Por Atahualpa Fernandez - 11/05/2015
Com exceção dos que acreditam estar somente um pouco por debaixo dos anjos, a animalidade constitui o estrato central de nossa natureza: seguimos sendo primatas com celulares e computadores; somos todos animais. Animais falantes, animais éticos, animais que aprendem bastante bem..., mas animais ao fim e ao cabo.
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Em meados do século XIX, Charles Darwin se uniu à cadeia de cientistas que, desde Aristóteles, e passando por Spinoza, Hume, Galileu e Newton (entre outros), havia contribuído para destroçar os esquemas de um mundo animista, criado e mantido por espíritos. A diversidade da vida explicada por Darwin obedecia às leis da natureza e o impacto de seu “On the Origin of Species” foi gigantesco: a primeira edição do livro se esgotou no mesmo dia em que foi publicado, 24 de novembro de 1859.
A teoria que Charles Darwin inoculou em nosso pensamento a respeito da evolução através da seleção natural implicou não somente uma mudança radical de nossa percepção acerca do mundo, senão que jugulou qualquer pretensa “superioridade” do existir humano. Também significou o primeiro mecanismo aceitável sobre a evolução sem qualquer mediação de um “Desenhador” ou “Arquiteto divino”.
A partir de então, já não foi possível pensar nos humanos como seres completamente distintos do resto do reino animal. Já não eram especiais: haviam passado a formar parte da natureza como qualquer outro animal. A opinião dos humanos sobre suas próprias origens mudou (deixando de fora a versão bíblica da criação especial à imagem e semelhança de Deus) para ceder passagem ao “Símio ancestral” do qual todos nós descendemos [apesar de que, inclusive hoje em dia, há quem ainda se nega a crer que a evolução é o processo mediante o qual chegamos a ser o que somos]. É a teoria científica mais influente de todos os tempos, “la idea más brillante que jamás há tenido nadie.” (D. Dennett)
Na atualidade, as ideias de Darwin continuam provocando um profundo impacto em como os filósofos – assim como os cientistas – pensam sobre a humanidade, inclusive afetando e reavivando desde o último terço do século passado uma pergunta que no mundo ocidental vinha formulando-se ao menos desde o século XVIII: Têm direitos os animais não humanos?
Naturalmente que a relevância, necessidade e urgência para que se reconheçam os direitos de outros animais não gozam de um “amplo consenso”. Enquanto algumas pessoas se manifestam abertamente favorável a essa proposta de reconhecimento, outras, assumindo que os animais são “pobres de mundo” (M. Heidegger), a rechaçam com veemência, ridicularizando-a. Nenhuma surpresa; principalmente quando do que se trata envolve o polêmico debate sobre o reconhecimento (ou não) dos direitos dos animais não humanos. Mas “algo” já avançamos.
Para começar, direi que aplaudir a Darwin não significa que qualquer proposta baseada em sua obra tenha sentido. Por razões técnicas que a filosofia moral conhece muito bem, é absurdo dizer que os animais têm direitos. Somente os agentes éticos – os humanos – os têm, porque somente eles têm a outra cara da moeda: os deveres morais. Se o reino animal tivesse esse tipo de direitos, a humanidade estaria obrigada a mediar – moralmente falando – cada vez que um predador mata a sua presa. E com demasiada frequência se dão tais mortes com um toque de sadismo e crueldade muito parecido ao que exibimos nós mesmos, os seres humanos. Mas nada disso outorga direitos e deveres a qualquer animal não humano. E equipará-los aos “enfermos mentais”, com direitos e sem deveres, resulta ainda pior.
Em qualquer caso, sabemos que os animais sentem dor como nós sentimos, pois o sistema límbico e as partes do cérebro involucradas na sensação de dor são muito parecidos, por exemplo, em todos os mamíferos. Nada obstante, como seres humanos, é muito provável que experimentemos um sofrimento maior do que sentiria outro animal na mesma situação, posto que temos a capacidade de refletir e compreender o que nos sucede. Isto implica que se o ser humano tem mais direitos é porque está mais exposto ao sofrimento, à empatia e ao altruísmo [“Quem aumenta seu conhecimento, aumenta seu sofrimento.”]; se tem mais deveres, ou antes, se é o único a tê-los, é porque, por sua própria natureza, o ser humano encontra-se mais “aberto ao” e mais “consciente do” sofrimento próprio e do “outro”: primeiro ao de seus semelhantes (evidentemente!), mas também ao de outros animais. É por isso que é “distinto” aos animais não humanos, na própria preocupação consciente que experimenta por eles (animais não humanos) e por seus congêneres (animais humanos).
Falar de “direitos dos animais” é, desde essa perspectiva, incorreto e disparatado. Os direitos reclamados se referem a que há seres humanos que querem viver em uma sociedade na qual não se torture aos animais. Nas palavras de J. Mosterín: “Yo prefiero a mis hijos antes que a los hijos del vecino, pero eso no es una razón para torturar ni maltratar a los hijos del vecino”. Contudo, para o bem ou para o mal, não são os animais os que parecem estar em primeiro lugar na fila da lista de espera dos horrores e misérias a erradicar no mundo; as exigências de justiça que envolve os seres humanos estão dolorosamente baixo mínimos: o ser humano continua a ser o “bem absoluto” e proteger seus direitos é uma tarefa prioritária.
Então, por que os animais não humanos? Por que protegê-los se nem sequer prestamos suficiente atenção aos humanos mais desprotegidos e desgraçados, aos que são vítimas das mais sórdidas injustiças? Esquecemos dos animais? A resposta só pode ser negativa, porque hoje sabemos que não se trata de eleger entre alternativas morais. O problema é que existem inúmeras dificuldades para poder considerar aos animais titulares de direitos, sendo que a maior delas reside no fato de que não se lhes consideram (ainda) sujeitos morais: resulta impossível detectar neles autorreflexão, autoconsciência ou responsabilidade, por muitas semelhanças que existam com os seres humanos.
Alguns autores têm assinalado diversos critérios para argumentar em favor da moralidade animal: talvez porque Deus lhes deu direitos, como assegurava em 1791 o presbiteriano Herman Daggett em seu discurso sobre os direitos dos animais ["Y no conozco nada en la naturaleza, en la razón o en la revelación que nos obligue a suponer que los derechos inalienables de la bestia no sean tan sagrados e inviolables como los del hombre.”]; pela capacidade de sentir prazer ou dor (Peter Singer); por serem “pessoas em sentido amplo” (Martha Nussbaum); porque são “seres valiosos”, “sujeitos-de-uma-vida”, noção que abarca seres dotados de certas capacidades e habilidades mentais (Tom Regan); pela necessidade, desde a dimensão moral do ambiente natural, de serem tratados como “pacientes morais”, pois são objeto direto de nossos deveres e obrigações (Carmen Velayos); etc. O certo é que a discussão acerca do caráter moral dos animais (e consequentemente, de se podem ou não considerar-se como “sujeitos de direito”) ainda está longe de resolver-se.
Mas a proposta de Peter Singer - o artífice da proteção dos símios - parece ser a mais sutil desde meu ponto de vista, uma vez que foge dessas ponderações mais gerais e entra de cheio em um dos tópicos de maior interesse dentro da tendência atual das teorias sociais normativas dirigidas ao estudo da psicologia das emoções.
Singer parte da existência de profundas diferenças entre os seres humanos e outros animais que, por sua vez, devem levar a certas diferenças nos direitos a serem atribuídos a uns e outros. Quando se invoca um princípio de equidade (presente na maioria das teorias contemporâneas da justiça, ao estilo da de J. Rawls) não se está em absoluto pretendendo que deva conduzir a idêntico trato, senão a direitos ajustados às diversas condições. Da mesma maneira, diz Singer, que é absurdo conceder a liberdade de aborto a um homem, o é a pretensão de dar a liberdade de voto a um porco. É a “consideração” a que deve ser mantida por igual; a consideração que merecem diferentes seres conduz a distintos direitos.
E que consideração merece um animal não humano? Singer retoma aqui uma antiga ideia de Jeremy Bentham (um dos primeiros filósofos em tratar o tema dos direitos dos animales seriamente) acerca das diferenças e similitudes entre seres humanos e animais. Bentham reivindicava a ideia de igualdade moral, isto é, afirmava que há que considerar por igual os interesses de todos os afetados por uma ação. Põe o acento na facultade de sentir prazer e dor como a característica capital que confere a um ser o direito a uma consideração igual, dado que é esta faculdade, e não outra, o requisito iniludível para poder dizer que um ser “tem interesses” e, em consequência, certos direitos que protejam esses interesses.
Bentham, apesar de evitar a noção de “direitos morais” (ou “naturais”), advogava pela proteção legal desses interesses. Não importava que não pudessem falar, raciocinar ou razoar (a Kant sim que lhe haveria importado); desde seu ponto de vista esses não eram traços relevantes para a inclusão moral. O que importava era sua capacidade para sofrer. Os animais devem ser respeitados na medida em que têm essa capacidade de sofrer; a consideração que se lhes deve não pode deixar de ter em conta esse fato do sofrimento. E em nome dele Singer critica, por exemplo, o uso de animais para a experimentação ou gastronomia.
O critério do sofrimento dos animais é de fato, por sua demonstrada evidência, o que tem sido utilizado com mais frequência à hora de reclamar seus direitos. Há mais de um século, a “Cruelty to Animals Act” (1876) era já uma lei destinada a controlar os experimentos por meio dos quais se causava sofrimentos aos animais. Ainda que com resultados diversos, esse princípio está hoje presente na maioria das legislações de um bom número de países, que cada vez precisam mais o trato que deve dispensar-se aos animais; um trato que, como mínimo, exige não provocar “sofrimento inútil”.
Parece fora de toda dúvida razoável o fato de que o critério do sofrimento inútil, intencional e inecessário tem um acentuado e poderoso valor prático no que diz respeito às questões morais (e jurídicas).
O que dizer, então, de seu valor teórico?
Confira amanhã (12/05), também as 17h, a segunda parte!
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España
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