DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: UMA BREVE ANÁLISE ACERCA DO DIREITO CONSTITUCIONAL À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

27/09/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas a sociedade brasileira vem experimentando uma mudança no tratamento da criança e do adolescente, compreendendo sua condição de sujeito de direitos, sobretudo diante da influência de diversos diplomas como Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959.

A Constituição Federal de 1988 forneceu a base necessária para o direito da criança e do adolescente, mormente o direito à convivência familiar. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente, somado às outras leis, tratou de regulamentar tal direito. Contudo, a correta interpretação dos institutos ainda se mostra um desafio na sociedade brasileira, razão pela qual se faz necessário seu estudo.

Deste modo, presente trabalho acadêmico objetiva contribuir com as discussões existentes acerca do direito à convivência familiar, rompendo com alguns estigmas existentes e com a visão adultocêntrica, demonstrando a importância desse direito para as crianças e adolescentes.

No estudo será utilizada uma abordagem dedutiva, por meio de um procedimento histórico e comparativo, bem como adotada a técnica de pesquisa documental indireta, através da pesquisa bibliográfica e documental.

 

2 DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR: ASPECTOS HISTÓRICOS E JURÍDICOS

A forma como a criança e o adolescente são percebidos no meio social sofreu profundas modificações. De uma posição de irregularidade, esses sujeitos passaram a integrar papel central no ordenamento, diante da sua singular condição de desenvolvimento. Ao abordar os direitos da criança e do adolescente, Zapater (2019, p. 71) produz a seguinte elucidação:

[...] a modificação na maneira de se pensar crianças e adolescentes irá gerar novas premissas, segundo as quais as relações sociais integradas por estes sujeitos estarão pautadas a partir de então, o que reverberará nas normas jurídicas produzidas neste contexto. Assim se desenvolve o sistema específico do Direito da Criança e do Adolescente, orientado por princípios jurídicos próprios.

Para introduz as discussões concernentes à temática, necessário citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, que foram norteadoras desse processo de construção da criança e adolescente como sujeitos de direito (PIEROZAN; VERONESE, 2019).

Somado a essas declarações, é possível indicar também a Convenção da Criança, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing de 1980), a Declaração Mundial Sobre a Sobrevivência, a Proteção e o Desenvolvimento da Criança nos Anos 90 (1990) e os Princípios das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Princípios Orientadores de Riad de 1990) (ZAPATER, 2019).

Embora Pierozan e Veronese (2019) apontem que no ano de 1860 as crianças começaram a ser objeto da legislação em plano nacional, uma nova perspectiva acerca dos direitos da criança e do adolescente começou a ser sentida apenas com a elaboração do texto constitucional em 1988. Segundo Zapater (2019, p. 71): “No Brasil, os debates a respeito da Convenção sobre os Direitos da Criança influenciaram a elaboração dos dispositivos referentes às crianças e adolescentes: os arts. 227 a 229 da Constituição Federal simbolizariam a ruptura jurídica com a doutrina da ‘situação irregular’ do Código de Menores de 1979”.

Essa nova visão de tutela dos sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento é denominada Doutrina da Proteção Integral, que para Pierozan e Veronese (2019, p. 30): “[...] compreende a criança e o adolescente (e não mais o ‘menor’) como sujeitos de direitos, seres em processo de desenvolvimento, que merecem proteção especial até o dia em que completam 18 (dezoito) anos”.

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) são marcos dessa nova doutrina. Aliás, dentre o extenso arcabouço principiológico abarcado pela legislação, necessário ressaltar três princípios balizadores da tutela da criança e do adolescente: a prioridade absoluta, o melhor interesse e a proteção integral.

A prioridade absoluta pode ser entendida como um supra princípio na tutela da criança e do adolescente, sua menção é expressa tanto no texto constitucional (art. 227, da Constituição Federal de 1988), como no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 4º). Aliás, nas palavras de Veronese e Ribeiro (2021, p. 44) tais disposições “[...] foram reforçadas por outros dispositivos e, nos anos subsequentes, foram sendo aperfeiçoadas para deixar cada vez mais clara e óbvia a amplitude do princípio constitucional da prioridade absoluta”.

O superior ou melhor interesse também consta no caput, do art. 227, da Constituição Federal. Para Gama (2008, p. 80) este princípio: “Não se trata de mera recomendação ética, mas diretriz determinante nas relações mantidas entre as crianças e os adolescentes com seus pais, parentes, a sociedade civil e o Estado”.

A proteção integral possui previsão já no art. 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente e segundo Chaves (1994, p. 45) tal princípio “[...] amparo completo, não só da criança e do adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também sua salvaguarda desde o momento da concepção [...]”.

Segundo Pierozan e Veronese (2019) dentre os direitos conquistados pelas crianças e adolescentes, a convivência familiar e comunitária deve ser compreendida como um daqueles que possui maior relevância.

Todavia, compreender a convivência familiar, exige a correta interpretação da ideia de família, não mais sintetizado em ideais ultrapassados e restritivos, sendo para Veronese e Ribeiro (2021, p. 107) um conceito “[...] em constante transformação e evolução […]”. Inclusive, sua composição pressupõe-se “[…] irrelevante quando a mesma consegue propiciar um ambiente saudável aos seus membros crianças e adolescentes [...]” (PIEROZAN; VERONESE, 2019, p. 36).

Destarte, nas palavras dos autores Rossato, Lépore e Cunha (2020, p. 78): “[...] o Estatuto adota classificação trinária dos grupos familiares: família natural, família extensa e família substituta, ordem essa que guarda relação direta com o caráter de excepcionalidade”. O conceito desses modelos é trazido no Estatuto da Criança e do Adolescente respectivamente no art. 25, caput e § único e art. 28. Deste modo, quando abordada a convivência familiar, deve-se despir-se da ideia de filhos e genitores consanguíneos, apenas.

A Declaração Universal de Direitos da Criança de 1959 já dispunha do direito à convivência familiar, sendo inserido no ordenamento pátrio através da Carta Cidadã.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988, online). – sem grifos no original

Tal redação é extraída da Carta Magna e reproduzida quase que fielmente no Estatuto da Criança e do Adolescente face a imprescindibilidade da verificação das instituições de observarem e preservarem os direitos da criança e do adolescente. Aliás, conforme pontua Zapater (2019, p. 61/62): “A condição peculiar de desenvolvimento das crianças e adolescentes gera direitos específicos para esse grupo, bem como os deveres jurídicos específicos correspondentes para os adultos”.

Ora, “[...] a criança não deve ser separada de sua família, mesmo que a família seja vulnerável, mesmo que a criança tenha cometido atos infracionais, o melhor para seu desenvolvimento é que permaneça junto de sua família, caso a convivência familiar seja saudável” (PIEROZAN; VERONESE, 2019, p. 32).

[...] a retirada da pessoa em desenvolvimento do seio de sua família natural, quando o ambiente não esteja sendo propício ao seu crescimento físico, intelectual e moral, deve ser medida excepcional e temporária, que será revogada se, e assim que, a família natural for reestruturada e, portanto, estiver apta a receber novamente a criança ou o adolescente. (ROSSATO, LÉPORE, CUNHA, 2020, p. 77).

O Capítulo III do Estatuto da Criança e do Adolescente se presta a regulamentar e, por que não, oferecer meios de efetivação e tutela desse direito que muitas vezes é mal interpretado socialmente. Resta clara a preocupação do legislador em abarcá-lo, dada a necessidade desses sujeitos ainda em desenvolvimento de conviverem com seu núcleo familiar.

A convivência familiar deve ser compreendida como um direito cujos destinatários são precipuamente as crianças e a adolescentes, não sendo cabível a interpretação adultocêntrica de que é um direito dos adultos para com os infantes e adolescentes (PIEROZAN; VERONESE, 2019).

Outro ponto relevante é a desvinculação da ideia de condição financeira/material e direito à convivência familiar, entendendo que deverá ser verificado se as famílias “[…] efetivamente oferecerem risco à integridade física e/ou psíquica da criança ou adolescente, que não possa ser dirimido pela inclusão da família em programas de apoio social” (ZAPATER, 2019, p.108).

O Estatuto da Criança e do Adolescente abarca esse direito das mais diversas formas, resguardando-o nos casos de pais presos (art. 19, §4º), de internação do adolescente pelo cometimento de ato infracional (art. 124, inc. VI e VII), por exemplo.

Destarte, a Lei Nacional da Adoção (Lei n. 12.010/2009) foi um marco no estudo do tema para os autores Rossato, Lépore e Cunha (2020). A tutela à convivência familiar foi privilegiada de diversas formas com as alterações trazidas pela referida lei na Lei n. 8.069/1990.

Outrossim, a forma com que a legislação aborda ao tema resguarda não apenas a convivência familiar como direito desses sujeitos, mas também a convivência comunitária. Inclusive, Maciel (2021, p. 78) destaca que “[...] somente com a presença de ambos haverá um bom e saudável desenvolvimento do ser humano em processo de formação”.

Os laços familiares têm o condão de manter crianças e adolescentes amparados emocionalmente, para que possam livre e felizmente trilhar o caminho da estruturação de sua personalidade. A comunidade, por sua vez, propiciará à pessoa em desenvolvimento envolver-se com os valores sociais e políticos que irão reger a sua vida cidadã, que se inicia, formalmente, aos 16 anos, quando já poderá exercer o direito de sufrágio por meio do voto direto. (ROSSATO, LÉPORE, CUNHA, 2020, p. 76).

Infelizmente, conforme ressaltam Pierozan e Veronese (2019, p. 38), “[…] não há fórmula mágica que obrigue um pai a amar seus filhos, mas há mecanismos jurídicos que obrigam esse pai a ser presente na vida de seu filho e ajudá-lo como puder”. O Estado brasileiro, através dos mecanismos citados, buscou tutelar e efetivar de forma ampla os interesses daqueles que muitas vezes não possuem voz social, mas que precisam e devem ser ouvidos: as crianças e os adolescentes.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A compreensão da criança e do adolescente como sujeitos de direitos é ainda muito recente na sociedade, especialmente no Brasil. A Constituição Federal de 1988 deve ser entendida como um dos principais marcos nesse processo em plano nacional, eis que conferiu os direitos a esse grupo de forma expressa, incluindo o direito à convivência familiar.

A propósito, o modelo adotado no país tratou de estabelecer uma carga principiológica para a tutela desses seres em condição peculiar de desenvolvimento. Somado a isso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, elaborado logo em seguida e irradiado pelos ideais constitucionais, tratou de regulamentar a convivência familiar dada a sua importância social.

A importância da manutenção e o estímulo à convivência familiar é indispensável para aqueles que ainda estão em processo de desenvolvimento, tanto que o estatuto entende que qualquer medida contrária a isso deve ser admitida em caráter excepcional e temporário, quando lhe acarretem prejuízos e prejudiquem o seu saudável desenvolvimento.

Apesar da legislação pátria tutelar a convivência familiar aos infantes e adolescentes, a interpretação desse direito ainda é vista em muitos casos sob o ideal adultocêntrico, o que não pode ser admitido. Os desafios envolvendo essa temática ainda são grandes, porém o compromisso constitucional refletido no progresso legislativo consegue cada vez mais garantir meios para que as crianças e adolescentes tenham assegurado de forma efetiva esse direito que é fundamental.

 

Notas e Referências 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 08 mar. 2022.

CHAVES, A. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. São Paulo: LTr, 1994.

GAMA, G. C. N. da. Princípios constitucionais do direito de família: guarda compartilhada à luz da lei nº 11.698/08: família, criança, adolescente e idoso. São Paulo: Atlas, 2008.

MACIEL, K. R. L. A. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, K. R. L. A., Coord. Curso de Direito da Criança e do Adolescente. 13. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021. E-Book. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786555592726/epubcfi/6/2[%3Bvnd.vst.idref%3Dcapa2-0.xhtml]!/4/2/2%4026:1>. Acesso em: 10 mar. 2022.

PIEROZAN, J. H.; VERONESE, J. R. P. Apadrinhamento Afetivo: o cenário de Santa Catarina. Porto Alegre: Editora Fi, 2019. E-Book. Disponível em: <https://www.editorafi.org/_files/ugd/48d206_a3a40f02f22d43af8a434e9e99a7655a.pdf>. Acesso em: 19 mar. 2022.

ROSSATO, L. A.; LÉPORE, P. E.; CUNHA, R. S. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei nº 8.069/90 – comentado artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2020. E-Book. Disponível em: < https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786555590814/epubcfi/6/22[%3Bvnd.vst.idref%3Dmiolo8.xhtml]!/4/2/262/3:132[s%20a%2Cs%20r]>. Acesso em: 10 mar. 2022.

VERONESE, J. R. P.; RIBEIRO, J. Princípios do Direito da Criança e do Adolescente e Guarda Compartilhada: estudos de casos com a Família ampliada ou extensa. Porto Alegre: Editora Fi, 2021. E-Book. Disponível em: < https://drive.google.com/file/d/1Gdo87-gObgataFrzrXkJzFYSiPEJjMf0/view>. Acesso em: 19 mar. 2022.

ZAPATER, M. Direito da criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. E-Book. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9788553613106>. Acesso em: 11 mar. 2022.

 

 

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