Direito Civil do Inimigo e os Direitos que a Sociedade Esqueceu

19/12/2015

Por Maurilio Casas Maia - 19/12/2015

Em tempos de crise, a “sociedade” volta-se comumente contra o “social” e avolumam-se os críticos do “diferente”. Não bastasse eventual herança inconscientemente ditatorial na conduta do brasileiro, a verdade é que muito disso ainda resvala no cenário institucional-democrático e vai deixando suas vítimas. Aqui, o objetivo é expor brevemente a figura do “inimigo” para além do lugar onde fora mais estudado (Direito Penal), apresentando-se a referida “inimizade” social no Direito Civil em sentido amplo.

Antes, porém, cumpre esclarecer que nos tempos de crise vão aflorando pelo menos dois tipos de indivíduos dispostos a sacrificar os tais “inimigos”, são eles: o “precariado” (STANDING, 2013) e os “oportunistas”. Aliás, o cenário contemporâneo das redes sociais e de bugigangas eletrônicas é “perfeito” para a proliferação do “discurso do ódio” (“Hate Speech”) e de ideais excludentes das “minorias” (em sentindo qualitativo, em termos de poder político). E aí surgem os “oportunistas” de plantão...

Por outro lado, o “oportunista” é um daqueles aproveitadores de ocasião e que não se importará em defender pensamentos antidemocráticos a fim de alcançar seus objetivos e integrar (ou se manter) em meio à elite desejada (CAVALCANTE E SILVA FILHO, 2004). Ao que parece, para os “oportunistas”, “o público justifica os meios” (MARTINUZZO).

No “Direito Civil do Inimigo”, a escolha da terminologia possui um peso importantíssimo, pois é necessário excluir (ainda mais) discursivamente os “inimigos” do contexto social próximo e até mesmo eliminá-los. Nesse contexto, é necessário dividir a sociedade em dois grupos: “cidadãos de bem” e “inimigos”.

Ah sim, o uso do termo cidadão de bem – inconscientemente ou não –, guarda cunho ideológico e de tendência inegavelmente excludente dos seres “diferentes” (e não é de hoje). Desde eras mais remotas, o cidadão de bem (“The Good Citizen”) busca se apresentar como a única categoria social digna de tutela, ao contrário dos inimigos. E foi assim na Inquisição (vide “Malleus Maleficarum”) e durante as ações editoriais da KuKluxKlan – vide um pouco mais em aqui, em texto assinado em coautoria com o professor Alexandre Morais da Rosa (UFSC).

No cenário prático das lides possessórias, um dos pontos nos quais o discurso do ódio e excludente contra um suposto inimigo social se revela comumente no caso de “reivindicação popular e espontânea por moradia” ou “ocupação irregular”. Na nomenclatura já se inicia o trabalho de rejeição social do inimigo: ele é visto como “invasor” e, de modo reducionista, tratado como um mero “infrator da Lei”. A terminologia utilizada pelo operador do direito e pelos demais integrantes da sociedade revela muito mais sobre quem usa o termo do que sobre o povo marginalizado.

O interessante é que boa parte dos cidadãos desconhecem o peso das terminologias e mesmo o poder que a mudança de referencial terminológico poderia provocar quanto à visão da sociedade sobre os problemas sociais. Nesse contexto, o desconhecimento dos matizes terminológicos somente serve à manutenção do status quo e de obstáculo à implementação de uma sociedade mais democrática, livre, justa e solidária.

Aqui, sobressai-se ainda um comportamento paradoxal em sociedade: os mesmos indivíduos que exigem a imediata retirada das populações ocupantes, de certo modo estabilizadas pelo tempo na localidade às vésperas natalinas (somente para exemplificar), serão os mesmos que desejarão “feliz natal” aos participantes de suas comunidades e das redes sociais sem sequer se lembrar dos despossuídos de lar. E por quê?

 Porquepara o “cidadão de bem” merece atenção social os membros de seu grupo, com quem se identifica, e quem está de fora – “o inimigo” esse que é o diferente –, merecerá tão somente o rigor da Lei. Então para quê se importar com estes últimos no natal do “cidadão de bem”?

Os inimigos são remetidos superficialmente à ilicitude e seus direitos esquecidos... E para onde vão os direitos que sociedade esqueceu? Aqui se recomendando a obra do desembargador José Renato Nalini (2011), denominada “Direitos que a cidade esqueceu”.

Quando a sociedade identifica o “diferente” e não possui com este qualquer traço sinalizador de “alteridade” (LÉVINAS, 2010), a consequência é uma só: “sociedade” contra o “social”, como analisou Renato Janine Ribeiro (2000).

Os exemplos de “inimigos no Direito Civil” se acumulam e eles vão de modo fascista merecendo por parte da sociedade certa “presunção de culpabilidade” e doses de “discursos do ódio”: o consumidor lesionado em pequena monta é taxado como fomentador malicioso da “indústria do dano moral” e olvidam que o Poder Judiciário finda por reforçar a “Indústria dos lesados sem reparação”; o problema do superendividado é tratado como mera “inconsequência individual” e não como o problema social ou psicológico, que pode ser; o torturado e vítima da violência estatal, ansioso por responsabilização civil estatal, é tratado muitas vezes como um mentiroso de antemão, resultando isso na convalidação da violência ou omissão estatal – vide a pesquisa do delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone; O estuprado nos presídios não foi conduzido para exames completos previamente à prisão e nem o será quando sofrer violência sexual no presídio. Assim, após sofrer a violência sexual durante a prisão provisória, contrair AIDS e ser absolvido, v.g., sua pretensão reparatória provavelmente esbarrará na improcedência por ausência de provas – e haverá ainda quem diga, no cenário de hate speech contra o “inimigo”, que o “estupro carcerário” foi merecido – o cúmulo da ausência de respeito aos direitos humanos. Sobre o tema vide o “Caso Heberson de Oliveira” e o texto do Juiz Luís Carlos Valois.

Outro infeliz exemplo é o caso dos reivindicantes espontâneos do direito social à moradia. Estes geralmente são vistos equivocadamente como criminosos. Aliás, quando os “criminosos” realmente estão lá nas tais “favelas” e “invasões”, muitos da sociedade se arvoram em generalizar e tratar toda população ocupante como “bandido” e, dessa maneira, ampliar o ódio social contra esse segmento vulnerável.

Trata-se assim o cidadão despido de oportunidades sociais e/ou ludibriado pela esperteza alheia, como mero inimigo da propriedade privada, desse modo viabilizando um clima social apto para extirpar a fórceps seu grupo da terra ocupada, isso sem qualquer preparo social prévio. Os eventuais direitos dos “inimigos” (Usucapião, Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, a Concessão Especial para fins de Moradia – CEFM, além do exercício da função social da posse, v.g.) são geralmente esquecidos a fim de viabilizar uma retirada célere daqueles para os quais o direito à moradia é uma vazia promessa constitucional.

Tudo isso pode ainda ser acompanhado de um desumano e cruel uso do “meio ambiente” como “bode expiatório” para eliminação e dissipação dos “inimigos” da área ocupada sem a devida ponderação dos valores envolvidos. E aí se faz presente o risco de apenas remover o problema social de um lugar para outro, muitas vezes ampliando as mazelas sociais em vez de resolvê-las eficazmente.

Em meio a tanta desesperança e despreparo com o trato de problemas sociais de relevo, algumas práticas surgem como renovadoras de esperanças em um direito democrático e justo. Esse é o exemplo da reintegração de posse implementada pelo Juiz Federal Dimis da Costa Braga, ganhador de menção honrosa no prêmio Innovare pelo digno trabalho denominado “Mediação Judicial e Policial: Reintegração Humanizada com realocação de Famílias Carentes Ocupantes de Extensa Área Urbana - Finalidade Social” (veja mais aqui).

O caso acima ocorreu em Porto Velho (RO) e evitou a trágica deambulação e ampliação do problema social decorrente de reintegração de posse em ocupações multitudinárias. Hoje, o êxodo para os grandes centros urbanos ainda permanece em muitos lugares do Brasil. As populações migram em busca de serviços básicos e oportunidades sociais. E esse é só mais um dos problemas sociais que o Direito é convidado a explorar e corrigir humanamente.

Ao reconhecer seus próprios preconceitos, o jurista e a sociedade são instados a iniciar uma nova visão realmente democrática daqueles até então alvo de preconceito e, assim, evitar que cidadãos desprestigiados pela vida representem o “social” enquanto “inimigo” da “sociedade”.

Quantos “inimigos”mais você (re)conhece, no Direito Civil?

Revele-os e ajude a “sociedade” a superar o preconceito contra o “social”. E, desse modo, talvez, o ano de 2016 inicie uma renovação em prol de um Direito democrático, livre, justo e solidário.

Um feliz natal para TODOS!


Notas e Referências:

CAVALCANTI E SILVA FILHO, Erivaldo. Teoria das Elites: A cabeça da medusa. 2ª ed. Recife: Ed. do Autor, 2004.

LEVINÁS, Emmanuel. Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. 5ª ed. Petrópolis (RJ): Ed, Vozes, 2010.

MARTINUZZO, José Antônio. Os públicos justificam os meios: mídias customizadas e comunicação organizacional na economia da atenção. São Paulo: Summus Editorial, 2014.

NALINI, José Renato. Direitos que a cidade esqueceu. São Paulo: Editora RT, 2011.

RIBEIRO, Renato Janine. A sociedade contra o Social: o alto custo da vida pública no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Tradução Cristina Antunes. Revisão da tradução: Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2013.

ZAFFARONI, E. Raul. O inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. 2ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2014.


Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM). 

Email:  mauriliocasasmaia@gmail.com

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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