Por Ilton Norberto Robl Filho - 23/03/2015
Um dos pilares do Estado Democrático de Direito é a segurança jurídica, a qual é essencial na proteção de direitos e de situações jurídicas. Apesar da existência da regra constitucional de respeito ao direito adquirido, interpretações restritivas do conteúdo desse comando constitucional dificultam a defesa de direitos. Desse modo, há necessidade de desenvolvimento doutrinário e acolhimento jurisprudencial do princípio da confiança.
Incorporam-se os direitos subjetivos e as posições jurídicas ao patrimônio jurídico de pessoas físicas e jurídicas depois de cumpridos os requisitos necessários previstos pelo direito vigente, não podendo alterações jurídicas posteriores prejudicar essas situações jurídicas consolidadas. Há três claras situações em que a confiança dos cidadãos é violada, porém a categoria do direito adquirido não fornece a proteção devida e almejada.
Em primeiro lugar, no Mandado de Segurança nº. 26.196, o Supremo Tribunal Federal firmou o seguinte entendimento: “o que regula os proventos da inatividade é a lei (e não sua interpretação) vigente ao tempo em que o servidor preencheu os requisitos para a respectiva aposentadoria (Súmula 359/STF). Somente a lei pode conceder vantagens a servidores públicos. Inexiste direito adquirido com fundamento em antiga e superada interpretação da lei.” (Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 18-11-2010, Plenário, DJE de 1º-2-2011.)
Obviamente a lei, nos termos do art. 5º, II, Constituição Federal (CF)[1], estabelece por excelência direitos e deveres, fixando obrigações e proibições. De outro lado, todo o texto normativo precisa ser interpretado. Se existe uma interpretação hegemônica jurisprudencial da lei, em conformidade com a Constituição, os jurisdicionados, desde que cumpram os requisitos estabelecidos nessa hermenêutica, possuem sim um direito adquirido ao contrário do que afirmou o Supremo.
Em segundo lugar, há relevantes situações jurídicas e direitos subjetivos em que os requisitos legais e constitucionais para adquiri-los determinam a observância de um largo lapso temporal. Um exemplo são os requisitos de tempo de serviço e de idade para concessão de aposentadoria, nos termos art. 201, § 7º, CF[2].
Os custos de aposentadorias e pensões aumentam intensamente com a majoração da expectativa de vida da população, sendo legítimo e necessário que os administradores públicos e agentes políticos enfrentem e combatam o déficit na previdência social. Por sua vez, é um equívoco afirmar que os cidadãos que cumpriram 80 a 90% dos requisitos temporais para a concessão de aposentadoria não possuem qualquer direito à aplicação das regras anteriores, pois detêm “mera” expectativa de direito. Essa concepção de que somente se observa um direito adquirido ao regime de previdência quando integralmente preenchidos os requisitos foi sufragada também pelo Supremo Tribunal Federal[3].
Em terceiro lugar, as posições jurídicas e os direitos subjetivos dos funcionários públicos, concessionários e delegatários de serviços públicos são protegidos de maneira bastante reduzida contra atos da administração e do Estado. Muitas vezes a administração pública, alegando sem a demonstração adequada a prevalência do interesse público, viola os direitos adquiridos dos agentes públicos e dos particulares que atuam em colaboração com o poder estatal.
A garantia do direito adquirido é fundamental no Estado Constitucional, mas é um instrumento insuficiente na proteção dos cidadãos. Desse modo, ganha cada vez mais destaque a construção do princípio da confiança.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro já teve oportunidade de manifestar-se sobre esse princípio, afirmando que a confiança constitucionalmente garantida deve estar “alicerçada em ato estatal dotado de credibilidade e total aparência de juridicidade” (AG. REG. MS 27.284, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, julg. 24/02/2015).
O Tribunal Constitucional português trabalha de forma mais robusta e corriqueira com o princípio da confiança[4]. No acórdão nº. 128/2009, esse Tribunal firmou importantes critérios sobre a delimitação desse instituto: “para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa”.
A proteção dos direitos dos cidadãos e pessoas jurídicas perpassa pelo desenvolvimento e pelo acolhimento do princípio da confiança no direito brasileiro contemporâneo.
Notas e referências:
[1] “II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”
[2] “§ 7º É assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)”
[3]“Art. 2º e expressão '8º' do art. 10, ambos da EC 41/2003. Aposentadoria. Tempus regitactum. Regime jurídico. Direito adquirido: não ocorrência. A aposentadoria é direito constitucional que se adquire e se introduz no patrimônio jurídico do interessado no momento de sua formalização pela entidade competente. Em questões previdenciárias, aplicam-se as normas vigentes ao tempo da reunião dos requisitos de passagem para a inatividade. Somente os servidores públicos que preenchiam os requisitos estabelecidos na EC 20/1998, durante a vigência das normas por ela fixadas, poderiam reclamar a aplicação das normas nela contida, com fundamento no art. 3º da EC 41/2003. Os servidores públicos, que não tinham completado os requisitos para a aposentadoria quando do advento das novas normas constitucionais, passaram a ser regidos pelo regime previdenciário estatuído na EC 41/2003, posteriormente alterada pela EC 47/2005. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente." (ADI 3.104, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 26-9-2007, Plenário, DJ de 9-11-2007.)
[4] Sobre o princípio da confiança com uma análise profunda sobre a atuação do Tribunal Constitucional português, cf. PINTO, Paulo Mota. A proteção da confiança na “jurisprudência da crise”. In: RIBEIRO, Gonçalo de Almeida; COUTINHO, Luís Pereira. O Tribunal Constitucional e a crise: ensaios críticos. Coimbra: Almedina, 2004, p. 135-181.
Ilton Norberto Robl Filho é Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisador Visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Toronto - Canadá e do Max Planck em Heidelberg - Alemanha. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFPR e do Programa de Mestrado em Direito da UPF. Seus temas de pesquisa e produção são: i) Metodologia Jurídica e Teoria do Direito e ii) Instituições Políticas e Teorias do Estado e da Constituição.
Imagem Ilustrativa do Post: Columns at the Palace of Justice // Foto de: Matt Popovich // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mattpopovich/15837633260 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode