Direito social à educação: uma análise à luz da Reserva do Financeiramente Possível e a Garantia de um Mínimo Vital Existencial.

07/03/2018

Ainda que já houvesse no Brasil, desde a Constituição de 1934, disposição sobre o fato de que a ordem econômica deveria ser organizada de forma a assegurar a todos “existência digna”, foi com o advento da Constituição de 1988 que observamos a previsão expressa do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento e elemento principal dos demais direitos e garantias individuais e coletivos.

No texto constitucional pátrio a dignidade é um princípio que demanda uma acepção objetiva que vinculará tanto o legislador ordinário quanto o órgão jurisdicional competente, quando da criação e concretização da legislação infraconstitucional.

Ao lado da soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político a dignidade da pessoa humana figura como um dos fundamentos constitucionais expressos na Lei Maior e possui uma estreita relação com os direitos fundamentais, figurando como o núcleo constitutivo desses direitos, de modo que se consolida justamente na intenção de proteger a dignidade do ser humano, promovendo-lhe condições dignas de sobrevivência[1].

Considerando os direitos sociais como sendo de natureza jusfundamental, notável é que sua aplicabilidade está vinculada a mecanismos jurídicos limitadores. Tais limitações encontram amparo legal em teorias bastante difundidas pela doutrina contemporânea, qual seja a Reserva do Financeiramente Possível e o Mínimo Vital Existencial.

Como é sabido, a concretização de direitos, sejam eles direitos de liberdade ou sociais, geram custos ao Estado. Ocorre que quanto ao reconhecimento da existência de tal dispêndio não há controvérsias. A problemática surge quando se tolera que a insuficiência de recursos públicos seja determinante na promoção (ou não) dos direitos jusfundamentais[2].

A questão fica ainda mais delicada no que concerne aos direitos sociais e sua natureza positiva. São direitos revelados na exigência de uma prestação estatal fática, o que Jorge Reis Novais denomina de “facere estadual, configurando na repartição tríplice de deveres estatais (dever de respeitar, proteger e realizar).

A dimensão de promoção estatal será observada, primordialmente, quando o Estado social for incipiente ou inexistente, principalmente ao não assegurar o conteúdo nuclear mínimo de direitos que propiciem o ser humano viver com dignidade.

É exatamente nesse ponto que encontramos o impasse: não restam dúvidas de que a prestação de tais direitos vincula-se ao orçamento disponível e à gestão da arrecadação e das contas públicas e, diante à insuficiência econômica do Estado social, como garantir direitos básicos aos materialmente carentes?

Buscando solucionar a problemática, nasce a teoria alemã da reserva do financeiramente possível.

Originada por intermédio de um julgamento realizado pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão, em 1972, a reserva do possível tinha sido relacionada, na época, à limitação quanto à possibilidade de exigir prestações estatais de cunho social, sendo que a expressão utilizada limitava os direitos sociais àquilo que podia razoavelmente exigir da sociedade[3].

Isto posto, pelo viés econômico a reserva do possível funciona como elemento limitador do próprio direito, uma vez que só estará o poder público obrigado a prestá-lo se dispuser de recursos financeiros suficientes para garantir tais direitos. É exatamente por este motivo que, no ponto de vista de Jorge Reis Novais, a reserva do possível vincula-se a determinadas prioridades de ordem política, o que inevitavelmente ocasiona uma série de situações conflituosas[4].

Ocorre que, para assegurar a estrutura do Estado social e democrático de Direito, uma vez verificadas as condições de carência material pessoal, o Estado estará obrigado, fundamentado na reserva do possível, a arcar com determinadas pecúnias ou, até mesmo, com custos associados diretamente à criação e disponibilização de institutos que permitam o acesso aos bens em geral.

Portanto, notória é a relação de dependência dos direitos fundamentais aos fatores econômicos e à disponibilidade de verbas, sendo que a escassez desses recursos poderá implicar na restrição concreta da efetivação de tais direitos, especialmente os de cunho prestacional, como é o caso da educação. No entanto, ao incluir no rol de direitos fundamentais o direito à educação, o legislador constituinte assumiu um compromisso para com a sua efetivação, o que significa dizer que o Estado deve pautar a sua atividade com vistas à realização daqueles direitos.

Decerto, mesmo que o Estado esteja impelido a assegurar os inúmeros fins impostos pela Lei Maior e as demais leis ordinárias, indubitável é o fato de que a educação consiste em um serviço público que demanda maior atenção por parte do administrador público.

Isso porque a educação deve ser tratada como garantia individual e estrutural do Estado Democrático de Direito, pois, conforme já mencionado, a cidadania consisti em um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, localizada no artigo 1º, inciso III da Magna Carta.

É necessário vislumbrar que, juntamente com a saúde, a segurança e a moradia, a educação perfaz um dos direitos de prestação primordiais, sustentado pelo legislador constituinte e passível de ser exigido contra o Estado. Em razão dessa importância, o art. 205 da CF/88 dispõe tal direito como mandamento à administração, que deve garantir a educação em seus mais variados níveis, o que deve ser feito através da implementação de políticas públicas de âmbito educacional, a nível nacional ou regional, de modo a promover uma política de acesso universal e igualitário, sob a égide social, econômica e cultural.

A educação decorre dos direitos humanos e, consequentemente, da dignidade inerente à pessoa humana. Dessa forma, não deve o Estado escusar-se de garantir esse direito constitucionalmente assegurado, ante a diversidade de propósitos que lhe são impostos.

Por se tratar de um direito prestacional, face a sua natureza social, tem o poder público o poder-dever de assegurar o acesso à educação, conforme demonstra a natureza programática das normas de cunho educacional positivadas na Magna Carta. O fato é que, diante à indeterminabilidade do conteúdo dos direitos sociais, considerar o que dentro da dimensão positiva desses direitos integra ao conteúdo mínimo não é uma tarefa fácil e no tocante à educação é ainda mais delicado[5].

É a partir de então que devemos nos valer da construção da relevância jurídica dos direitos sociais em torno da garantia de um mínimo social. Podemos considerar a força normativa jusfundamental como sendo um comando constitucional de exigências de proteção social, respaldado na dignidade da pessoa humana, colocando o Estado como garantidor de um standard mínimo de condições materiais para o exercício de direitos fundamentais clássicos[6].

Considerar o que dentro da dimensão positiva dos direitos sociais integra ao conteúdo mínimo educacional é considerar o essencial à formação cidadã do indivíduo, qual seja, o ensino básico. São nos primeiros anos de educação formal que ocorre o processo de alfabetização e que são satisfeitas as necessidades elementares da aprendizagem. Durante o desenvolvimento da criança e do adolescente é que são formados o caráter, a noção de moral, a constituição de padrões éticos, a solidariedade, o sentimento de respeito à diversidade e da preservação do bem comum e coletivo. Consequentemente, será a partir da incorporação desses conceitos que ocorrerá a concretização da cidadania de forma efetiva.

Neste deslinde, podemos afirmar que as decisões prolatadas pelo Órgão Judiciário, que mensuram que o poder público deverá garantir a prestação da educação pretendida, não melindram o princípio da separação dos Poderes nem interferem na esfera administrativa, por caracterizar-se um direito de caráter preferencial e, por conseguinte, atividade material do Estado.

Destarte, devem ser disponibilizados à população os direitos de pleitearem tais prestações, alicerçados no princípio administrativo da eficiência, fulcrado na Constituição Cidadã. Desse princípio decorre que a educação deverá ser fomentada conforme os paradigmas de alcance de objetivos, com celeridade e eficácia.

Em razão do princípio da eficiência, a apreciação do Judiciário não recai sobre a dualidade formada pela oportunidade e conveniência da prática administrativa, mas sim sobre a legitimidade do pleito. Deve a administração pública declarar, ex officio, a nulidade de atos que infrinjam a eficiência e a razoabilidade.

A abstenção/omissão do Poder Público na promoção dos direitos sociais considerados essenciais mostra-se desarrazoada. A prestação da educação consiste em atividade vinculada do administrador público, portanto não cabe a ele, assentado em critérios característicos de atividades discricionárias – conveniência e oportunidade – optar pela satisfação ou não deste direito, haja vista tratar a educação de direito social fundamental.

E em razão de sua natureza jusfundamental, constituem-se no núcleo essencial da Constituição, sendo que a prestação estatal referente ao direito à educação deve consistir em ações que se desenvolvam de maneira satisfatória à demanda social.

Neste plano, faz-se interessante assinalar a ponderação defendida por Alexy, que afirma que se pode o Estado invocar insuficiência de recursos diante a uma determinada prestação fática, cabendo à maioria parlamentar proceder a tomada de decisão acerca da alocação dos recursos disponíveis, sob esse viés, esvair-se-ia a natureza jusfundamental deste tipo de direito, pois os direitos fundamentais assumiriam uma importância tão elevada que não poderiam ser atenuados à decisão da maioria parlamentar[7].

O direito social à educação consiste em norma constitucional dotada de eficácia plena, o que significa que deve ser aplicada diretamente ao caso concreto. A força normativa da Constituição, no que condiz a este direito, impõe aos órgãos responsáveis na elaboração e execução de políticas públicas uma atuação conforme aos ditames constitucionais, seja quanto à adequação orçamentária, seja estabelecendo medidas de cunho educacional, sem aumentar a carga tributária nacional.

Por conseguinte, em conformidade com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o mandamento judicial que impulsiona o Estado à prestação da educação pleiteada pelo titular caracteriza-se como a solução singular para as exigências judiciais neste sentido. E finalmente, de modo a privilegiar o núcleo diplomado pelo mínimo vital em detrimento da reserva do possível, conclui-se que a prestação de um conteúdo básico de políticas públicas educacionais pelo Estado Social, por consistirem a essência da cidadania, não poderá ficar à mercê de conveniências de cunho eminentemente político.

 

Bibliografia:

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LEAL, Rogério Gesta. Condições e possibilidades eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais: os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009

MIRANDA, Jorge. A Constituição Portuguesa e a Dignidade da Pessoa Humana. Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, n. 45, ano 11, p. 85, out./dez. 2003.

NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Lisboa: Almedina, 2006.

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SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.

 

[1] AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Caracterização da dignidade da pessoa humana. Revista USP, São Paulo, n. 53, p. 91-101, mar./maio 2002. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/view/67536 >. Acesso em: 18 fev. 2018.

[2] [2] HOLMES, Stephen e SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights. Why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. 

[3] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos sociais: a teoria jurídica dos direitos sociais enquanto direitos fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2010.

[4] Ibid.

[5] Os defensores da mencionada teoria ponderam que o cerne principal de cada direito fundamental representa um núcleo consolidador da natureza do direito; contudo distanciam-se na precisão de qual medida desse núcleo fundamental, uma vez que são dotados de conteúdo indeterminado e, consequentemente, variável. Sobre o assunto, Cf. SILVA, Luis Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009.

[6] Ibid.

[7] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

 

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