciso I do artigo 3º da Constituição. E, realmente, na contemporaneidade as ameaças constantes à paz e ao direito à vida, bem como a necessidade de responder à exclusão social e à discriminação negativa, não permitem deixar de abordar seu conteúdo, de maneira que há que reafirmá-lo como peça chave na procura do respeito pela vida e os direitos fundamentais.

Importa registrar que Declaração sobre o Asilo Territorial de 1967, explicitamente no seu artigo 2° faz a ele referência, determinando que “quando um Estado encontrar dificuldades em conceder ou continuar concedendo asilo, os Estados, individual ou conjuntamente, ou através das Nações Unidas, deverão considerar, em espírito de solidariedade internacional, medidas apropriadas para aliviar aquele Estado.” 

Como se vê, o princípio não é algo estranho ao mundo do Direito. Muito pelo contrário, deve-se descortinar seu conteúdo e importância. E vale reconhecer que, até certo ponto a doutrina, ainda que reconheça sua existência e nexo com a fraternidade emanada da Revolução Francesa, ofereceu muitas vezes, nas suas tentativas de promoção, um tratamento apenas retórico ou exclusivamente atrelado às virtudes éticas.

No campo internacional algumas das considerações sobre a não juridicidade da solidariedade decorrem de que as chamadas estruturas do Direito e da sociedade – a relacional, a institucional e a comunitária – e especialmente esta última, se acham em situação de precário desenvolvimento. Daí que Peces-Barba opine que a solidariedade constitui ainda uma aspiração que sustenta alguns setores normativos e instituições jurídicas e não uma realidade do Direito positivo, reconhecendo que “(...) el Derecho internacional de los derechos humanos necesita de nuevos desarrollos desde la perspectiva de la solidaridad y de consideraciones elementales de humanidad, fundamentalmente en el ámbito de las garantías, así como en el reconocimiento de algunos derechos colectivos.[13]

Frise-se, em conseqüência, que não estamos diante de um princípio discernível apenas em termos éticos, senão de um verdadeiro postulado do Direito. Assim, o princípio traduz um dever jurídico, reconhecido em dispositivos constitucionais nos quais se evidencia o interesse em criar as condições para o equilíbrio social na repartição das cargas públicas com a intenção de promover o desenvolvimento das potencialidades dos seres humanos.

4.5. A PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS 

O princípio aparece, com todas as letras, no segundo inciso do artigo 4° da Constituição.

Em outro segmento abordamos o tema da internacionalização e a discussão sobre a universalidade dos direitos humanos. Vale esclarecer que tais processos sugerem uma superação das fronteiras nacionais em termos de exigência jurídica para com a efetividade dos direitos. A partir desse ponto, uma seria argumentação sobre os limites dessa efetividade somente pode ser achada na medida em que se analisem as condições, Estado a Estado, da promoção dos direitos humanos, especialmente das forças que se opõem a essa efetividade e da possibilidade concreta do Direito, como disciplina que orienta os comportamentos humanos, de contribuir para a rejeição desses adversários.

Sendo assim, a humanização do Direito Internacional não é somente o fruto das orientações das Declarações e Documentos, senão da aplicação de permissões, proibições e obrigações que orientem a interpretação/aplicação desses direitos nos Estados nos quais eles se encontrem atingidos com maior crueldade.

Com relação ao problema dos refugiados, a Conferência Mundial de Direitos Humanos apontou in verbis no seu ponto número 23: 

“ (...) A CMDH reconhece que violações flagrantes de direitos humanos, particularmente aquelas cometidas em situações de conflito armado, representam um dos múltiplos e complexos fatores que levam aos deslocamento de pessoas. Em vista da complexidade da crise mundial dos refugiados, a CMDH reconhece em conformidade com os instrumentos internacionais pertinentes e em sintonia com o espírito de solidariedade internacional e com a necessidade de compartilhar responsabilidades, que a comunidade internacional deve adotar um planejamento abrangente em seus esforços para coordenar atividades e promover uma maior cooperação com países e organizações pertinentes nessa área, levando em conta o mandato do ACNUR” 

O planejamento traçado na Conferência inclui, dentre outros mecanismos: estratégias que abordem as causas e efeitos dos movimentos dos refugiados; fortalecimento de mecanismos de resposta para emergências e concessão de assistência; verificação das necessidades especiais de mulheres e crianças refugiadas; condições para a repatriação voluntária dos refugiados em condições de segurança e dignidade; trabalho da ONU com organizações humanitárias para a questão das pessoas deslocadas internamente, incluindo seu retorno voluntário e habilitação. [14]

Assim, a prevalência dos direitos humanos como postulado constitucional encontra um respaldo contundente na comunidade internacional, sendo um propósito não somente brasileiro, mas um objetivo tático e estratégico que implica um conjunto de ações mancomunadas e dirigidas a efetivar cada direito, em cada situação.

