Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi
Prezados leitores do Empório do Direito,
Na coluna desta semana, analisaremos recente acórdão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Recurso Especial 1.833.935/RJ[1], que houve por resolver controvérsia de direito intertemporal, no que diz respeito ao prazo processual aplicável à impugnação ao cumprimento de sentença, na hipótese em que o pagamento voluntário terminou na vigência do Código de Processo Civil de 1973.
Interpretou aquele colegiado, na linha do disposto no Enunciado nº 530, do Fórum Permanente de Processualistas Civis – FPPC, que, após a entrada em vigor do CPC/2015, o juiz tem o dever de intimar o executado para que apresente impugnação ao cumprimento de sentença, em 15 dias, mesmo sem depósito, penhora ou caução, caso tenha transcorrido o prazo para cumprimento espontâneo da obrigação na vigência do CPC/73 e não tenha àquele tempo garantido o juízo.
No caso concreto, o Banco Santander Brasil S/A foi intimado, em data de 02 de março de 2016, ao cumprimento de obrigação de pagar quantia certa, no prazo de 15 dias, obedecendo-se ao contido no art. 475-J do CPC/73. O prazo começou a fluir em 03 de março de 2016, findando em 17 de março daquele ano, exatamente um dia antes do início da vigência do CPC/2015[2].
Ocorre que, como se sabe, o CPC/2015, na redação contida no art. 525, modificou a contagem do prazo para o oferecimento da impugnação ao cumprimento de sentença, sendo de 15 dias úteis a partir do final do prazo de 15 dias úteis – previsto no art. 523 – para o pagamento voluntário, independentemente de penhora ou outra garantia do juízo.
Registre-se que esse prazo para o oferecimento da impugnação ao cumprimento de sentença, conforme estatuído no art. 475-J, §1º do CPC/73, era de 15 dias contados da intimação da penhora e avaliação. Tomando esta regra por base, a instituição financeira devedora deixou escoar os 15 dias úteis e não ofereceu impugnação, provavelmente aguardando que se desse a penhora, que só se concretizou meses depois, via penhora de valores em conta-corrente, com intimação apenas quanto à impenhorabilidade de contas ou indisponibilidade excessiva de ativos financeiros. A impugnação, pois, fora apresentada em 06 de dezembro daquele ano de 2016, havendo se declarado a intempestividade no juízo de origem, mantida também no Tribunal de Justiça respectivo, em sede de agravo de instrumento.
Ao interpor recurso especial, o argumento da parte devedora era de o que se fazia necessária uma intimação específica para que fosse iniciado o prazo de apresentação da impugnação ao cumprimento de sentença.
Eis, portanto, uma típica questão de Direito Intertemporal, que precisou ser dirimida pelo Superior Tribunal de Justiça. Seria ou não o caso de aplicação imediata dos ditames do novel diploma? Essa aplicação imediata, acaso admitida, não implicaria numa retroatividade em prejuízo?
Não são simples, no mais das vezes, as questões que surgem como objeto do Direito Intertemporal, sempre que um grande diploma é substituído por outro, quer no campo material, quer no campo processual. Inúmeras dessas questões acabam por desaguar no Judiciário e são resolvidas anos, como naquela em verificação presente, após a entrada em vigor da nova lei. O CPC/2015, quando cuidou da sua aplicação no tempo, optou por adotar o chamado sistema do isolamento dos atos processuais. Tal sistema, consoante lições de Leonardo Carneiro da Cunha, considera cada ato processual isoladamente, devendo ser regido pela lei em vigor no momento de sua prática, não importando em que fase se encontre o processo[3].
Pois bem. O art. 14 do CPC/2015 é claro ao prever que a norma processual não retroagirá, mas será aplicável imediatamente aos processos em curso, com respeito aos atos processuais praticados e às situações jurídicas que se consolidaram na vigência do código anterior.
No caso sob análise, o prazo para que se desse o pagamento voluntário começou e terminou ainda sob o manto do CPC/73, de sorte que aplicar de logo o CPC/2015 representaria retroagir – ainda que em um dia – o novo diploma, violando o art. 14 do próprio CPC/2015, visto que a impugnação dependia, pelo diploma anterior, da ocorrência da penhora, e esta representava evento futuro e incerto.
Na visão de Leonardo Carneiro da Cunha, terminado, na vigência do CPC/73, o primeiro prazo de 15 dias, destinado ao pagamento do valor a que fora condenado o executado, não será mais possível aplicar o novo Código quando da sua entrada em vigor. Se aquele prazo já se encerrou, o executado deve aguardar a intimação para o início do segundo prazo de 15 dias, destinado ao oferecimento da impugnação[4].
O relator, em seu voto, fez inclusive menção direta ao Enunciado 530, do Fórum Nacional de Processualistas Civis – FPPC, que estabelece que “após a entrada em vigor do CPC/2015, o juiz deve intimar o executado para apresentar impugnação ao cumprimento de sentença, em quinze dias, ainda que sem depósito, penhora ou caução, caso tenha transcorrido o prazo para cumprimento espontâneo da obrigação na vigência do CPC/73 e não tenha àquele tempo garantido o juízo”.
Comentando referido enunciado, José Humberto Pereira Muniz Filho e Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Jr. Sustentam que o objetivo do mesmo é o de demonstrar o dever que tem o juiz de intimar o executado para apresentação da impugnação ao cumprimento de sentença, ainda que não garantido o juízo em 15 dias. Segundo eles, a inexistência daquela automaticidade ao início do prazo para impugnação ao cumprimento no CPC/73 faz com que a intimação seja obrigatória, pois o novo código alterou as regras de apresentação da impugnação, e por esta ainda estar pendente, aplicam-se as novas disposições sem restrições[5].
Atente-se aqui que, se houvesse sido o caso de não ter início qualquer prazo – nem o dos 15 dias para cumprimento espontâneo e nem o dos 15 dias para a impugnação – ambos haveriam de se reger pelos dizeres do CPC/2015, já que aí não estaríamos diante nem de retroatividade da lei posterior e nem de ultra atividade da lei anterior. Da mesma forma, se o CPC/2015 tivesse começado a vigorar durante a fluência do primeiro prazo, o CPC/2015 se aplicaria no que tange ao segundo prazo, de modo que, findo o primeiro, o segundo se iniciaria automaticamente, sem necessidade de intimação e sem exigência de garantia do juízo.
Mas não foi o que veio a ocorrer na situação objeto do acórdão em comento. Como já dito e repisado, o prazo de cumprimento espontâneo iniciou e terminou sob a égide do código revogado, de modo que não havia o início automático da fluência do segundo prazo, razão pela qual não se poderia imputar ao executado, no caso, o ônus de interpretar que deveria oferecer a impugnação em 15 dias úteis a partir daquele prazo findo.
Distinta seria a situação caso o executado tivesse garantido o juízo na vigência do CPC/73, porque nesse caso – como o prazo fluiria a partir da garantia, que equivaleria à ciência -, os desdobramentos legais se dariam pelas regras daquele diploma.
Em verdade, findo o prazo na vigência da lei anterior, o devedor criou expectativa de ser intimado da penhora, a qual somente se deu meses após. Na oportunidade, quando intimado, não se fez menção à abertura de prazo para oferecer a impugnação, tendo assim procedido em aplicação ao art. 218, §4º, do CPC/2015.
Tratar, pois, como intempestiva a sua impugnação representou violação à própria segurança jurídica, com prejuízos à parte em decorrência da “zona cinzenta” – utilizando-se a expressão do Ministro Relator em seu voto – criada pelo direito intertemporal.
Sendo assim, em ocorrendo situações como a que aqui tratamos, afigura-se coerente, como bem se procedeu na Terceira Turma do STJ, aplicar o Enunciado 530 do FPPC, na linha de que, quando se der o transcurso do prazo para cumprimento espontâneo, integralmente na vigência do CPC/73, mas observado que não houve, pelo devedor, garantia do juízo, necessariamente deverá o magistrado, para que se dê início aos 15 dias úteis para oferecimento da impugnação ao cumprimento de sentença, intimar o executado para tal mister.
Notas e Referências
[1] Relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 05.05.2020, DJE 11.05.2020.
[2] Enunciado administrativo n. 1/STJ: O Plenário do STJ, em sessão administrativa em que se interpretou o art. 1.045 do novo Código de Processo Civil, decidiu, por unanimidade, que o Código de Processo Civil aprovado pela Lei n. 13.105/2015, entrará em vigor no dia 18 de março de 2016.
[3] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 27.
[4] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 107.
[5] MUNIZ FILHO, José Humberto Pereira; ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. Comentários ao Enunciado 530. In PEIXOTO, Ravi (coord). Enunciados FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civis – Organizados por assunto, anotados e comentados. 2. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2019, p. 506.
Adquira as obras dos autores:
https://www.editorajuspodivm.com.br/fazenda-publica-e-execucao-2020
https://www.editorajuspodivm.com.br/sinopses-para-concursos-v49-poder-publico-em-juizo-2020
https://lumenjuris.com.br/direito-processual-civil/conflito-de-coisas-julgadas-2017-302/p
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/clearlyambiguous/2171313087
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode