DIREITO À CIDADE INTERSECCIONAL NO CONTEXTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO  

18/01/2019

 

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

 

O Direito à cidade na perspectiva de Lefebvre obriga a superação da vida cotidiana e da gestão alienadas pelo capitalismo em sua ideologia irracional e individualista. É a revolução dúplice que rejeita frontalmente que seja possível superar as contradições do sistema sem uma crítica ontológica para um salto qualitativo da sociedade atual para uma sociedade sem classes. A ideia que o Estado possa promover uma planificação da cidadania por meio da democracia liberal é fortemente rejeitado, apontando para a impossibilidade, sob o capitalismo, da igualdade material de acesso aos meios de consumo coletivo do espaço urbano – em essência, a parcela material do Direito à Cidade.

A profundidade dessa reflexão aponta para uma crítica da cotidianidade, do dia-a-dia, de como o viver na cidade capitalista (cidade-mercadoria) é alienante, sujeitando a todos ao processo de expropriação que torna as pessoas em coisa e a ideologia da propriedade privada mistificada como potência estranha – um mundo invertido, no qual as coisas dominam as pessoas[1].  Conforme Lefebvre: “o indivíduo encontra-se assim simultaneamente “socializado”, integrado, submetido a pressões e a sujeições pretensamente naturais que o dominam (nomeadamente no seu quadro de espaços, a cidade e as suas extensões), e separado, isolado e desintegrado. Contradição que se traduz pela angústia, pela frustração e pela revolta”[2].

Portanto, ao mesmo tempo em que há uma ideologia que sujeita a todos, existem processos de segregação complexos traduzidos em opressões e dominações particulares. O compromisso do Direito à Cidade com o fim do capitalismo obriga, necessariamente, que todas as formas de alienação que mediam indivíduo e totalidade sejam superadas, por isso no seu conteúdo sempre esteve previsto a atenção com as interseccionalidades que servem de categoria de análise para identificar a realidade da segregação sócio-espacial.

A crítica aos processos de alienação e segregação do capitalismo aponta para a ubiquidade da reificação causada pela forma mercadoria, ao ponto que na esfera da relação de trabalho todos estariam sujeitos a isto. Entretanto, essa forma de dominação está diretamente ligada a tantas outras tecnologias de opressão, que sustentam as condições matérias da reprodução capitalista – sua ordem sociometabólica. A noção de interseccionalidade, conforme Kimberle Crenshaw[3], aponta como a opressão de gênero e de raça se forma em uma relação concreta e possui categoria própria – não excludente. Assim, a autora aponta como isso é um problema duplo: a discriminação em si e a invisibilidade dela no conteúdo dos movimentos sociais e políticos que deveriam a defender – por isso, o Direito à Cidade deve ter obrigação com os dois, de obrigar a superação da opressão e dar visibilidade às pautas.

A noção de interseccionalidade é, portanto, e conforme Patricia Hill Collins[4], tanto uma forma de conhecimento por ser uma importante categoria de análise e conexões, como uma arma política para inclusão de trabalhadores que sintam suas realidades alheias aos movimentos revolucionários e o pensamento de uma nova humanidade como sugere o Direito à Cidade.  A violência da vida urbana na segregação habitacional, na precarização dos meios de consumo coletivo e na despolitização dos espaços públicos, se agrava na consubstancialidade com a raça, o gênero e a sexualidade - por exemplo-, principalmente pela estrutura social que sustenta o racismo, a misoginia e a “LGBTfobia”.

Entretanto, na realidade da sociedade de consumo, até mesmo as intersecções que sempre foram apontadas justamente pelas opressões que as criaram, acabam transformadas em identidades mercantilizadas, sugerindo certo progresso na relação da sociedade com esses sujeitos, mascarando que é uma história que se repete. O conceito de “empoderamento”, explicado por Joice Berth[5], se dá justamente pela necessidade de identificação de parcela da sociedade e suas pautas, mas como um instrumento de emancipação social, longe do interesse de manter relações hierárquicas e alienadas – em que a autora identifica que a luta da mulher negra está no fim das opressões, sendo necessário para isso dar visibilidade a sua.

Essa mesma relação interseccional de luta por liberdade ao mesmo tempo de visibilidade é vista nas sociabilidades LGBT, que respondem ao conteúdo e as formas heteronormativas do espaço urbano com a vivência construída sob espaços de segurança e visibilidades, em uma (re) apropriação da cidade[6]. Entretanto, os coletivos marginalizados, ou as sexualidades minoritárias, acabam sempre sujeitam a uma separação da sociedade, uma “fronteira sexual” conforme chama a pesquisador Letícia Sabsay[7], em que a cidadania universal forjada na igualdade formal jamais alcança certos corpos.

 Há, pensando na superação da dominação e das opressões, uma relação concreta que coloca o Direito à Cidade ao lado da interseccionalidade, pois ao mesmo tempo que a luta por uma cidade realmente democrática não pode cair na armadilha da planificação promovida pelo Estado numa conciliação impossível de interesses, as intersecções também precisam concretizar emancipações, não a mera inclusão na sociedade segregada em classes. O capitalismo já demonstrou capacidade em incluir marginalizados em setores da sociedade do consumo – principalmente como mercantilização de culturas – mas jamais terá a capacidade de promover efetiva emancipação[8].

Tal qual o Direito à Cidade obriga a revolução da vida cotidiana, buscando uma efetiva democratização da gestão entre pessoas livres, fugindo das ofertas que sujeitam a cidade às promessas de inclusão na sociedade de consumo, em que meras correções seriam capazes de promover igualdade no acesso aos meios de consumo coletivo, nas interseccionalidades a pauta da emancipação é central, necessitando ao mesmo tempo da visibilidade – esse é o desafio do Direito à Cidade, promover a diversidade de ação e pensamento na compreensão de experiências que constroem a vida urbana.

A expropriação da cidade do capitalismo necessita também da reinvenção do imaginário e da sociabilidade útil dos ódios de raça, classe, gênero e sexualidade – e tudo aquilo que é criado e transformado nos entremeios. Esquecendo-os, restará na vida cotidiana da cidade boa parte do conteúdo do capitalismo, o sinal de uma revolução fracassada.

 

Notas e Referências

[1]CARLOS, Ana Fani Alessandri. A privação do urbano e o “direito à cidade” em Henri Lefebvre. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri; ALVES, Glória; PADUA, Rafael Faleiros de. Justiça espacial e direito à cidade. São Paulo: Editora Contexto, 2017

[2] LEFEBVRE, Henri. O Pensamento Marxista e a Cidade. Tradução: Maria Idalina Furtado. 1ª Edição. Lisboa: Editora Ulisseia, 1972. p. 172

[3] CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. VV. AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, p. 7-16, 2004.

[4] COLLINS, Patricia Hill. Toward a new vision: Race, class, and gender as categories of analysis and connection. In: LANDRY, Bart (ed). Race, Gender and Class. Routledge, 2016. p. 65-75.

[5] BERTH, Joyce. O que é empoderamento. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

[6] Ver: VIEIRA, Paulo Jorge. Aeminiumqueer, a Cidade Armário: Quotiianos Lésbicos e Gays em Espaço Urbano. Revista latino-americana de Geografia e Gênero, v. 1, n. 1, p. 5-13, 2010.

[7] SABSAY, Leticia, Fronteras Sexuales. Espacio urbano, cuerpos y ciudadanía, Buenos Aires: Paidós, 2011,

[8] Ver, por exemplo, o relato de Douglas Rodrigues Barros, em: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/o-racismo-e-a-forma-de-manutencao-do-capitalismo-a-brasileira/

 

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