No dia 01 de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal – STF decidiu, por unanimidade, que a tese de “legítima” defesa da honra, usada em casos de feminicídio e violência contra a mulher, é inconstitucional. A decisão impede que advogados/as de réus sustentem a tese ou qualquer argumento que induza a ela, nas fases pré-processual ou processual penal e/ou perante o tribunal do júri.
O debate ocorreu na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 779, protocolada pelo Partido Democrático Trabalhista – PDT, que pedia uma interpretação constitucional a trechos do Código Penal e do Código de Processo Penal, para que se afirme que permissivos legais à legítima defesa enquanto excludente de ilicitude penal (e civil) não possuem, em seu âmbito de proteção (seu suporte fático), uma autorização para assassinar pessoa que comete (ou foi acusada de) adultério, à luz da “nefasta, horrenda e anacrônica tese de lesa-humanidade da legítima defesa da honra” . A petição é assinada por Paulo Iotti, Soraia Mendes, Carolina Ferraz, Maria Berenice Dias, Marina Ganzarolli e Luanda Pires, a quem agradecemos a dedicação e empenho à importante causa.
O grande tema enfrentado adentra na questão que envolve as importantes garantias constitucionais referente à plenitude da defesa e à soberania dos veredictos em casos submetidos ao Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, “a” e “c” da CF). Uma parte da doutrina entendeu que a proibição de utilização da tese de “legítima” defesa da honra implicaria na ofensa a tais princípios, o que seria inadmissível. Outra parte (na qual nos filiamos), defende que se trata de uma colisão de direitos protegidos constitucionalmente e que, como o que está em jogo é o princípio da dignidade da pessoa humana (no caso da mulher morta, nos casos de feminicídio consumado, ou mulher sobrevivente, quando ele tiver sido tentado), bem como o princípio da proteção à vida e o da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF), há de prevalecer os mencionados princípios.
É preciso esclarecer: a observância aos princípios da soberania do júri e da amplitude da defesa, não pode implicar a que sejam permitidas decisões contrárias aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF), o que levaria a decisões, consequentemente, inconstitucionais, como bem decidiu o STF (item I da decisão). Confira-se a integralidade da decisão:
O Tribunal, por unanimidade, julgou integralmente procedente o pedido formulado na presente arguição de descumprimento de preceito fundamental para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput, da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa, à acusação, à autoridade policial e ao juízo que utilizem, direta ou indiretamente, a tese de legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como durante o julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento; (iv) diante da impossibilidade de o acusado beneficiar-se da própria torpeza, fica vedado o reconhecimento da nulidade, na hipótese de a defesa ter-se utilizado da tese com esta finalidade. Por fim, julgou procedente também o pedido sucessivo apresentado pelo requerente, de forma a conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 483, III, § 2º, do Código de Processo Penal, para entender que não fere a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri o provimento de apelação que anule a absolvição fundada em quesito genérico, quando, de algum modo, possa implicar a repristinação da odiosa tese da legítima defesa da honra. Tudo nos termos do voto reajustado do Relator. Presidência da Ministra Rosa Weber. Plenário, 1º.8.2023.
A decisão encontra-se em linha com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero , que em seu item c.4, do Capítulo 3, faz referência explícita à ADPF 779, que, à época da elaboração do documento, ainda não tinha sido julgada em seu mérito, restando apenas decisão liminar. Confira-se:
c.4. Legítima defesa da honra
Em março de 2021, o Supremo Tribunal Federal, na ADPF 779, declarou inadmissível sustentar a tese de “legítima defesa da honra” em qualquer fase processual ou pré-processual do julgamento dos processos de feminicídio tentado ou consumado, por contrariar os preceitos constitucionais da dignidade da pessoa humana, da vedação de discriminação e os direitos à igualdade e à vida. Referida decisão, se por um lado coloca em evidência a construção da sociedade brasileira em bases de desigualdade entre os gêneros, ao registrar histórico de desvalia da vida e da integridade de mulher, por outro lado constitui marco histórico no julgamento com perspectiva de gênero pela Corte Constitucional, a nortear não só julgamentos, mas os atos desenvolvidos nas duas fases da persecução penal.
Também encontra alinhamento no Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios – Decreto 11.640 , de 16 de agosto de 2023, que, em seu art. 4º, ao tratar de seus eixos estruturantes, apresenta as três formas de prevenção, sendo que a secundária se dirige diretamente ao tema aqui proposto:
II - prevenção secundária - ações planejadas para a intervenção precoce e qualificada que visem a evitar a repetição e o agravamento da discriminação, da misoginia e da violência com base no gênero e em suas interseccionalidades, desenvolvidas por meio das redes de serviços especializados e não especializados nos setores da segurança pública, saúde, assistência social e justiça, dentre outros, e apoiadas com o uso de novas ferramentas para identificação, avaliação e gestão das situações de risco, da proteção das mulheres e da responsabilização das pessoas autoras da violência;
Ao nos voltar os olhos ao feminicídio, uma perspectiva de gênero é capaz de fazer compreender o complexo fenômeno. Como bem explicita Tania Teixeira Laky de Sousa , o feminicídio apresenta-se como o culminar de um processo continuado de práticas de dominação e submissão sobre as mulheres, onde, a cada violação de direitos e de ofensa à dignidade, se sucedem outras violações. A este processo corresponde a perda de referenciais na relação entre sujeitos, onde a desigualdade de poder entre eles resulta na submissão reiterada e sistemática e na perda de direitos dos dominados ao ponto da depreciação de seu direito à vida.
Muitas, portanto, são as circunstâncias a serem percebidas e valoradas negativamente, sendo que dentre elas podemos citar: dominação, discriminação, menosprezo, ódio, despeito, represália, opressão, subjugação, sexismo, misoginia, violência reiterada, desumanização, hierarquização, ofensa à dignidade da pessoa humana, restrição de direitos, possessividade, controle etc.
E é exatamente aqui que toda a preocupação se concentra, uma vez que a decisão do STF comunica a importante e básica ideia de que a vida das mulheres importa. Ademais, confirma o compromisso do Poder Judiciário em não se permitir ser ator e/ou reprodutor (seja magistrado ou magistrada) de uma cultura que permanece enredando a mulher em papéis que as diminui, discrimina e violenta, retirando delas a própria dignidade.
Nesse sentido destacamos alguns trechos dos votos das duas únicas Ministras do STF, a começar pelos de Cármen Lúcia, a qual aduz que:
É preciso que isso seja extirpado inteiramente. Mais que uma questão de constitucionalidade, que tem como base a dignidade humana, estamos falando de dignidade no sentido próprio, subjetivo e concreto de uma sociedade que ainda hoje é sexista, machista, misógina e mata mulheres apenas porque elas querem ser o que elas são: mulheres donas de suas vidas.
A jurisprudência há de se fazer coerente com o tempo em que vivemos. Um tempo de dignidade humana descrita constitucionalmente, mas de indignidades desumanas que prevalecem, especialmente contra alguns grupos.
A preocupação estampada pela Ministra, infelizmente, encontra eco nos levantamentos acerca de violência contra a mulher. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), na pesquisa Visível e Invisível – 4ª edição, os “ex” (ex-marido, ex-companheiro e ex-namorado) já figuram como o principal responsável pela violência praticada contra mulheres no Brasil, chegando a 31,3% dos casos. Uma constatação evidente: a decisão da mulher de romper o relacionamento não está sendo respeitada (e, pior, tem gerado ainda mais violência), o que nos faz lembrar Cecilia Meireles, em trecho de seu poema “Mulher ao espelho”:
Já fui loura, já fui morena, / já fui Margarida e Beatriz. / Já fui Maria e Madalena. / Só não pude ser como quis.
Dentro desse mesmo contexto, em voto memorável, afirma a Ministra Rosa Weber :
Não há espaço no contexto de uma sociedade democrática, livre, justa e solidária, fundada no primado da dignidade da pessoa humana, para a restauração de costumes medievais e desumanos do passado, pelos quais tantas mulheres foram vítimas da violência e do abuso por causa de uma ideologia patriarcal fundada no pressuposto da superioridade masculina.
Atualmente, sob a égide da ordem constitucional de 1988, a sociedade brasileira comprometida com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o repúdio à violência e à todas as formas de discriminação, já não mais tolera que nenhuma pessoa seja privada do direito à vida.
A ADPF 779, cujo julgamento de mérito pela sua total procedência ocorreu no mês de sensibilização pelo fim da violência contra a mulher (agosto), constitui um grande avanço, já que protege os direitos das mulheres e, neste cenário, a honra das vítimas – não dos agressores. Afinal, nenhuma postura justifica uma violência de gênero e, nos piores casos, o feminicídio. Posturas violentas como essas são inconcebíveis; uma defesa misógina e ultrajante também.
Feminicídio é uma morte anunciada e evitável. Fazemos votos de que o julgamento da ADPF 779 contribua para impedir mais mortes, a partir de uma nova (e tardia) forma da conceber a mulher na sociedade, em que a ela seja dado não só oportunidade de se manifestar (lugar de fala), como também de ser ouvida de forma qualificada, conhecendo suas dores, medos, inseguranças e aflições. Nenhuma mulher a menos! Nós queremos vivas e livres!
Notas e referências
ABREU, Ana Cláudia da Silva. Denúncias de feminicídios e silenciamentos: olhares decoloniais sobre a atuação do sistema de justiça criminal, São Paulo: Blimunda, 2022.
ÁVILA, Thiago Pierobom de, MEDEIROS, Marcela Novais Medeiros, CHAGAS, Cátia Betânia, VIEIRA, Elaine Novaes, MAGALHÃES, Thais Quezado Soares e PASSETO, Andrea Simoni de Zappa. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades, IN: Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, ago 2020, p. 376.
BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha. São Paulo: Tirant Brasil, 2021.
BIANCHINI, Alice; BAZZO; Mariana Seifert; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres. Salvador: JusPodwm, 3. ed., 2021.
CLADEM. Contribuciones al debate sobre la tipificación penal del femicidio/ feminicídio. Lima, 2011. Disponível em: <http://www.compromissoeatitude.org.br/wpcontent/uploads/2013/10/CLADEM_TipificacaoFeminicidio2012.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Perfil das vítimas de feminicídio no Rio de Janeiro. Disponível em: http://sistemas.rj.def.br/publico/sarova.ashx/Portal/sarova/imagem-dpge/public/arquivos/Relat%c3%b3rio_perfil_das_v%c3%adtimas_de_feminicidio_10.03.2020.pdf
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