4.6. A CONCESSÃO DE ASILO POLÍTICO

Ao analisar este princípio, estabelecido no artigo 4º, inciso X da Carta de 1988, cumpre de início advertir que existe certa polêmica com relação á diferenciação entre asilados e refugiados.

Essa discussão tem como gênese que o fato de que a Convenção sobre Asilo Diplomático assinada em Caracas em março de 1954 e promulgada pelo Brasil através do Decreto 42.636 de novembro de 1957, estabelece no seu artigo II que Todo Estado tem o direito de conceder asilo, mas não se acha obrigado a concedê-lo, nem a declarar porque o nega.

Enquanto isso, o refúgio aparece categorizado legalmente no Brasil através da Lei 9474 de 1997 que incorpora o Estatuto dos Refugiados de 1951, determina as condições para a obtenção do refúgio, os direitos e obrigações dos refugiados e cria a CONARE.

Surge então a dúvida sobre se, tratando-se da concessão de refúgio, deve-se manter a discricionariedade estatal, ainda quando as condições legais para a obtenção de refúgio sejam evidentes ou atendidas de forma plena pelos requerentes.

Sobre o tema o que parece claro, em primeiro lugar, é que a discussão sobre se o refugio e o asilo são categorias jurídicas diferentes ou diferenciáveis resulta útil se a partir de um critério razoável é possível reforçar a proteção dos indivíduos injustamente perseguidos por razões políticas, religiosas ou por qualquer ordem de circunstâncias que os coloquem em risco.

O professor Celso de Albuquerque Melo, analisando o dispositivo constitucional, sustenta que quando no artigo 4° se expressa como verdadeiro princípio constitucional a concessão de asilo político, a denominação não é muito feliz. Diz o professor que a expressão asilo político é utilizada para o asilo diplomático, concedido a perseguidos políticos, enquanto que o asilo territorial é o obtido pelos refugiados.[15]

Firma o professor o entendimento de que se trata de institutos diferentes. Agora bem, uma sadia interpretação, parece-nos, conduz a argumentar que se a concessão do asilo constitui um postulado gênese das relações internacionais, bem seja o tradicionalmente conhecido como diplomático ou aquele que compreende as hipóteses de refúgio, nos encontramos diante de algo muito mais forte que uma regra que pode ser vista como vetor normativo de tudo ou nada. Por outras palavras, é preciso ponderar, caso a caso.

Na hipótese de refúgio, quando o requerimento é fundado em graves e contínuas violações aos direitos humanos, afigura-se possível argumentar estarmos diante de um direito fundamental.  Ou seja, nesta hipótese do refúgio não é mais possível falar de potestade estatal, mas da existência de um verdadeiro direito público subjetivo, na perspectiva de afastar o entendimento de que sua concessão é uma prerrogativa do Estado.

No caso o Estado terá duas opções, ou acolher ao indivíduo, ampliando, conforme a Lei, o status de refugiado a sua família, ou procurar pelas autoridades competentes, seu reassentamento.

A interpretação restritiva do direito fundamental, no caso, se admite quando se encontram em jogo circunstâncias como a segurança nacional, por exemplo, de natureza excepcional, mas em condições de se opor à concessão do refúgio.

No caso do asilo diplomático, parece que, caso a caso, sua concessão pode estar balizada por considerações de ordem moral ou política. O princípio da razoabilidade, que coloca a necessidade de manter uma equação lógica entre os motivos que conduzem ao requerimento do asilo, a análise do próprio instituto como mecanismo hábil para uma proteção adequada da pessoa e a finalidade de promoção dos direitos humanos deve ser, inevitavelmente, levada em conta. Contudo, nunca poderá ser questionada a possibilidade de se requerido e de se obter quando a vida ou a liberdade correm risco de forma injusta.

Deve-se optar, nessa perspectiva, e tendo em vista a interpretação mais favorável ao ser humano - que implica reconhecer que quando a pessoa se enquadra nas hipóteses de refúgio estabelecidas no Estatuto dos Refugiados e seus Protocolos complementares, bem como nas diretrizes da Lei 9.474 de 22 de julho de 1997 – a obtenção do refugio deve ser analisada como um direito fundamental. Especialmente quando sua não concessão possa conduzir ao perseguido a uma situação de ausência total de condições de defesa diante da perseguição da qual é objeto.

4. CONCLUSÃO

A maneira de conclusão pode-se afirmar que é preciso ligar as análises sobre o impacto do refúgio no Brasil à efetividade máxima dos direitos humanos, com fundamento na interpretação/aplicação da Constituição Federal de 1988 e da Lei 9474 de 1997.

A reflexão sobre o tema dos refugiados desde a ótica do Direito Constitucional Internacional não coincide com um projeto de legitimação das exigências de estruturas hegemônicas de poder senão que, pelo contrário, funda-se na rejeição de mecanismos de dominação político-jurídica.

A exploração científica rigorosa do conteúdo jurídico da dignidade humana, da solidariedade e da tolerância, bem como a compreensão adequada do asilo e do refúgio como mecanismos constitucionais de amparo são a base para prosseguir no caminho jurídico da prevalência dos direitos humanos como imposição do constituinte tanto na ordem nacional quando na internacional.

A análise, caso a caso, utilizando a razoabilidade e a ponderação, da possibilidade de conceder o status de refugiado parte de uma interpretação com base no princípio pro-homine, que obriga a entender as circunstâncias em que o refúgio pode e deve ser considerado um direito fundamental.


Notas e Referências:

[1] Villán Duran, Carlos. Curso de Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Pp. 85-86.

[2] O artigo 3° comum ás Quatro Convenções de Genebra, de 1949, por exemplo, se trata, como afirma Pérez González, de um código essencial de princípios e regras que se referem a certos direitos humanos básicos, que não podem deixar de ser aplicados nem sequer naqueles supostos, como os conflitos internos, nos que os Estados por seus governos resistem a aplicar as regras do ius in bello, sob o pretexto de que assim se daria fôlego á violência interna conferindo um status  aos grupos rebeldes que atentam contra a ordem constitucional. Nesse sentido, consulte-se o artigo La protección de los derechos humanos em situaciones de conflicto:  el parametro del derecho internacional humanitário In Revista Foro. Nueva época. Número 4. Madrid: Marcial Pons. 2006. 13-35. P. 16.

[3] Amaral Júnior, Alberto do. O Direito de Assistência Humanitária. Pp. 183.

[4] Eros Grau. O Direito posto, o Direito pressuposto e a doutrina efetiva do Direito In O eu é a Filosofia do Direito?. Eros Grau et al. Barueri/SP: Manole. 2004.  Pp. 33-50.

[5] Alfred Verdross. Derecho Internacional Público. Traducción al español de Antonio Truyol y Serra. Madrid: Biblioteca Jurídica Aguilar. 1976. P. 550.

[6] ACNUR. Manual de proteção aos apátridas. Genebra. 20014. P. 10.

[7] Documento das Nações Unidas n° A/6716.

[8] Prólogo da Alta Comissionada das Nações Unidas para Refugiados. In La situación de los refugiados en el Mundo. P. X-XI

[9]  “(…) diferencias considerables entre el campesino desplazado por los combates en el sur de Sudán, el bosnio de clase media de Sarajevo que ha buscado refugio en Alemania y el refugio palestino de segunda generación que nunca ha puesto el pie en el territorio que considera propio. Consulte-se a obra do ACNUR.  La Situación de los Refugiados en el Mundo. Un programa Humanitario. 1997-1998. Barcelona: Icaria Editorial. 1997. P. 3

[10] Sobre o ponto veja-se Alarcón, Pietro de Jesus Lora, Patrimônio Genético Humanos e sua proteção na Constituição Federal de 1988. São Paulo: Método: 2005.

[11] José Manuel Panea Márquez. La imprescindible dignidad In Bioética y Derechos Humanos. Antonio Ruiz de la Cuesta (coord..) Sevilla: Universidad de Sevilla, Santander Central Hispano. 2005. 17-27. P. 20-21.

[12] Sobre o tema, consulte-se a José Martínez de Pisón, Tolerancia y derechos fundamentales en las sociedades multiculturales. Madrid: Tecnos. 2001. P. 59 e SS.

[13] Gregorio Peces-Barba Martínez. Obra Citada. P. 177.

[14] Sobre os resultados e mecanismos desenhados pela Conferência Mundial de Direitos Humanos consulte-se a J.A. Lindgren Alves. Os Direitos Humanos como tema global.São Paulo: Perspectiva; Brasília: FUNAG. 1994.

[15] Albuquerque Mello. Direito Constitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar. 1994. P. 149.

ACNUR. La situación de los refugiados en el mundo. 1997-1998. Un Programa Humanitario. Barcelona: Içaria Editorial. 1997.

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Pietro de Jesús Lora Alarcón. Pietro de Jesús Lora Alarcón é Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Com estudos pós-doutorais na Universidad Carlos III de Madrid e na Universidade de Coimbra. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Direito da PUC/SP e da ITE de Bauru/SP.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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