Direito Penal Secundário e Contravenções Penais: o Paradigma da Insignificância em contraposição ao Direito Administrativo Sancionador (Parte 3) – Por Ricardo Antonio Andreucci

14/04/2016

Leia também a Parte 1 e a Parte 2.

VI – O PARADIGMA DA INSIGNIFICÂNCIA E AS CONTRAVENÇÕES PENAIS. 

O princípio da insignificância, embora assim denominado pela primeira vez por Claus Roxin, em 1964, deita suas raízes no Direito Romano, onde se aplicava a máxima civilista de minimis non curat praetor, sustentando a desnecessidade de se tutelar lesões insignificantes aos bens jurídicos (integridade corporal, patrimônio, honra, administração pública, meio ambiente etc.).

Assim, restaria ao Direito Penal a tutela de lesões de maior monta aos bens jurídicos, deixando ao desabrigo os titulares de bens jurídicos alvo de lesões consideradas insignificantes.

Esse princípio é bastante debatido na atualidade, principalmente ante a ausência de definição do que seria irrelevante penalmente (bagatela), ficando essa valoração, muitas vezes, ao puro arbítrio do julgador.

Entretanto, o princípio da insignificância vem tendo larga aplicação nas Cortes Superiores (STJ e STF), sendo tomado como instrumento de interpretação restritiva do Direito Penal, que não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal (tipicidade formal — subsunção da conduta à norma penal), mas também e fundamentalmente em seu aspecto material (tipicidade material — adequação da conduta à lesividade causada ao bem jurídico protegido).

Assim, acolhido o princípio da insignificância, estaria excluída a própria tipicidade, desde que satisfeitos quatro requisitos: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de total periculosidade social da ação; c) ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.

Resta saber: estariam todas as contravenções penais alcançadas pelo princípio da insignificância, dado o seu reduzidíssimo potencial ofensivo?

Pela legislação vigente, as contravenções penais são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo, abarcadas pelas disposições da Lei nº 9.099/95, que cuidou do Juizado Especial Criminal.

O Juizado Especial Criminal deita suas raízes na Constituição Federal, que estabelece, no art. 98, I:

“A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.

A Lei n. 9.099/95 visa justamente regulamentar esse preceito constitucional, estabelecendo o que se entende por infração penal de menor potencial ofensivo e traçando o procedimento para tais delitos, o qual se convencionou chamar de procedimento sumaríssimo.

Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos da lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa.

VII – A RELEVÂNCIA DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS FRENTE À ESCALADA CRIMINOSA. 

É inegável, a meu sentir, a relevância das contravenções penais no cenário criminal da atualidade.

Como já dito anteriormente, muitos têm pugnado pela revogação da Lei de Contravenções Penais, dada a sua inaplicabilidade na prática, sustentando a extinção dessa espécie de infração penal e até mesmo a sua absorção pelo Direito Administrativo Sancionador.

Outros vão além, indicando a ilegitimidade das contravenções frente à seleção dos bens jurídicos feita pela Constituição Federal, que não pode tolerar a coexistência, no cenário jurídico-penal, de normas de acentuada relevância e de normas de reduzidíssimo ou nenhum potencial ofensivo.

É bem verdade, entretanto, que as contravenções penais deveriam passar por um processo de revalorização e de relegitimação pela sociedade e pelos setores do Estado responsáveis pela persecução criminal, na medida em que elas se revestem de inafastável importância na contenção da escalada criminosa, desde que bem operacionalizadas.

Sim, porque o que se vê hoje em dia é quase a total inexistência de ocorrências policiais versando sobre contravenções penais e, quando existem, nenhuma reverberação encontram nos foros criminais e nem tampouco nos juizados especiais criminais.

Partindo-se de uma análise da gênese do fenômeno criminal, constata-se que raramente o criminoso se dedica à prática de infrações penais gravíssimas ou de acentuada gravidade sem antes ter atuado nas searas inferiores, praticando delitos de médio ou pequeno potencial ofensivo. Justamente a ausência de punição e a leniência do Estado no trato das infrações penais menores é que leva, invariavelmente, à prática de infrações penais mais graves.

Exemplificando, certamente um estuprador, antes do crime contra a liberdade sexual, praticou algum ato obsceno ou mesmo uma importunação ofensiva ao pudor. Foi justamente a falta de punição ou a insuficiência da sanção aplicada que geraram a escalada criminosa que o levou à prática de crime sexual hediondo. Ou seja, o Estado não se fez presente na primária infração, ainda que contravenção penal, não demonstrando ao agente, através da persecução criminal, que seu ato era violador de um bem jurídico, ainda que de menor importância. Vendo-se impune nas pequenas e médias infrações, o criminoso progrediu para o crime mais grave, somente aí recebendo a resposta do Estado, que, tardia para a vítima, não foi suficiente para concretizar o papel do Direito Penal como instrumento de defesa social e proteção da sociedade.

VIII – CONCLUSÃO. 

Assim sendo, à guisa de conclusão:

1. Nenhuma norma infraconstitucional deve ignorar o quadro axiológico pautado pela Constituição Federal, servindo os valores constitucionais como lastro para a criminalização de novas condutas e para a descriminalização daquelas que não guardam consonância com o Estado Democrático e Social de Direito.

2. O Direito Penal Secundário efetivamente mantém seu valor frente ao Direito Administrativo sancionador.

3. O Direito Administrativo Sancionador somente pode abarcar normas de caráter penal se revestido, antes, de toda a base principiológica que informa o Direito Penal, sob pena de se incidir em perigoso retrocesso à proteção dos direitos do cidadão, assegurados pela Constituição Federal, necessários à contenção do poder punitivo estatal.

4. Ao se destacar a inegável natureza administrativa de algumas normas do Direito Penal Secundário, se confere uma nova e moderna roupagem às contravenções penais, que voltam a ocupar seu espaço na tutela dos bens jurídicos por meio da busca pela prevenção dos indeterminados perigos de violação dos direitos subjetivos.

5. As contravenções penais, nesse cenário, retomam sua importância como mecanismo de contenção da escalada criminosa, não devendo ser alcançadas pelo princípio da insignificância e nem tampouco absorvidas pelo Direito Administrativo Sancionador, mas, antes, revalorizadas e respeitadas como instrumento eficaz no combate à criminalidade crescente.

*Esta é a última parte de uma série de 3 artigos que compõe o ensaio publicado nesta coluna.


Notas e Referências: 

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. 9ª ed. São Paulo: Saraiva. 2013.

_________________________. Manual de Direito Penal. 10ª ed. São Paulo: Saraiva. 2014.

FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. 3ª ed. Campinas: Russel Editores, 2009.

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito Penal, contravenções penais e direito administrativo sancionador. In Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca. vol. 7, nº 1. jul 2013.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral, 5. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1983

JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: teoria do injusto penal e culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey. 2009.

MIR PUIG, Santiago. Direito Penal: Fundamentos e Teoria do Delito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo e GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no Direito Administrativo Sancionador. In Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. n.28, 2012.

MUÑOZ CONDE, F. Derecho penal y control social, Sevilla: Fondación Universitaria de Jerez, 1995.

PIMENTEL, Manoel Pedro. Contravenções penais. São Paulo: Revista dos Tribunais.

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003.

WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico-penal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2010.


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