Introdução[1]
As Cortes Constitucionais, cada vez mais, têm recorrido ao uso voluntário do direito estrangeiro. Seja como um guia para a prestação jurisdicional ao decidir casos difíceis, seja como forma de argumentação ao fundamentar as decisões, fato é que se tem observado que essa forma de argumentação, que visa fomentar o conteúdo decisório e dar um resguardo maior para a tese jurídica que em dada ocasião busca se defender mediante a decisão, tem crescido cada vez mais, resultando num boom de decisões que se utilizam do direito alienígena em todas as suas possíveis formas: comparando-se legislações, invocando precedentes ou determinados julgamentos de outros países e citando autores e teses estrangeiras.
O que os juízes pouco se atentam, no momento de fazer uso do direito estrangeiro, é observar o contexto social, histórico e político de onde provém a decisão, ensejando a partir de tal inobservância alguns certos problemas que não recebem a atenção necessária, pelo menos naquele primeiro momento em que a decisão é dada, de modo que esses problemas acabam passando despercebidos, quando não simplesmente ignorados.
Diante de tal constatação, tem-se a problemática que ora se apresenta. É válido o uso do direito estrangeiro como argumento utilizado no fundamento de decisões jurídicas pátrias? Sendo válido, há algum método a ser observado no seu uso? Existem critérios que delimitem de que modo deve ocorrer o recurso ao direito de outros países, evitando-se assim o seu uso desmedido e descuidado? É possível estabelecer limites objetivos acerca do direito comparado mediante fatores metodológicos?
A adoção de alguns critérios básicos, ao invocar o direito estrangeiro, devem ser observados. O presente trabalho busca apontar alguns critérios que podem ser utilizados no estudo do direito constitucional comparado.
A Interpretação Constitucional Comparativa
A importância do Direito Comparado se dá especialmente através de sua vocação para superar pontos de vista internos na análise de questões apresentadas por ordenamentos jurídicos ao lidar com problemas relevantes. Por vezes é apressadamente compreendido como mera aproximação fática de casos, normas ou soluções entre ordenamentos, cujos resultados são, muito mais, um recurso a ilustrar, determinado posicionamento do que a efetivamente fundamentar uma argumentação com base científico-metodológica.
As cortes internacionais e nacionais têm se engajado em uma análise comparativa com o propósito de saber como outras cortes de outros Estados têm interpretado as normas jurídicas, especialmente aquelas relacionadas a direitos fundamentais. O Direito Constitucional Comparado tem por objeto, não só uma constituição, mas uma pluralidade de constituições, resultando do cotejo de normas constitucionais de diferentes Estados, mediante critérios variáveis.
Um dos critérios consiste em confrontar no tempo as constituições de um mesmo Estado, observando em épocas distintas as semelhanças e discrepâncias. Outro critério cabível é da comparação do Direito no espaço, analisando constituições de vários Estados vinculados, de preferência, a áreas geográficas contíguas. A mesma forma de Estado também pode servir de critério comparativo. Para os fins deste trabalho, o critério que mais interessa é o critério espacial.
As Cortes domésticas, ao consultarem a jurisprudência ou normas estrangeiras ou internacionais, podem, algumas vezes, inegavelmente, aprender com uma determinada corte ou sistema jurídico ou mesmo com algumas cortes ou sistemas jurídicos diversos. Inclusive, recomenda-se que as Cortes Constitucionais ou Supremas assim procedam ao analisarem casos controversos de direitos fundamentais, senão como última palavra, ao menos como um ponto de partida.
A ideia de leis parcialmente comuns a toda espécie humana, traz desdobramentos em dois argumentos normativos para a invocação judicial voluntária do direito estrangeiro. O primeiro argumento para a defesa do uso do direito constitucional comparado é de natureza pragmática, e sustenta que ao recorrermos a fontes externas ao nosso próprio sistema, podemos aprender com outras jurisdições nas quais tribunais já resolveram casos semelhantes. O segundo argumento tem um núcleo principiológico, que não se baseia no caráter utilitário dessas consultas, mas no princípio treat like cases alike, segundo o qual se deve julgar casos iguais da mesma forma.
Com a prática de invocar normas constitucionais estrangeiras e de fontes internacionais adquire-se uma perspectiva mais ampla das questões discutidas, o que permite o diagnóstico de possíveis fragilidades e inconsistências dos pontos de vista tradicionalmente aplicados no plano nacional. O recurso judicial ao direito estrangeiro e internacional é uma prática valiosa para o preenchimento de lacunas, resolução de ambiguidades, para a modernização do sistema jurídico doméstico, especialmente nos países onde há morosidade legislativa. Sustenta-se, ainda, que essa prática reduz os riscos de decisões erradas.
O direito é um conjunto de diretrizes que os tribunais provavelmente considerarão em suas decisões judiciais, as proposições da ciência do direito, constituem, previsões sobre quais diretivas serão aplicadas pelos juízes. Para formular tais previsões, os juristas podem recorrer às contribuições de outras áreas do saber (como a sociologia e a psicologia), que podem fornecer dados sobre o contexto social e econômico que cerca os juízes, permitindo maior certeza nos juízos de suas decisões.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal tem comumente utilizado fontes estrangeiras, por vezes, de modo acrítico. Nos últimos anos, a Corte decidiu casos moralmente complexos, como o do direito à interrupção da gestação de fetos anencéfalos. Em todos os casos houve invocação de decisões e legislações estrangeiras e internacionais, mas sem adotar qualquer metodologia. Quais seriam os possíveis fatores que resultam nessa seletividade no uso do direito estrangeiro pelas Cortes? A formação acadêmica de cada julgador, a rede de contatos de cada um desses, as fontes que costumam ler ou mais apreciam estudar, os países para os quais costumam viajar, a facilidade de acesso ao conteúdo do direito de alguns poucos países, a formação acadêmica dos assessores dos julgadores, enfim, diversos podem ser os fatores apontados como responsáveis pela escolha parcial e sem critérios específicos quando do direito comparado. Como se observa, a subjetividade é um dos motes, se não o principal deles, que na maioria das vezes ampara o uso do direito comparado pelas Cortes.
Um empréstimo indiscriminado do direito estrangeiro sem um olhar mais atento às características sociais e culturais que deram origem a tal autoridade pode levar a resultados perigosos. O valor da análise comparativa está condicionado também à existência de certas características comuns fundamentais entre as instituições dos países que estão sendo comparados. “Dependendo da área e do caso analisado, é mais provável que a invocação seja apropriada quando sistemas jurídicos comparados compartilham aspectos socioculturais, econômicos ou políticos.”
Deste modo, aponta-se que mesmo considerando todo o interesse que cresce cada vez mais para com relação ao direito comparado, tem-se que a metodologia pouco (ou nada) mudou, permanecendo as bases epistemológicas inalteradas, acarretando assim num avanço temático pouco expressivo.
Sobre tal ponto, Ran Hirschl destaca que a atenção no campo do direito comparado deve se voltar para as questões principiológicas e métodos rigorosos que sirvam como sustentáculo para esse tipo de abordagem. A ‘migração de ideias constitucionais’, conforme já apontado, é um fenômeno positivo que dá ensejo a reivindicações devidas e justas, possibilitando avanços concretos na jurisdição constitucional – desde que sejam devidamente observados os critérios de base.
É justamente na questão do método, ou na falta desse, que a maior parte da problemática exposta reside. Não havendo um basilar concreto, que seja forte o suficiente para sustentar tudo aquilo que resultará da empreitada do direito comparado, a entusiasta abordagem ruirá, tal como se vê em diversos exemplos concretos presentes em decisórios das Cortes Judiciais. A atenção, portanto, deve se voltar para as matrizes principiológicas, erigindo já na base determinados critérios que orientem o uso do direito comparado, a fim de que o recurso a tal fenômeno seja procedido de maneira zelosa e escorreita, evitando-se incongruências. Tem-se assim que se trata de uma questão de método.
Assim sendo, tem-se que já é tempo de superar aquelas restrições tradicionais no trato do tema, passando deste modo a existir uma contribuição efetiva com o estabelecimento de um método firme e coerente que resguardem aspectos principiológicos que devem nortear o estudo e uso do direito comparado.
Considerações finais
Conforme pode ser observado nas singelas linhas do presente trabalho, o método é algo que falta nas atuais abordagens do direito comparado. Resta silente uma necessária coerência metodológica nos estudos e uso da temática aqui tratada. Hirschl defende que a comparação é uma ferramenta fundamental de análise acadêmica. E aqui também se diz que o é para a jurisdição. Com o estudo do direito comparado é que são incrementadas as possibilidades de se estabelecer um discurso jurisdicional conglobante. Daí a necessidade da observância de um “kit básico do comparatista”, o qual deve conter determinadas ferramentas indispensáveis para o trato da temática: conhecimento detalhado dos sistemas jurídicos estrangeiros; competências jurídicas e linguísticas pertinentes; capacidade de se manter constantemente atualizado e informado acerca dos desenvolvimentos constitucionais no exterior; familiaridade com as metodologias comparativas básicas; sensibilidade cultural; disponibilidade de passar longos períodos de tempo fazendo trabalho de campo, além da vontade para tanto.
Desta forma, parte significativa do problema, conforme menciona Hirschl, é reflexo de uma matriz metodológica desfocada do direito comparado. Muito do uso do direito comparado acaba pecando pela aderência a uma abordagem mais conveniente (ou seja, mais fácil), negligenciando (ou desconhecendo) assim os princípios metodológicos basilares de uma comparação controlada e do formato de pesquisa criteriológico costumeiramente utilizados nas ciências sociais.
Referências
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FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2015.
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HIRSCHL, Ran. The Migration of Constitutional Ideas. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.
PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da Pesquisa Jurídica: teoria e prática. 13ª Ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2015.
[1] Escrito originalmente como trabalho (resumo expandido para apresentação oral), sob orientação da professora Estefânia Maria de Queiroz Barboza, para o ENFOC – XIII Encontro de Iniciação Científica, XII Fórum Científico e IV Seminário PIBID - UNINTER.
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