“Direito ao silêncio na fase policial”, segunda parte

27/07/2016

Por David Tarciso Queiroz de Souza – 27/07/2016

Caros amigos, no dia 29/06/2016 dei início a coluna “Persecução penal em perspectiva” abordando o tema “Direito ao silêncio na fase policial”.

Diante da complexidade do assunto e limite de espaço da coluna, optei por dividir o texto em mais de um artigo. Assim, no primeiro artigo foi apresentado o problema, corriqueiro nas delegacias de polícia de todo o país, que constitui o núcleo estruturante de todos os textos, qual seja: será que o preso que permanece calado durante seu interrogatório tem o seu direito ao silêncio tutelado, mesmo quando o delegado de polícia faz constar nos depoimentos dos policiais envolvidos na prisão a confissão informalmente obtida por eles?

Encerrei o primeiro artigo com a conclusão de que o direito ao silêncio nasce muito antes do formal interrogatório realizado na delegacia de polícia e que, portanto, o “Guarda do Rei” somente poderia revelar o teor da conversa que manteve com Silva no momento da abordagem se tivesse lhe advertido do direito de permanecer calado. Ademais, deixei abertas as seguintes perguntas: quais as consequências jurídicas do desrespeito ao direito ao silêncio, no caso em tela? E qual deveria ser a postura do delegado de polícia diante de depoimentos como o exposto no caso em tela?

Neste segundo artigo, convido o leitor para debatermos sobre a primeira indagação acima proposta (quais as consequências jurídicas do desrespeito ao direito ao silêncio, no caso em tela?).

A resposta da primeira pergunta, ao meu ver, somente pode ser uma: O desrespeito ao direito ao silêncio fere o princípio da ampla defesa, violando assim as regas previstas no art. 5º, LV e LXIII, da CF/88 da CF, devendo, portanto, ser considerada prova ilícita o depoimento do policial que revela conversa informal que manteve com o suspeito, sem a devida advertência do direito de permanecer calado.

O depoimento dos policiais revelando uma confissão obtida sem a devida advertência do direito de permanecer calado burla o direito fundamental ao silêncio e, portanto, deve ser considerada prova ilícita, ou seja, um “nada” jurídico, que não deve ser introduzido no auto de prisão em flagrante, por ser considerada inadmissível, e, caso seja, deverá ser desentranhada. Nas palavras de Giacomolli, a prova ilícita não é prova e não se presta para nada[1] e ainda gera a contaminação dos atos que dela decorrerem.

Vale destacar que não descuro do argumento de que, seguindo a regra do art. 155 do CPP[2], em face da falta de estrutura dialética, não seriam produzidas provas durante a fase pré-processual (como regra), mas sim elementos informativos. Nesse passo, a regra da inadmissibilidade da prova ilícita, prevista arts. 5°, LVI da CF[3] e 157 do CPP[4], somente teria validade na fase processual, momento em que são produzidas provas, ou em certas exceções da fase investigativa. Quem nunca leu um julgado onde constava a afirmação de que os vícios da fase pré-processual não contaminam o processo, sendo considerados, em regra, meras irregularidades?

Todavia, a perfeita exegese da distinção entre prova e elemento de informação trazida pelo art. 155 do CPP e, notadamente, a relação desse artigo com a regra da inadmissibilidade da prova ilícita, prevista nos arts. 5°, LVI da CF e 157 do CPP, mais apurada do que a citada no parágrafo anterior. Certamente a palavra “prova”, existente nos aludidos artigos, deve ser interpretada de maneira distinta e de acordo com objeto de tutela de cada dispositivo legal. Explico: o art 155 do CPP não conceituou prova ou elemento de informação. Seu escopo ao distinguir prova de elemento de informação foi resguardar a essência do sistema acusatório, estabelecendo limites cognitivos para a formação do convencimento do julgador, qual seja, a utilização, primordialmente, das informações produzidas diretamente na sua presença e sob o crivo do contraditório. Nesse contexto, a fim de preservar o sistema acusatório, a palavra “prova”, no que se refere ao art. 155 do CPP, deve ser interpretada de forma restritiva, ou seja, somente aquilo produzido no processo (elemento endoprocessual). Diferentemente, o artigo 157 do CPP, ao prever a inadmissibilidade de provas ilícitas, claramente tem o escopo de evitar arbitrariedades do Estado no exercício do poder de punir. Com efeito, a palavra “prova” prevista nesse artigo deve interpretada de maneira distinta daquela realizada no art. 155 do mesmo diploma. Como o escopo da probição de prova ilícita é evitar excessos dos atores envolvidos na persecução penal, não deve ser considerado prova somente aquilo que for produzido na fase processual. No ponto, a palavra prova contida no art. 157 do CPP devera ser interpretada de forma ampla, abrangendo não somente a fase processual, mas também toda a persecução penal, afinal, os excessos punitivos do Estado não ocorrem somente na fase processual. Portanto, para fins de análise de inadmissibilidade, prova é aquilo produzido na fase processual e tamém na fase investigativa.

Ademais, o argumento de que na fase pré-processual, em regra, são produzidos elemento de informação, não representa um sinal verde para a prática de atos ilegais no curso da investigação, tampouco justifica a violação de direitos individuais. A violação de um direito individual, seja na fase da investigação, seja na fase do processo, sempre acarretará a ilicitude do ato, e, por consequência, a impossibilidade de que a decisão judicial se forme com base nesse elemento. É evidente que a ilicitude pode ocorrer antes do início do processo[5]. O inquérito policial, por exemplo, em que pese não produzir provas, não é um local desprovido de regras para a colheita de elementos de informação. Não se pode tudo! Até mesmo porque o recebimento da denúncia, com a consequente transformação do inquérito policial em processo, não tem o poder mágico de gerar uma catarse nas ilicitudes já praticadas, transformando algo ilícito em lícito. Uma prova ilícita, independentemente do momento em que for produzida, contaminará todos os atos que dela decorrerem e em hipótese alguma poderá ser utilizadas pelo julgador na formação de sua convicção.

Dessa forma, ao permitir que uma prova ilícita permeie o auto de prisão em flagrante o delegado de polícia eiva de vício a persecução penal logo no seu nascedouro, gerando a contaminação de todos os atos decorrentes dessa confissão.

A violação de um direito fundamental deve ser combatida em qualquer fase da persecução penal, sob pena de fomentar práticas ilegais e abusos de poder do Estado. Proibir provas ilícitas, além de tutelar direitos individuais, ainda significa desestimular práticas probatórias ilegais por quaisquer dos atores ligados à persecução penal, funcionando como fator de dissuasão para ilegalidades[6]. Indubitavelmente, há um forte e salutar cunho pedagógico na inadmissibilidade das provas ilícitas.

E qual deveria ser a postura do delegado de polícia diante de depoimentos como o exposto no caso em tela?

Essa segunda pergunta ficará para o próximo artigo. Até breve.


Notas e Referências:

[1] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014. p. 166.

[2] Art. 155. “O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.

[3] Art. 5°, LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

[4] Art. 157, CPP. “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.

[5] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Prova. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 262.

[6] OLIVEIRA, Eugenio Pacelli. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 335.


David T. Queiroz de Souza. David Tarciso Queiroz de Souza é Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Pós-graduado em Direito Público. Pós-graduado em Gestão de Segurança Pública. Professor de Direito Processual Penal da Academia de Polícia do Estado de Santa Catarina e de outras instituições de ensino. Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina. .


Imagem Ilustrativa do Post: SILENÇO // Foto de: Estevo González Azañón // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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