“Direito Internacional e Estado Soberano” – o debate entre Hans Kelsen e Umberto Campagnolo¹

08/04/2018

PREÂMBULO:  A ESTRUTURA DO LIVRO

A obra “Direito Internacional e Estado Soberano” traz um interessantíssimo e intenso debate entre Hans Kelsen e Umberto Campagnolo – por ocasião da tese de doutorado de Campagnolo, cujo orientador foi o próprio Kelsen.

Contando com toda uma contextualização dos autores (Kelsen e Campagnolo) sistematizada por Mario G. Losano, assim também como por Norberto Bobbio, a obra proporciona ao pesquisador uma pequena imersão na vida e produção acadêmica dos debatedores. Metade do livro é dedicado a isso, quando Losano expõe as “presenças italianas em Kelsen” (primeiro capítulo), oferecendo ao leitor uma espécie de relato biográfico sobre a vida de obra de Kelsen – procedendo de igual modo para com Campagnolo -, trazendo algumas minúcias sobre sua trajetória acadêmica, incluindo aí as diversas intempéries sofridas pelos autores em decorrência de fatores políticos à época. De maneira mais singela, mas ainda assim bastante significativa, Bobbio também traceja os principais pontos da relação entre os autores em “Um Campagnolo, aluno e crítico de Hans Kelsen” (segundo capítulo), focando principalmente no debate objeto da obra – as divergências de pensamento e propostas de Kelsen e Campagnolo.

Nesse contexto, a publicação inicia com um texto elaborado pelo organizador Mario G. Losano, em que se relata a estrutura do livro de maneira resumida. Em primeiro lugar, destaca-se que Umberto Campagnolo iniciou os estudos como aluno de Hans Kelsen (1881-1973) em Genebra/Suíça, no ano de 1933, quando ambos viviam em exílio. Campagnolo defendeu sua tese de doutorado (1937), tendo Kelsen como orientador (doktorvater). Kelsen avaliou positivamente o trabalho de seu aluno e dedicou um extenso texto sobre ele, sendo o mais articulado texto a um autor italiano contemporâneo. Este preâmbulo estrutural explica, também, a proposta do livro: documentar o relacionamento acadêmico entre Kelsen e Campagnolo. No Cap. I., intitulado “Presenças Italianas em Kelsen”, inicia-se um ensaio elaborado pelo autor Mario G. Losano sobre os juristas italianos relacionados a Kelsen ou que influenciaram sua obra.

Na sequência, Norberto Bobbio apresenta o seu ensaio sobre a visão de Campagnolo acerca do Direito Internacional e sua crítica a Kelsen (Cap. II., “Umberto Campagnolo, aluno e crítico de Hans Kelsen”). Após, são expostas as ideias centrais da tese de Campagnolo, apresentada por um resumo feito pelo próprio autor (Cap. III., “As ideias mestras da minha tese”). Sobre a tese de Campagnolo, Kelsen escreve seus juízos e críticas (Cap. IV., “Juízo sobre a tese de Umberto Campagnolo”). Tendo examinado o conteúdo argumentativo de tais críticas, Campagnolo respondeu com um amplo ensaio de contracrítica (Cap. V., “Resposta a Hans Kelsen”).

Esse debate se completa com os juízos de demais membros da academia jurídica, até mais críticos do que Kelsen (Cap. VI., “Os outros juízos sobre a tese defendida por Campagnolo”). Por fim, o livro finaliza com um capítulo destinado ao projeto de pesquisa elaborado por Campagnolo sobre o que seria a intitulada Sociedade das Nações. Com efeito, a pretensão do cientista, nesse capítulo, foi apresentar um projeto para continuar seus estudos, com aprofundamento acerca dos princípios fundamentais do direito internacional, o qual ensejou o capítulo com o título (VII. “Um projeto de pesquisa sobre a Sociedade das Nações”).

Além disso, é preciso destacar que, após este período de intensas investigações realizadas por Campagnolo sob a orientação de Kelsen, com o início da Segunda Guerra Mundial, o autor da Teoria Pura do Direito muda-se de Genebra para os Estados Unidos e Campagnolo retorna à Itália. Os caminhos dos filósofos do direito se separam definitivamente.

Preliminarmente frisa-se que o problema central da tese apresentada por Campagnolo é “a antinomia entre direito internacional e Estado soberano”, como o próprio título do livro evidencia - “Direito Internacional e Estado Soberano.

Trata-se, de uma tese que visa analisar o possível significado que a “Sociedade das Nações poderia ter no desenvolvimento internacional. Assim, o livro debate os elementos centrais da tese de Campagnolo, de modo a ser um compilado de informações após minuciosas pesquisas realizadas com o apoio dos mais renomados institutos de direito europeu.

 

1. PRESENÇAS ITALIANAS EM KELSEN – POR MARIO G. LOSANO (p. 01/76) 

1.1 Kelsen e a Itália

A presença da produção científica de Kelsen na Itália ensejou ao mapeamento da difusão de suas obras no país, fluxo organizado por Mario G. Losano e atualizado até 1997 por G. Bongiovanni. De acordo com os dados auferidos, “Kelsen está presente na Itália muito mais do que a Itália em Kelsen” (p.3). A recepção de Kelsen na Itália é tamanha que a doutrina pura do direito figura até mesmo em livros de romances.  Chegou ao ponto de um representante da Cidade Livre de Fiume se apresentar a Kelsen, pedindo-lhe que redigisse uma Constituição (1919) para aquele Estado. Outros contatos com italianos foram com o organizador – Mario G. Losano -  onde houve a troca de correspondências durante a tradução da segunda edição da obra Reine Rechtslehre e contatos científicos com estudiosos italianos. Dois escritos foram publicados que tem por objeto autores italianos contemporâneos: carta enviada a Renato Treves, em 1933 (p. 42) e o juízo sobre a tese de doutorado de Campagnolo, em 1937. Registre-se a correspondência entre Kelsen e Giorgio del Vecchio. Nesse sentido, “provavelmente Kelsen tinha um conhecimento mais passivo do que ativo do italiano” (p.6). 

1.2. O escrito juvenil de Kelsen sobre Dante Alighieri

Kelsen enquanto estudante da Faculdade de Direito de Viena (Áustria), despertado seu interesse para a obra De Monarchia de Dante Alighieri, teve a ideia de escrever uma obra (monografia) relacionando a doutrina de Dante com as correspondentes teorias dominantes da época. Sua obra desenvolveu-se dentro de duas linhas vinculadas aos seus interesses jurídicos: a) exposição política de Dante do ponto de vista jurídico; b) e examinar criticamente a doutrina geral do Estado segundo o Poeta, sem concessões aos problemas da política. Nessa obra monográfica, além dos clássicos, Kelsen usou também diversos autores italianos contemporâneos. Nessa época, Kelsen entendia que “o Estado monárquico universal era uma convicção científica, e não política [...]. Na despolitização da visão imperial atribuída por Kelsen a Dante pode-se ler um pré-anúncio da ‘pureza’, da ‘neutralidade’, das futuras concepções kelsenianas”. Kelsen, por fim, considerou esta pesquisa como apenas ”nada mais que um trabalho escolar desprovido de originalidade” (p.8/10) 

1.3. Os primeiros artigos de Kelsen traduzidos na Itália

A neutralidade de doutrina proposta por Kelsen deixou de suscitar suspeitas do regime fascista italiano. Assim, no final dos anos 20, ensaios de Kelsen foram publicados na revista Nuovi studi di diritto, economia e politica, revista dirigida ao público de alto nível, entretanto com notória inspiração fascista, ideologia completamente estranha a Kelsen. Mesmo com a distância ideológica entre Kelsen e a redação do periódico, era notório o interesse nos textos de Hans Kelsen “o nome de Kelsen é hoje por demais prestigiado e discutido para que possamos dar-nos o luxo de desconhecer suas teorias”. Após o doutorado, obtido em 1906, Kelsen viajou a Heidelberg para aprofundar suas pesquisas com o maior publicista da época, Georg Jellinek. Do ponto de vista científico, tal orientação teórica deu forma aos escritos publicado no monumental “Hauptprobleme der Staatsrechtslehre (1910)”, orientação científica que guiou Kelsen nos anos seguintes, distanciando-se das teorias do seu início de carreira (p.10). 

1.4. Autores Italianos em Kelsen, até uma última citação em italiano

É impossível traçar um quadro completo dos autores italianos por ele citados. Um dos principais é Alessandro Passerin d’Éntreves (1902-1985), ao qual a “teoria do direito natural e direito positivo e a Teoria do direito natural e teoria pura do direito dedicam-se a inteiramente a discutir as teses do mencionado autor (p.13). Além de Alessandro Passerin d’Éntreves (direito natural), é possível auferir citações e influências de outros autores italianos como Tullio Ascarelli, Norberto Bobbio e Alessandro Giuliani. Em que pese a limitação de dados da pesquisa exposta, é possível demonstrar que o conhecimento acadêmico do italiano influenciou sobremaneira a vida científica de Kelsen. 

1.5. Kelsen e as Academias Italianas

Em 1969, Kelsen já havia recebido 11 doutorados honoris causa, mas nenhuma oriunda de universidade italiana. Três foram as academias italianas o perfilaram entre seus sócios: A Accademia dele Scienze dell´Istituto de Bolonha – sócio correspondente estrangeiro (1932-1943); Accademia dei Liceni Romana, indicado por Giorgio Del Vecchio (1955), na qual teve um relevante reconhecimento; e Accademia delle Scienze de Turim (1956), a qual integrou até o ano de sua morte (1973). 

1.6. A correspondência entre Kelsen e Giorgio Del Vecchio

Após encontro de Giorgio Del Vecchio com Hans Kelsen em 1922, teve início entre os dois uma harmoniosa correspondência científica que durou até 1965, na qual se dialogou sobre artigos novos e escritos publicados. A correspondência se tornou mais frequente a partir de 1933, após o afastamento de Kelsen da Universidade de Colonia, com o advento do nacional-socialismo. O contato entre ambos passou a ser mais vagaroso pela distância, pelos problemas pessoais de Del Vecchio e sua posição fascista e pelo fato da docência de Kelsen se voltar cada vez mais para o Direito Internacional.  

1.7. Renato Treves, pioneiro da Doutrina Pura do Direito na Itália

Por meio de Giorgio Del Vecchio, Renato Treves conheceu Hans Kelsen no plano intelectual e pessoal. Treves estava preparando o volume sobre fundamentos filosóficos do pensamento kelseniano, publicado em 1934 com o título “Il diritto como relazione. Saggio critico sil neokantismo comtemponâneo”.

Kelsen, em decorrência da tomada do poder nacional-socialista, difundiu entre seus correspondentes ampla síntese da Teoria Pura do Direito, cuja tradução Del Vecchio confiou a Treves. Como sociólogo do direito, Treves sublinhou várias vezes que a doutrina de Kelsen, esta tão rigorosa ao delimitar de maneira individualizada o campo da sociologia do direito com as outras disciplinas. 

1.8. Norberto Bobbio e o pensamento de Kelsen

Bobbio considerava Kelsen e Hobbes “pensadores que assinalaram especialmente o seu percurso de estudo”. Entre Kelsen e Bobbio houve apenas um contato pessoal em Paris (1957), por conta de um evento acadêmico sobre direito natural. Após Bobbio deixar de lado os estudos sobre fenomenologia, a conversão ao kelsenismo tomou parte de sua vida, sendo defensor da Teoria Pura do Direito. O interesse de Bobbio por Kelsen era latente: “devo a Kelsen ter tido acesso sem esforço a um sistema completo de conceitos-chave para a compreensão realista (não ideologizada) do direito, distinto da sua base social e valores que por vez por outra o inspiraram” (p.45). 

1.9. Hans Kelsen, de Colônia a Genebra 

Antes de decidir-se por Colonia, Kelsen pensara para a Suíça, com o objetivo de lecionar em alemão na Universidade de Zurique. Recusou proposta para lecionar em Londres ou EUA pela dificuldade em ensinar em língua estrangeira. Ao abandonar a Alemanha nacional-socialista, Kelsen inicia suas aulas em Genebra. Preferiu a língua francesa em detrimento ao inglês. No exílio, perde a aposentadoria Alemã e Austríaca.

Aceita lecionar na Universidade Alemã de Praga. Sempre fora atraído pela possibilidade de lecionar em língua alemã. Com a anexação alemã dos Sudetos, anexação da Áustria e a ocupação militar da Tchecoeslováquia, Kelsen decide abandonar a Europa, fixando-se nos Estados Unidos. Kelsen abandonou Genebra em 28 de maio de 1940, com 59 anos. Permaneceu três anos na Harvard Law School e em 1943 iniciou a docência na Universidade da Califórnia até sua morte em 19 de abril de 1973. 

1.10. Umberto Campagnolo, de Pádua a Genebra

Campagnolo deixa a Itália em 1933, diante da exigência de inscrição junto ao Partido Nacional Fascista. Exila-se em Genebra/Suíça, onde tem contato com Kelsen, o qual se interessa pela sua doutrina, estudando com ele por anos (1933-1940). Com seu interesse pelos estudos em Direito Internacional, Campagnolo solicita bolsa de estudos na Academia de Direito Internacional em Haia. A carta de apresentação foi preparada pelo próprio Hans Kelsen. 

1.11. O vastíssimo plano de pesquisa de Campagnolo

O início do trabalho de doutorado induziu Campagnolo a traçar um plano de pesquisas de vastíssimas proporções. a) os cinco capítulos inéditos sobre a noção do direito: Permaneceram inéditos. Se propôs definir a noção de direito, para, com esse fundamento, após, reexaminar a doutrina do direito internacional. Exatamente nessa definição de direito está seu contraste insanável com Hans Kelsen; b) o sexto capítulo se torna tese e livro: nas palavras de Campagnolo: “Sensibilizado pela profunda discordância existente entre várias doutrinas do direito internacional, e não satisfeito com a crítica da Reine Rechtslehre, tentei uma radical revisão dos conceitos fundamentais de direito, de Estado, de soberania, de relações internacionais, de direito internacional etc”; c) a crítica inédita à Sociedade das Nações: apresentou sua visão da Sociedade das Nações. 

1.12. Os apontamentos das aulas com Kelsen e outros manuscritos de Campagnolo

O interesse de Campagnolo por Kelsen traduz-se em manuscritos e apontamentos das aulas de Kelsen. Há apontamentos bem estruturados sobre o Sollen e Sein, guerra justa, sociedade e individuo etc. 

1.13. A tese doutorado

Mais do que a crítica às outras doutrinas, que ocupa boa parte da tese, interessa a conclusão que chega Campagnolo: se a primazia é do direito do Estado, e não do direito internacional, chegar-se-ia ao Estado mundial – fim ultimo da construção de Campagnolo – somente por uma via que Kelsen designa como “imperialista”: aquela que um Estado impõe sua vontade sobre a soberania dos outros. A esta via contrapõe-se aquela “federalista”, como Kelsen aceita – sendo a primazia do direito internacional – e assim vê a possibilidade de chegar-se a um Estado mundial por intermédio de federações sucessivas e não através da expansão da soberania de um único Estado à custa da soberania de outros. Nations et droit. 

II NORBERTO BOBBIO: UMBERTO CAMPAGNOLO, ALUNO E CRÍTICO DE KELSEN

Norberto Bobbio descreve a vida e obra de Campagnolo, expondo três teses de Kelsen – teoria da primazia do direito internacional, crítica do dogma da soberania e evolução do direito internacional na direção de um Estado Universal – as quais “convergem no ideal do pacifismo em detrimento do imperialismo” (p. 83). É justamente sobre essas teses que é construída a crítica áspera de Campagnolo.

Bobbio escreve que Campagnolo teceu críticas sobre a concepção realista do direito internacional. Para o autor então analisado, não obstante a pretensão de se construir uma nova forma de organização internacional, a Sociedade das Nações, deixando intacta a soberania dos Estados, base de suas potências e suas políticas de poder, é uma aliança entre Estados - no sentido tradicional da palavra. Uma política internacional que respeita a soberania dos estados é apenas a velha política de equilíbrio e suas tendências absolutistas.

Quando um Estado se alia a outros, está preocupado com sua segurança e não com a segurança coletiva. Bobbio explica que Campagnolo fez críticas contra a teoria pura do direito no tocante a “excessiva abstração do normativismo kelseniano”. Com a publicação de Nations et droit, tese de doutorado de Campagnolo, Kelsen faz uma análise minuciosa e uma crítica em memoriais com mais de 50 páginas, a qual é respondida ponto a ponto por Campagnolo com minúcia e audácia. Em sua dissertação, Campagnolo tem a pretensão de fundar uma doutrina alternativa sobre a natureza e função do direito internacional, desenvolvendo uma crítica radical, não apenas a doutrina de Kelsen, mas a todas que a precederam.

Bobbio narra que durante a fase da dissertação, Campagnolo valentemente publicou um artigo que enfrentava com rigor a doutrina pura do direito, atacando uma de suas teses centrais: a noção de pessoa jurídica. A crítica de Campagnolo se estabelece contra a “excessiva abstração do normativismo kelseniano” (p. 86), uma vez que por esta se estabelecia pessoa jurídica e pessoa física de modo a desconsiderar tanto o elemento concreto do fim (no caso da pessoa jurídica) e o indivíduo real (no caso da pessoa física), dado o fato que pela teoria kelseniana não haveria qualquer diferenciação entre pessoas física e jurídica, pois se tratariam meramente da “personificação das normas que regulam o comportamento de um determinado indivíduo” (p. 86).

Expõe ainda que o ponto fulcral do dissenso entre os autores (Kelsen e Bobbio) se daria no objeto da tese sob análise, a saber, o desenvolvimento do direito internacional, onde Campagnolo define o direito internacional “não como desenvolvimento das relações entre Estado, mas como desenvolvimento do próprio Estado” (p. 89). Uma das questões divergentes que esse dissenso resultava se dava no caminho a ser trilhado para uma meta última que igualmente era para ambas as propostas: o Estado universal. Enquanto para Kelsen isso seria alcançado pela transformação do direito internacional, para Campagnolo isso se daria pelo alargamento do Estado.

Bobbio ainda levanta um ponto interessante acerca do diálogo entre Kelsen e Campagnolo, expondo que o que ali havia era uma “contraposição entre dois sistemas de ideias”, onde cada qual reivindicava valor científico, “mas cada um deles parte de uma concepção diversa da ciência em geral e da ciência em particular, acusando o outro de ideologismo” (p. 92). 

III. CAMPAGNOLO: IDEIAS MESTRAS DE SUA TESE – (p. 101/110)

Trata-se de um texto preparado por Umberto Campagnolo para resumir sua tese com vistas à apresentação perante à Comissão Examinadora em 1937. Campagnolo aponta itens centrais de sua tese, dentre os quais é possível frisar as concepções propostas por Campagnolo em sua tese, da seguinte forma:  

  1. O problema objeto da tese: diz respeito ao desenvolvimento do direito internacional. A solução desse problema pressupõe outros 3 que derivam desse: a) o problema do direito; b) o problema do direito internacional e; c) o problema do desenvolvimento do direito internacional.
  2. O contexto de sua produção: Campagnolo chegou ao problema do desenvolvimento do direito internacional após ter estudado a norma jurídica em geral e o próprio direito internacional. Inicia a pesquisa com a questão da natureza do direito, pretendendo propor as noções de direito e de direito internacional (item 2,3, p.103).
  3. O direito positivo para o autor: trata-se das normas pelas quais o Estado garante o seu respeito.
  4. Campagnolo procura examinar oposições, dentre outras: entre direito e força; norma e sanção; direito natural e direito positivo; direito normativo e construtivo; direito e técnica.
  5. Tais oposições apresentam problema à filosofia realista: o problema da relação dos termos que as constituem com a validação a partir da realidade. A exemplo, a teoria pura do direito - por um lado, contém em si a ideia de que o direito nada tem a ver com força, e, por outro, contém a ideia que o direito é força.
  6. O autor apresenta uma concepção da realidade como relação transcendental entre o sujeito e o objeto. Esse idealismo identifica o direito com a força estatal.
  7. Campagnolo define direito como: a reação da sociedade política por excelência com relação à ação de um de seus membros; podendo esta reação, por causa de sua regularidade, ser conhecida antecipadamente em medida suficiente para o dirigir da ação.
  8. Nesse caminho, tanto o direito interno e o direito internacional não podem existir senão e através de sua relação com os indivíduos dotados de vontade e consciência;
  9. E, por isso, Campagnolo nega a existência de um direito internacional como direito ao qual os Estados estão sujeitos.
  10. Exclui, assim, a possibilidade de um direito para os estados porque não reconhece-os na natureza de sujeitos.
  11. Defende a ideia segundo a qual o Estado é o sistema jurídico em si mesmo na relação com os sujeitos.
  12. O direito internacional se define como a parte do direito do Estado que regula o comportamento dos cidadãos com relação aos estrangeiros.
  13. Para Campagnolo, o direito internacional deve garantir uma dimensão de maior liberdade do Estado.
  14. Nesse ponto de vista, o direito internacional compõem o Estado, de modo que os instrumentos normativos são considerados como programas/diretrizes (não vinculativas) às relações internacionais. Isto é, o Estado predomina em face ao direito internacional.
  15. O conceito de desenvolvimento do direito internacional: é visto como assimilação progressiva do estrangeiro ao cidadão. Ou seja, o desenvolvimento do direito internacional é considerado a partir das relações recíprocas entre os sujeitos.
  16. O Direito Internacional é a parte do direito do Estado que regula o comportamento dos cidadãos com relação aos estrangeiros.
  17. Outrossim, para Campagnolo, o imperialismo e o federalismo são dois momentos do processo dialético de toda unificação internacional. São, em si, decisões políticas, definidas para além de sua tese.
  18. A unificação internacional pode decorrer da construção, em alguma medida, de um Estado Universal, no qual deve desaparecer a distinção entre direito interno e direito internacional.
  19. O Estado, assim, é um sistema jurídico em si mesmo na sua relação com os sujeitos.
  20. Soberania, nessa sociedade universal, é definida como autoridade específica do Estado ou do direito para com os seus sujeitos. 

IV. DEBATE E DISSENSO ENTRE OS AUTORES (KELSEN E CAMPAGNOLO) 

1. A noção de direito

Kelsen destaca que “a ciência do direito é para Campagnolo a parte das ciências naturais dirigida à realidade dos eventos; assim, o direito [...], enquanto objeto da ciência do direito, é objeto de conhecimento científico-naturalista como qualquer outro fenômeno natural” (p. 113-114).

Conceito de direito:

Campagnolo: direito é uma norma e, enquanto tal, é uma reação da sociedade.              

Kelsen: “uma norma não pode ser uma reação e [...] uma reação não pode ser norma” (p; 115). O autor vai criticar a tese de Campagnolo pelo fato de nela se afirmar que a sociedade política se confundiria com o Estado, de modo que, a partir disso, a concepção tanto de Estado como de direito seria “dicotomizada”.

Conceito de norma jurídica:

Campagnolo: norma jurídica é a reação exercitada por uma sociedade política contra um de seus membros que cometeu uma ação contrária ao denominado fim social.       

Kelsen: “Uma norma, compreendida como regra do ser, pode apenas ser uma asserção sobre uma reação ou sobre a regularidade de uma reação, mas não a reação propriamente dita” (p. 115). 

2. O conceito de Estado

Campagnolo: Estado é sociedade política. Agrupamento de indivíduos. Justificando a existência do Estado, definindo-o como a organização que garante a harmonia dos interesses de todos os seus membros.

Kelsen: acusa Campagnolo que sua definição (“A sociedade que qualificamos como civil ou política por excelência é constituída por uma agrupamento de indivíduos, cada um dos quais atinge a sua finalidade que aparece como historicamente essencial somente se todos os outros atingem igual e reciprocamente as respectivas finalidades” - p. 118) é uma ideologia de Estado, uma vez que se trataria de uma tentativa de justificar a existência do Estado. Discorda da tese ao reconhecer a sociedade política como sendo o Estado e o Estado coincidindo com o direito, pois para Kelsen, em sua teoria pura do direito, “reconhece o Estado apenas como um ordenamento jurídico ao lado ou acima de outros ordenamentos jurídicos, deixando assim aberta a possibilidade de um direito internacional não coincidente com o direito estatal” (p. 121). Já Campagnolo, acaba por limitar o conceito de direito aquele do direito estatal. Faz valer o direito apenas como reação do Estado contra seus súditos. 

3. Conceito de soberania

Campagnolo: soberania do Estado como autoridade absoluta em relação aos seus sujeitos.

Kelsen: vê-se aqui uma ilogicidade na ideia de Campagnolo acerca da ideia de soberania. Não é possível se falar em soberania absoluta enquanto essa o é apenas para com relação a sujeitos determinados. Ao definir a soberania enquanto a experiência vivenciada por seus súditos, equivoca-se Campagnolo ao identificar como uma concepção de verdade aquela advinda do fator psíquico do ser humano. Kelsen ilustra esse tropeço de Campagnolo ao apresentar a ideia da realidade contida numa concepção destoante da verdade com o oásis que é observado por um caminhante desidratado no deserto. O equívoco denunciado por Kelsen se estabelece aqui sobre a dualidade instaurada por Campagnolo entre o ponto de vista do súdito e o ponto de vista do estudioso. A contradição aqui reside em se afirmar ao mesmo tempo que o Estado é soberano e único e que não é (visão do súdito e visão do estudioso). Outro exemplo dado por Kelsen é o do doente mental que acredita ser imperador da Europa, chegando ainda num terceiro - onde demonstra a incongruência de se pautar nessa ideia defendida por Campagnolo: “isso quer dizer [...] que um físico não poderia negar que um bastão na água se parte, porque não poderia negar que o indivíduo efetivamente recebe tal impressão dos seus sentidos” (p. 128).

Campagnolo: distinção entre “ponto de vista do estudioso” e “ponto de vista do súdito” – dualismo que a doutrina pura do direito reconhece entre realidade natural e ideologia social, ou seja, entre Estado como poder e Estado como direito. 

4. O conceito de direito internacional

Campagnolo: Direito internacional regula a conduta do cidadão com relação ao estrangeiro, sendo uma parte do direito estatal.

Kelsen; a tentativa de Campagnolo em fundamentar o direito internacional, conservando-o, no dogma da soberania é bastante contraditória. Se o direito internacional fizesse parte do ordenamento jurídico de cada Estado de maneira individual, tal só poderia ser regulado pela Constituição desse Estado. “Mas como pode estar em harmonia com a concepção de Campagnolo o fato de que o procedimento para produzir as normas consideradas de direito internacional [...] ocorra fora do âmbito de cada Estado, a partir do momento em que consiste na ação conjunta de dois ou mais Estados?” (p. 133) - a isso Campagnolo não responde. 

5. O conceito de desenvolvimento do direito internacional

Para Campagnolo, o direito coincide com o Estado e, dessa, forma o direito internacional é uma parte do Estado, sendo o desenvolvimento do direito internacional apenas no desenvolvimento do Estado.

Para Kelsen, o desenvolvimento do direito internacional, segundo sua própria natureza, tem como finalidade a constituição de um Estado universal. Abolição da diferença entre cidadão do Estado e os estrangeiros. A construção de um estado mundial pode ocorrer de duas maneiras: 1. um Estado estende sua força soberana sobre outros Estados (via do imperialismo) ou; 2. cada um dos Estados se unem voluntariamente ao outro, numa federação universal dos Estados, que gradualmente, poderá evoluir para um Confederação e, enfim, um Estado unitário (via do federalismo). A proposta de Campagnolo, tal como formulada, seria compatível apenas com a via imperialista, pois não aceita um direito internacional superior aos Estados.

Kelsen:Minha refutação de sua teoria [...] não quer absolutamente dizer que eu dela não aprecie altamente o valor científico. Ao contrário. Ela representa uma tentativa de inconsueto interesse, e notável pela profundidade de seus fundamentos filosóficos, de resolver uma série de problemas fundamentais da ciência jurídica, partindo de um ponto de vista original” (p. 136-137) - assim Kelsen propõe inclusive que a tese seja publicada e cobertos os custos para tanto. 

VII. Um projeto de pesquisa sobre a Sociedade das Nações

Umberto Campagnolo (p.201/209)

Este projeto de pesquisa já fora anunciado em 1938. O problema proposto visa investigar as concepções da Sociedade das Nações, ou seja, o conjunto das manifestações internacionais. Em suma, essas concepções parecem ser o resultado de um compromisso fundado nas seguintes ideias: 

  1. A concepção utópica: vê a instituição genebrina um organismo dos Estados, dotado de uma personalidade análoga àquela do Estado ou de uma sociedade interna ao Estado. É a Carta instituída como suprema lei internacional que os Estados estão moral e juridicamente obrigados a respeitar;
  2. A concepção realista: a Sociedade das Nações, em outro ponto, é o instrumento de uma política que tenta reagrupar o maior número possível de forças internacionais em torno de certos interesses particulares.

Para o autor, a sociedade das nações tem a finalidade de ajudar as nações a encontrar os meios necessários para vencer sua aflição e seu medo, adaptando as concepções de vida internacional.  É um método pelo qual se propõe determinar regras de uma política internacional com base nas necessidades do mundo globalizado.

A sociedade das nações teria caráter universal, com 3 funções principais: 1. um organismo político composto de homens de estado responsáveis, ou seja, pelos representantes dos governos dos vários países; 2. um organismo jurídico, formando um um tribunal de juristas; e 3. um organismo científico, como uma espécie de centros de estudos. Assim, para esse novo projeto de pesquisa proposto por Umberto Campagnolo, há um aprofundamento na sua investigação científica a partir da proposição da reformulação da concepção da “Sociedade de Nações”. 

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

KELSEN, Hans. CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. Org. Mario G. Losano. Trad.: Marcela Varejão. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1331375

 

[1] Síntese de Seminário apresentado pelos autores na disciplina “Jurisdição Internacional e Superioridade Normativa na Contemporaneidade”, do professor Alexandre Coutinho Pagliarini, no PPGD - UNINTER.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Parque das Nações // Foto de: Jessica Fontes // Sem alterações

Disponível em: https://flic.kr/p/9fUnoT

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