No final do ano de 2016, foi editada a Medida Provisória nº 759, com a finalidade de dispor acerca de regras sobre regularização fundiária urbana e rural. Dentre as inovações introduzidas, uma delas era a inclusão no Código Civil de um novo instituto, um direito real denominado de direito de laje.
A norma em questão vem ao encontro de uma realidade de diversas cidades brasileiras, que são as construções sobrepostas no mesmo imóvel, tidas pelos moradores como unidades autônomas, mas que não constituem condomínio. A própria exposição de motivos da MP já fazia menção nesse sentido.
Se for considerado o último censo do IBGE, apenas na comunidade da Rocinha, no Município do Rio de Janeiro, há mais de 25.000 domicílios, que abrigam quase 70.000 pessoas. Informações de associações de moradores dão conta de que esse número, na verdade, é algo em torno de 150.000 pessoas.
Mas não apenas para esses casos. A norma em questão possibilitaria que em qualquer local do país o proprietário possa criar uma unidade autônoma para um filho ou outro familiar, por exemplo.
A Medida Provisória foi convertida na lei nº 13.465/17, com a inclusão em definitivo de 5 (cinco) novos artigos no Código Civil.
Em linhas gerais, a partir de 12 de julho de 2017, data de vigência da lei nº 13.465/17, o proprietário de um bem imóvel poderá “[…] ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo".
Inexiste instituição de condomínio, muito menos há transmissão da propriedade do imóvel[1]. Segundo Código Civil, na redação que recebeu da mencionada norma, a instituição do direito real de laje não atribui fração ideal do terreno ao titular da laje. Há, contudo, para o titular do direito, a prerrogativa de usar, gozar e dispor, recebendo, inclusive, matrícula própria no Registro de Imóveis. A norma previu, inclusive, que o titular do direito real de laje poderá ceder a superfície de sua construção para a instituição de novo direito real, desde que haja autorização do proprietário da construção-base e dos demais titulares de direito real similar.
Esse novo instituto já fez surgir dúvidas no âmbito do Direito Civil, por conta das possíveis inter-relações que podem ser formadas e os desdobramentos no plano obrigacional, bem como no âmbito do Direito Administrativo ou Urbanístico, pois o direito de laje não significa o afastamento das regras de postura ou daquelas que condicionam o direito de construir.
Mas a discussão aqui proposta refere-se ao tratamento tributário desse instituto, exatamente por conta de que o Código Civil, no parágrafo segundo do art. 1.510-A, passou a dispor que “[…] O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e tributos que incidirem sobre a sua unidade".
Num primeiro enfoque, é relevante para o Direito Tributário o fato de que a instituição do direito de laje significará a transmissão de um direito real, por ato inter vivos, de modo que, se oneroso o negócio jurídico em questão, haverá incidência do Imposto sobre a Transmissão de Bens Inter Vivos (ITBI), por haver subsunção à hipótese delineada no art. 156, inciso II do CF/88. No entanto, ocorrendo a transmissão a título gratuito (sucessão hereditária ou doação), incidirá o Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD), já que o fato gerador, por força do previsto no art. 155, inciso I da CF/88, abrange a transmissão não onerosa de quaisquer bens ou direitos.
Mas, se a tributação pela transmissão do direito não parece gerar muita controvérsia, talvez não se possa dizer o mesmo em relação à tributação do direito em si.
O ordenamento nacional considera que a existência de um direito de propriedade é relevante para fins tributários, pois traduz capacidade para contribuir. A tributação alcança a propriedade imobiliária como um todo e, no caso dos bens móveis, apenas os veículos automotores.
Em se tratando dos imóveis, há incidência do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) ou do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), a depender da localização do bem, se dentro zona urbana (o que atrai a incidência do IPTU) ou fora dela (hipótese de cobrança do ITR), ou ainda, para os imóveis sujeitos ao IPTU, da verificação de alguma das hipóteses previstas no art. 15 do Decreto-Lei nº 57/66[2].
Ambos os impostos tem como núcleo de suas respectivas hipóteses de incidência a propriedade, posse ou domínio útil. Tributa-se não a existência do próprio bem, mas sim a verificação de algum desses direitos.
Partindo dessa premissa e sem considerar possível discussão acerca da recepção da tributação da posse ou domínio útil pela Constituição vigente, falta amparo legal para a exigência de IPTU ou ITR em relação ao direito de laje. Isso porque, tal direito real, por certo não é, muito menos pode ser equiparado, à propriedade ou ao domínio útil. São direitos distintos. A própria redação do art. 1.225 do Código Civil assim evidencia.
Sequer se poderia cogitar haver co-propriedade, pois o legislador explicitamente excluiu tal possibilidade, pois como consta no parágrafo quarto do art. 1.510-A, “[…] A instituição do direito real de laje não implica a atribuição de fração ideal de terreno ao titular da laje ou a participação proporcional em áreas já edificadas”.
Da mesma forma, também se revela inviável a cobrança de IPTU ou ITR em razão da posse, porque se estaria desconsiderando o próprio instituto recém criado.
É certo que o titular do direito de laje possui posse, mas como uma condição fática decorrente de um vínculo jurídico que é o direito real. Assim, não haveria tributação.
Afora essas questões, há uma outra, específica para os imóveis sujeitos ao IPTU.
Uma das diferenças entre o IPTU e o ITR é o tipo de propriedade que é alcançada pela tributação. Para o ITR importa unicamente a propriedade predial, ao passo que o IPTU alcança igualmente os direitos sobre a propriedade territorial, mas também sobre a predial.
Dessa forma, se houver ampliação da área construída, e quer parecer que o instituto só faz sentido para esse caso, haverá IPTU em relação a esse direito sobre o prédio?
Esse questionamento importa até mesmo para dar um sentido ao parágrafo segundo do art. 1.510-A, que prevê a responsabilidade do titular do direito pelos tributos que incidirem sobre a sua unidade.
O problema é que a ampliação da área construída, ao que parece, não aumentará a dimensão econômica do direito de propriedade daquele que possui a denominada construção-base, pois, na forma do art. 1.510-B[3], o titular do direito de laje poderá edificar com seus próprios recursos e, inclusive, alienar posteriormente sua unidade, conforme possibilita o art. 1.510-D[4]. O proprietário da construção-base não será dono da unidade autônoma, conclusão decorrente da regra prevista no próprio Código Civil que prevê direito de preferência deste em caso de eventual alienação.
Por outro lado, não parece ser viável impor ao titular do direito de laje um imposto unicamente pela propriedade predial, pois a Constituição, ao elencar os fatos a serem tributados não previu, como alternativa, a tributação da propriedade predial ou da territorial.
Por exclusão, não sendo o parágrafo segundo do art. 1.510-D uma norma de incidência, só poderia cogitar estar no campo da responsabilidade tributária, o que também não se mostra imune a questionamento.
A responsabilidade tributária consiste na imposição, pela lei, do dever de recolher determinado tributo sem que a pessoa física ou jurídica tenha praticado o respectivo fato gerador. Recolhe-se, portanto, tributo alheio.
No caso do direito de laje, em relação à unidade autônoma, afora as taxas (de serviço ou de poder de polícia) não existiria tributo específico. Logo, não haveria como impor responsabilidade tributária a terceiro.
Admitir que o parágrafo segundo do art. 1.510-D do Código Civil refere-se a uma obrigação entre proprietário e titular do direito real de laje também pouco resolve, pois só faria sentido se, por exemplo, o Imposto Predial sofresse aumento de seu valor por conta da nova construção, o que, a nosso ver, não se mostra possível, já que as construções não pertencerão ao proprietário do imóvel.
Essas breves ponderações indicam que o novel instituto surgiu trazendo consigo um possível conjunto de controvérsias, o que não se mostra salutar para nenhuma das partes envolvidas (titular do direito de laje, proprietário ou Poder Público), em especial se for considerado que a intenção do legislador, ao disciplinar relações informais que surgiram ao longo do tempo, foi exatamente de conferir segurança jurídica.
Notas e Referências:
[1] Art. 1.510-A, §4º, CC.
[2] Art 15. O disposto no art. 32 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, não abrange o imóvel de que, comprovadamente, seja utilizado em exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial, incidindo assim, sôbre o mesmo, o ITR e demais tributos com o mesmo cobrados.
[3] Art. 1.510-B. É expressamente vedado ao titular da laje prejudicar com obras novas ou com falta de reparação a segurança, a linha arquitetônica ou o arranjo estético do edifício, observadas as posturas previstas em legislação local.
[4] Art. 1.510-D. Em caso de alienação de qualquer das unidades sobrepostas, terão direito de preferência, em igualdade de condições com terceiros, os titulares da construção-base e da laje, nessa ordem, que serão cientificados por escrito para que se manifestem no prazo de trinta dias, salvo se o contrato dispuser de modo diverso. […]
Fábio Borges é Advogado. Professor de Direito Administrativo e de Direito Tributário da Unisul. Associado da ASSET/SC..
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