Direito Penal Secundário e Contravenções Penais: o Paradigma da Insignificância em contraposição ao Direito Administrativo Sancionador (Parte 2) – Por Ricardo Antonio Andreucci

07/04/2016

Leia também a Parte 1 e a Parte 3.

III – O BEM JURÍDICO PENAL.

Não há consenso entre os estudiosos sobre a conceituação de bem jurídico penal, não obstante sua importância seja reconhecida e destacada tanto pela doutrina pátria como pela alienígena, uma vez que possuidor de uma transcendência ontoaxiológica, dogmática e prática que constitui a base da existência do ordenamento punitivo de qualquer Estado.

Luiz Regis Prado ressalta que, apesar de o postulado de que o delito lesa ou ameaça de lesão bens jurídicos ter a concordância quase total e pacífica dos doutrinadores, o mesmo não se pode dizer a respeito do conceito de bem jurídico, onde reina grande controvérsia. Aliás, a falta de clareza do significado de bem jurídico (termo equívoco) encontra correspondência na ausência de precisão de seu conceito.[1]

Assim, prossegue o referido autor, “originariamente, com base na mais pura tradição neokantiana, de matiz espiritualista, procura-se conceber o bem jurídico como valor cultura – entendida a cultura no sentido mais amplo, como um sistema normativo. Os bens jurídicos têm como fundamento valores culturais que se baseiam em necessidades individuais. Estas se convertem em valores culturais quando são socialmente dominantes. E os valores culturais transformam-se em bens jurídicos quando a confiança em sua existência surge necessitada de proteção jurídica.”[2]

Portanto, a seleção dos bens jurídicos fundamentais para uma sociedade não pode prescindir de uma análise axiológica fundamentada, que passe por um inafastável viés de legitimidade popular, que tenha por lastro a Constituição, ainda mais na produção do Direito Penal Secundário que, como já ressaltado anteriormente, possui normas que muito se assemelham ao Direito Administrativo Sancionador.

IV – DIREITO PENAL SECUNDÁRIO E AS CONTRAVENÇÕES PENAIS.

O Direito Penal Secundário pode ser conceituado como o conjunto de normas de natureza punitiva que constituem objeto da legislação extravagante, contendo, muitas vezes, o sancionamento de ordenações de caráter administrativo.

Nessa moldura se enquadram as contravenções penais.

Crime e contravenção penal são espécies de infração penal.

Nesse aspecto, o Brasil adotou a classificação bipartida das infrações penais, distinguindo crime de contravenção penal.

Não há regra para a caracterização da infração em crime ou contravenção. Conforme a vontade do legislador, um fato pode ser definido como crime ou contravenção, de acordo com as aspi­rações sociais.

Contravenção penal é uma espécie de infração penal de menor potencial ofensivo. Não há diferença essencial entre crime e contravenção. Entretanto, o art. 1.º do Decreto-Lei n. 3.914, de 9 de dezembro de 1941 (Lei de Introdução ao Código Penal e à Lei das Contravenções Penais), estabelece: “Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. O diploma que rege as contravenções penais é o Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941.

Entretanto, a contravenção penal pode se diferenciar do crime em relação ao perigo de ofensa ou lesão ao bem ou interesse jurídico atingido. Nesse sentido esclarece Manoel Pedro Pimentel que “contra a ofensa ou a lesão dos bens e interesses jurídicos do mais alto valor, o legislador coloca duas linhas de defesa: se ocorre o dano ou o perigo próximo do dano, alinham-se os dispositivos que, no Código Penal, protegem os bens e interesses através da incriminação das condutas ofensivas, lesivas, causadoras de dano ou criadoras de perigo próximo, resultando as categorias dos crimes de dano e de perigo; se o perigo de ofensa ou de lesão não é veemente, e se o bem ou interesse ameaçados não são relevantes, alinham-se na Lei das Contravenções Penais os tipos contravencionais de perigo abstrato ou presumido e de perigo concreto. Conclui-se, portanto, que a Lei das Contravenções Penais forma a primeira linha de combate contra o crime, ensejando a inocuização do agente quando ele ainda se encontra no simples estado perigoso. Com sanções de pequena monta, prisão simples ou multa, impostas mediante processo sumaríssimo, alcança-se o principal objetivo que é coartar a conduta perigosa, capaz de ameaçar, no seu desdobramento, o bem ou o interesse tutelados.”[3]

A principal característica da contravenção penal e que a torna mais polêmica é o elemento subjetivo voluntariedade. Segundo Manoel Pedro Pimentel, “a voluntariedade não é a simples resultante de uma determinação psíquica de agir, mas uma propulsão no sentido de agir de modo contrário ao que está normatizado, única hipótese em que é possível cogitar-se da responsabilidade subjetiva. Dispensando a consciência de que seja ilícita a ação ou omissão, o legislador restaura o princípio do ‘versare in re illicita’, intolerável perante o nosso sistema jurídico-penal que consagra enfaticamente o ‘Direito penal da culpa’”.[4]

V – CONTRAVENÇÕES PENAIS E DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. 

A restrição do âmbito do penalmente tutelável é uma preocupação moderna que busca, por meio da seleção dos bens jurídico-penais efetivamente relevantes para a sociedade, evitar a hipercriminalização, mantendo o caráter fragmentário do Direito Penal e dele expurgando todas as condutas de discutível relevo ético-jurídico.

Nesse sentido, parcela da doutrina pugna pela revogação da Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei nº 3.688/41), por padecer de déficit de legitimidade frente à moderna concepção de bem jurídico-penal, a qual seria absorvida ou transformada em normas administrativas, agregando-se ao Direito Administrativo Sancionador.

Guilherme Gouvêa de Figueiredo enfrenta o assunto com magistral propriedade ao acentuar que a “administrativização do direito penal significa, portanto, a assunção de uma nova postura político-criminal por parte do legislador. À custa do abandono do conteúdo liberal do conceito de bem jurídico, e com todas as implicações dogmáticas que daí advém, diz-se que o direito penal se administrativizou.”[5] E, prossegue o referido autor, “como o que se protege são contextos genéricos e de questionável potencialidade crítica, o direito penal é levado a responder, com seus instrumentos próprios de atuação, tão logo quando se contravenha os standards estabelecidos pela Administração. Rompendo com a tradição de se orientar à salvaguarda de bens jurídicos concretos e determinados e reagir a formas de lesão ou perigosidade também concretas e determináveis, o direito penal vê-se vocacionado, tal como o direito administrativo sancionador, a perseguir funções de ordenação de setores da atividade administrativa.”[6]

Ora, mas a simples administrativização das contravenções penais seria a solução?

Diogo de Figueiredo Moreira Neto e Flávio Amaral Garcia, enfrentando a questão da principiologia no Direito Administrativo Sancionador, esclarecem que, “desde os três último decênios do século XX, na doutrina e na jurisprudência européias, e, mais recentemente, nas que foram desenvolvidas no âmbito comunitário, tem-se difundido o esclarecido entendimento de que as sanções administrativas, tradicionalmente entendidas como circunscritas ao campo de atividade administrativa de polícia, são, em verdade, uma manifestação específica de um ius puniendi genérico do Estado, destinado à tutela de quaisquer valores relevantes da sociedade, transcendendo o âmbito da função de polícia para se estender às demais funções administrativas, incluindo as regulatórias, próprias do ordenamento econômico e do ordenamento social.[7]

Efetivamente, as normas do Direito Administrativo Sancionador não se revestem da mesma base principiológica das normas de Direito Penal, a elas não se aplicando o princípio da legalidade (na vertente da irretroatividade da norma mais severa), nem tampouco os princípios da intranscendência da pena e do devido processo legal (na vertende da ampla defesa e do contraditório).

Assim, prosseguem os referidos autores, “no campo do Direito Administrativo Sancionador, não se pode compreender a atividade punitiva do Estado sem que prevista em lei em sentido formal, posto que a imposição de penalidades administrativas a particulares significa atingi-los em suas atividades, seus bens e seu patrimônio, restringindo, portanto, direitos individuais.[8]

(continua...)

*Esta é a segunda parte de uma série de 3 artigos que compõe um ensaio e que serão publicados semanalmente nesta coluna.


Notas e Referências:

[1] PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 44.

[2] PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2003. p. 44.

[3] PIMENTEL, Manoel Pedro. Contravenções penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 3

[4] PIMENTEL, Manoel Pedro. Contravenções penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 20

[5] FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito Penal, contravenções penais e direito administrativo sancionador. In Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca. vol. 7, nº 1. jul 2013. p. 26.

[6] FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito Penal, contravenções penais e direito administrativo sancionador. In Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca. vol. 7, nº 1. jul 2013. p. 26.

[7] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo e GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no Direito Administrativo Sancionador. In Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. n.28, 2012, p.3

[8] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo e GARCIA, Flávio Amaral. A principiologia no Direito Administrativo Sancionador. In Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. n.28, 2012, p.3


Curtiu o artigo???

Conheça os livros de Ricardo Antonio Andreucci!

JUR_Andreucci


 

Imagem Ilustrativa do Post: CAN YOU BOOGIE // Foto de: marc falardeau // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/49889874@N05/8462268123

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura