Direito intertemporal no âmbito probatório – Por Leonardo Carneiro da Cunha

11/04/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

1. Normas sobre provas

As provas judiciárias são disciplinadas tanto por normas de direito material como por normas de direito processual. Há normas sobre provas em diplomas de direito material e em diplomas de direito processual. Não é, porém, a simples circunstância de estar num diploma de direito material que faz com que aquela norma sobre a prova seja material. De igual modo, não é o simples fato de a norma estar num diploma processual que a caracteriza como processual.

Para Chiovenda, as normas gerais sobre provas teriam natureza processual, enquanto as normas especiais seriam materiais. As normas probatórias gerais – de natureza processual – seriam aquelas que se destinam à formação do convencimento do juiz. Já as especiais – de natureza material – regulariam determinadas relações jurídicas materiais, não servindo diretamente à formação do convencimento do juiz[1].

O critério utilizado por Chiovenda não é consistente, não sendo clara a distinção por ele proposta entre norma geral sobre prova e norma especial sobre prova.

A natureza da norma é, segundo Paula Sarno Braga, definida em virtude do papel que desempenha: se a norma regula o procedimento de criação da norma ou da decisão, é processual; se trata do conteúdo da decisão, é material[2]. Por sua vez, Beclaute Oliveira Silva entende que há normas de estrutura e normas de conduta; as de estrutura estipulam a produção de outras normas, sendo normas de procedimento, enquanto as que estipulam como a conduta intersubjetiva vai se estabelecer são normas de conduta[3].

Sendo assim, o direito material ocupa-se da essência das provas, indicando seu valor, seu objeto, sua admissibilidade e suas consequências, pois esses são aspectos que consistem em objeto da decisão. É dizer: ocupa-se do direito de prova. Por sua vez, as normas que tratam do modo, do lugar e do tempo da produção da prova, são processuais, pois regulam o seu procedimento. As normas que dizem respeito à demonstração do fato jurídico são de direito material; o modo de sua produção é processual, podendo-se afirmar que há um procedimento para se exercer o direito de prova.

Em outras palavras, as normas que tratam da determinação das provas, da indicação do seu valor e de suas condições de admissibilidade são materiais, sendo processuais as que estabelecem o modo de constituir a prova e de produzi-la em juízo[4]. As disposições relativas à essência das provas, à sua admissibilidade, aos seus efeitos, às pessoas que devem ministrá-las são materiais, enquanto as relativas ao modo, tempo e lugar de sua constituição e produção são processuais[5].

Há, em diplomas de direito processual, normas sobre admissibilidade das provas, seu valor, seus efeitos e sobre pessoas que devem ministrá-las. Por sua vez, há, em diplomas de direito material, normas sobre o modo, o tempo e lugar de sua constituição e produção. Como já dito, não é por estar num diploma de direito processual que a norma será processual, nem por estar num diploma material que a norma será material.

Não é estranho, inclusive, haver normas processuais em diplomas de direito material e, de outro lado, normas materiais em diplomas processuais (chamadas pela doutrina de normas heterotópicas), a exemplo do que sucedia com o art. 401 do CPC-1973[6], que constituía uma norma material – tratava da admissibilidade ou do valor da prova testemunhal[7] – inserida num diploma de direito processual.

É preciso, como explica Lopes da Costa, distinguir entre a prova e o modo de assumi-la. O modo de produzir a prova, o lugar e o tempo de sua produção, enfim, a norma processual sobre a prova tem aplicação imediata. Havendo lei superveniente que altere o modo, o lugar ou o tempo da produção da prova, deve ser aplicada aos processos em curso. Assim, por exemplo, disposição que mande que a parte interrogue a testemunha não diretamente, mas de modo indireto, mediante o juiz. Nova lei que permita a inquirição imediata deve ser desde logo aplicada, se surgir no curso do processo[8].

Já as normas materiais sobre a prova são aquelas em vigor no momento em que o ato ou fato jurídico se realizou. Lei nova que altere a disciplina relativa à admissibilidade da prova, seu objeto, seu valor, seus efeitos e as pessoas que podem ministrá-las não se aplica a casos em que os fatos ocorreram antes. Nesses casos, aplica-se a lei em vigor na época em que ocorreu o fato jurídico, ou se praticou o ato jurídico ou se celebrou o negócio jurídico[9].

2. O art. 1.047 do CPC-2015

O CPC-2015 contém um dispositivo que trata do direito intertemporal no âmbito probatório. Trata-se do art. 1.047, que assim dispõe: “As disposições de direito probatório adotadas neste Código aplicam-se apenas às provas requeridas ou determinadas de ofício a partir da data de início de sua vigência”.

O marco temporal, definido em tal dispositivo, é o requerimento ou a determinação de ofício da produção da prova. Nos termos do mencionado dispositivo, as disposições de direito probatório do novo Código não se aplicam aos processos em curso que já tiveram prova requerida ou determinada de ofício pelo juiz. As disposições do novo Código somente se aplicam a partir do requerimento de produção de prova feito depois do início de sua vigência, ou a partir da determinação de ofício de sua realização que tenha sido emitida depois do início de sua vigência[10].

Conforme anotado no enunciado 366 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, “O protesto genérico por provas, realizado na petição inicial ou na contestação ofertada antes da vigência do CPC, não implica requerimento de prova para fins do art. 1.047”.

Pelo disposto no referido art. 1.047, se a parte tiver requerido determinada prova ainda na vigência do Código revogado, a sua produção, o modo, o lugar e o tempo não serão regulados pelo novo Código. Assim, por exemplo, se parte tiver requerido prova testemunhal ainda na vigência do CPC-1973, mas o testemunho só venha a ser colhido já na vigência do CPC-2015, a parte não poderá fazer perguntas diretamente à testemunha (CPC-2015, art. 459), devendo, nesse ponto, aplicar o CPC-1973 e requerer ao juiz para que este, então, formule sua pergunta (CPC-1973, art. 416).

Tal situação pode acarretar um problema de falta de igualdade no processo. Imagine que o requerimento acima mencionado foi feito pelo autor, ainda sob a vigência do Código revogado. Imagine-se que, em momento seguinte, o réu, agora já sob a vigência do novo Código, também requer a produção de prova testemunhal. A se aplicar o disposto no referido art. 1.047, a oitiva da testemunha requerida pelo autor seguirá a regra do art. 416 do CPC-1973 e a requerida pelo réu, a do art. 459 do CPC-2015, causando uma assimetria e distorção no procedimento de produção da prova testemunhal.

Enfim, imagine-se uma prova requerida ainda na vigência do CPC-1973, mas que venha a ser produzida depois do início de vigência do CPC-2015. Aplicada a regra do art. 1.047 do novo Código em sua literalidade, toda a fase de produção de prova terá de ser feita de acordo com as normas do Código revogado, enquanto as outras provas do mesmo processo, requeridas posteriormente, já sob a vigência do CPC-2015, serão processadas nos termos das normas contidas neste último[11].

Seguindo-se literalmente o disposto no mencionado art. 1.047, se a parte requereu a produção de prova exclusivamente testemunhal em caso relativo a contrato de alto valor já na vigência do novo Código, será possível sua realização, pois seriam aplicáveis suas disposições, que não reproduzem a proibição contida no art. 401 do CPC-1973[12]. Tal proibição também constava do art. 227 do Código Civil, que foi expressamente revogado pelo art. 1.072, II, do CPC-2015.

Esta última interpretação não poderá ser adotada, sob pena de haver inadmissível retroatividade. É que o art. 401 do CPC-1973 e o art. 227 do Código Civil tratavam da admissibilidade da prova testemunhal, consistindo numa norma de direito material. Logo, deve ser aplicada a lei do momento da celebração do negócio jurídico. Aplicar, nesse exemplo ora aventado, o novo CPC equivale a retroagir sua incidência para alcançar ato jurídico perfeito e alterar seus efeitos. É inconstitucional, portanto, essa aplicação, por atentar contra o disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

A disciplina legal da prova conta com uma variedade de incidência normativa e com múltiplos aspectos que a envolvem. Não é aconselhável, por essa razão, haver dispositivo legal que contenha norma transitória a respeito de direito probatório, acarretando a impossibilidade de sua aplicação em alguns casos e a ocorrência de tratamento anti-isonômico em tantos outros.

O que ser percebe, na realidade, é que o art. 1.047 do CPC destina-se a proteger a parte – preservando as expectativas processuais relacionadas à produção da prova – e, assim, concretizar o contraditório e a segurança jurídica, que são princípios que balizam ou orientam a regra. Não é possível aplicar uma restrição à proposição e à admissibilidade de uma prova que não existia no CPC-1973 a um processo em que a parte já a tenha requerido ou o juiz a tenha determinado de ofício. Requerida a prova ou determinada sua produção de ofício pelo juiz surge para as partes a expectativa de que a prova será produzida, não podendo qualquer restrição, vedação ou inadmissibilidade superveniente alcançá-las.

Esse é o sentido que se deve construir a partir da conjugação do art. 1.047 do CPC-2015, com o disposto nos seus arts. 14 e 1.046, bem como com o disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal.

As regras sobre a produção da prova aplicam-se imediatamente, mesmo em relação às provas que foram requeridas ou determinadas de ofício, antes do início de vigência do novo Código. Somente não se aplicam, como visto, as regras proibitivas, restritivas ou que tornem inadmissíveis as provas já requeridas ou determinadas de ofício pelo juiz.

Volte-se a imaginar o exemplo já apresentado. Requerido um depoimento testemunhal ainda na vigência do Código revogado, não faz sentido deixar de aplicar a nova regra de colheita da prova testemunhal, prevista no art. 459 do CPC-2015, se a oitiva da testemunha ocorrer já sob sua vigência. A aplicação da nova regra – que permite às partes formularem perguntas diretamente às testemunhas – não restringe qualquer direito da parte, reforçando, muito pelo contrário, sua participação no processo e aprimorando o contraditório.

Imagine, ainda, que a parte requeira, ainda sob a vigência do Código revogado, uma prova pericial. Não faz sentido, se a perícia vier a ser realizada já na vigência do novo Código, deixar de aplicar a regra prevista no art. 473 do CPC-2015, que estabelece os requisitos do laudo pericial. A nova regra não restringe qualquer direito da parte, reforçando, bem ao contrário, a sua participação no processo e aprimorando o contraditório.

O art. 1.047 do CPC-2015 é, portanto, de difícil compreensão, não sendo possível imaginar uma hipótese em que ele tenha de fato incidência. Tal dispositivo há de ser lido em conjunto com os arts. 14 e 1.046 do mesmo CPC-2015, bem como com o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. É regra que se destina a impedir a aplicação de restrições e proibições de provas em casos em que já houve requerimento ou determinação de ofício da realização da prova.

No mais, o dispositivo revela-se inútil e inoperante. Sua aplicação deve pautar-se na finalidade a ser alcançada, que é a de concretizar o contraditório e a segurança jurídica, protegendo a confiança.


Notas e Referências:

[1] CHIOVENDA, Giuseppe. “La natura processuale delle norme sulla prova e l’efficacia della legge processuale nel tempo”. Saggi di diritto processuale civile (1894-1937). Milano: Giuffrè, 1993, v. 1, p. 241-259.

[2] BRAGA, Paula Sarno. Norma de processo e norma de procedimento: o problema da repartição de competência legislativa no direito constitucional brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2015, passim.

[3] SILVA, Beclaute Oliveira. A garantia fundamental à motivação da decisão judicial. Salvador: JusPodivm, 2007, p. 52-53.

[4] SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1952, v. 1, n. 23, p. 48.

[5] Idibem, p. 48.

[6] “Art. 401. A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente no país, ao tempo em que foram celebrados”.

[7] LOPES, João Batista. A prova no direito processual civil. São Paulo: RT, 1999, p. 25.

[8] COSTA, Alfredo Araújo Lopes da. Direito processual civil brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, n. 283, p. 260. No mesmo sentido: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, cit., n. 25, p. 49-51.

[9] COSTA, Alfredo Araújo Lopes da. Direito processual civil brasileiro. Ob. cit., n. 284, p. 261. No mesmo sentido: SANTOS, Moacyr Amaral. Prova judiciária no cível e comercial, cit., n. 25, p. 49-51.

[10] Para Ronaldo Cramer, a regra do art. 1.047 tem razão de ser, servindo para preservar a expectativa da parte e do juiz de que a prova seja produzida conforme a legislação do momento em que ela foi concebida como útil [“Comentários ao art. 1.047”. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. Teresa Arruda Alvim Wambier; Fredie Didier Jr.; Eduardo Talamini; Bruno Dantas (coords.). São Paulo: RT, 2015, p. 2.364]. A regra, pelas razões expostas neste Capítulo, não preserva expectativa da parte, causando, na realidade, um sério problema na aplicação de regras sobre provas; em algumas situações, chega a ser inconstitucional, por retroagir indevidamente ou por violar a isonomia, desconsiderando a natureza das normas sobre provas. Além disso, não há expectativas do juiz a serem preservadas pelo legislador. O juiz deve atuar de acordo com a legislação em vigor no momento do ato, a depender de o direito ser material ou processual.

[11] PESSOA, Fabio Guidi Tabosa. “Comentários ao art. 1.047”. Comentários ao Código de Processo Civil. Lenio Luiz Streck; Dierle Nunes; Leonardo Carneiro da Cunha (orgs.); Alexandre Freire (coord. exec.). São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1.404.

[12] “Art. 401. A prova exclusivamente testemunhal só se admite nos contratos cujo valor não exceda o décuplo do maior salário mínimo vigente no país, ao tempo em que foram celebrados”.


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