Coluna Direito de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira
O direito à alimentação foi inserido, no ordenamento jurídico pátrio, como um direito fundamental de 2ª geração, no capítulo dos direitos sociais, art. 6º da Constituição Federal de 1988 (CF/88), através da Emenda Constitucional (EC) nº. 64/2010. Embora a discussão não seja recente, o Estado brasileiro resistiu por longas décadas até subscrever e implementar tal garantia.
Como todos os direitos fundamentais, essa garantia foi uma conquista lenta e ainda não plenamente efetiva, principalmente, entre a população infanto-juvenil. Todo individuo necessita não só de comida, mas alimentação adequada, de qualidade, que respeite sua individualidade em relação a idade, sexo, questões culturais e socioeconômicas para o seu melhor desenvolvimento.
Este artigo tem o intuito de trazer a questão do conceito desse direito e a sua efetividade para o bom desenvolvimento das crianças e adolescentes, considerando sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.
Direito à alimentação: das garantias jurídicas às demandas por políticas públicas
“Desde a Pré-História há relatos sobre os esforços empreendidos no mundo, por aldeias inteiras, para satisfazer a necessidade básica de acesso à alimentação, contudo, somente a partir do século XIV esta passou a ser reivindicada em face do Estado” (Chehab, 2009)[1].
Em nível mundial podemos citar como marco que chamou atenção para esse direito as duas grandes guerras que geraram fome e crise no fornecimento de alimentos e motivaram a discussão sobre a sua escassez e a responsabilidade dos Estados em garantir o mínimo para a sobrevivência.
Assim, a luta por esse direito fundamental básico ensejou diversos instrumentos internacionais, dentre os quais, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais[2], em seu art. 11, que não só ratificou esse direito, como estipulou medidas a serem adotadas pelos países signatários, importante conquista do direito alimentar, documento jurídico ratificado por 153 países, inclusive o Brasil.
Interessante citar outros documentos que assinalaram esse direito: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 25 e a Constituição das Nações Unidas, em seu preâmbulo. O público infantil tem ainda em sua defesa a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, em seu art. 24[3].
De fato, no princípio, a luta era pelo mínimo, simplesmente ter acesso à comida, mas o direito à alimentação foi pensado como um pressuposto ao direito à vida. Ninguém vive sem se alimentar e hoje se sabe que uma alimentação inadequada leva a graves consequências à saúde de qualquer homem. Em se tratando da população infanto-juvenil isso é ainda mais evidente.
Mas esses dispositivos embora representassem ganho considerável para o enfrentamento à fome e a desnutrição, por si só, não tinham força vinculativa suficiente para exigir dos Estados signatários a implementação de políticas públicas.
Hoje o direito à alimentação adequada tem forte amparo na legislação pátria. Inicialmente, esteia sua fundamentalidade, dentre outros dispositivos, no art. 5º, § 2º, da CF/88, que dispõe sobre a inclusão, no rol constitucional, de direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
E embora não trate diretamente sobre o direito à alimentação, especialmente do cuidado diferenciado da categoria infantil, ele corrobora as já mencionadas conquistas no âmbito internacional.
“Art. 5ª § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”[4]
Por se tratar de um direito fundamental, os princípios basilares da universalidade, indisponibilidade e interdependência lhe são inerentes, o que coaduna a sua defesa e alegação por parte da sociedade ao reivindicar sua eficácia e cumprimento. Mas, o legislador cuidou de acrescentar ao seu texto esse direito social, o que reforça ainda mais a sua exigência.
“De acordo com a justificação da PEC n. 21/2001-SF, ‘o direito à alimentação foi reconhecido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU, em 1993, em reunião realizada na cidade de Viena. Integrada por 52 países, e contando com o voto favorável do Brasil, registrando apenas um voto contra (EUA), a referida Comissão da ONU com essa decisão histórica enriqueceu a Carta dos Direitos de 1948, colocando em primeiro lugar, entre os direitos do cidadão, a alimentação’” (cf. art XXV da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948)’” (Lenza, 2017, p. 1251)[5].
O Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº. 21/2001 ensejou a EC nº. 64/2010 que incluiu a garantia à alimentação no art. 6º da CF/88, vejamos:
“Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifo nosso).
Mas cumpre mencionar que o conceito e a garantia do direito à alimentação deixaram de ser meramente a satisfação da fome, já que o consumo de alimentos por si só não garante o aporte nutricional necessário se este não for dotado das quantidades e qualidades suficientes para garantir equilíbrio físico e mental ao ser humano.
“A formulação de um direito fundamental à alimentação deve hoje ser vista e desenvolvida de forma inseparável com o direito humano à nutrição, visto que o alimento só adquire uma verdadeira dimensão humana quando o ser humano se encontra bem nutrido, saudável, digno e cidadão” (Valente, 2002 apud Carvalho, 2012)[6].
Assim, foi criada a Lei nº. 11.346/2006, denominada de Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), com vistas a assegurar o direito humano à alimentação adequada e que definiu o aludido direito em seu art. 2º, vejamos:
“A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano, inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dos direitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotar as políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir a segurança alimentar e nutricional da população.”[7]
Como se vê, o indicador de que esse direito social está sendo cumprido perpassa pelo conceito de segurança alimentar. A segurança alimentar e nutricional engloba diversos fatores, como: disponibilidade, consumo e acesso aos alimentos, além do uso biológico desses nutrientes, levando em conta os hábitos e práticas alimentares e culturais.
Por meio da LOSAN foi estabelecido o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) que assegura o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA). Em virtude de sua implementação muitos avanços têm ocorrido em relação à alimentação e nutrição para todos[8].
No Brasil já existem diversos programas que tem por objetivo assegurar a segurança alimentar e nutricional para a população, tais como, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Programa Bolsa Família (PBF), Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), entre outros (Henriques, 2018)[9].
Com atenção as crianças e adolescentes e em virtude de sua condição especial de pessoas em desenvolvimento, o direito à alimentação para essa categoria ganha reforço na CF/88, no art. 227, que também traz como princípios norteadores da proteção infantil o da proteção integral e o da prioridade absoluta.
Além da proteção constitucional, dos princípios e das normas internacionais que protegem os direitos fundamentais, dos quais o Brasil é signatário, e que tem amplitude geral, o Estatuto da Criança e do adolescente (ECA) traz em voga o direito à alimentação em seu art. 4º, reiterando o caráter solidário da reponsabilidade para com a criança e a atenção prioritária no atendimento e efetivação dos seus direitos.
Apesar de gozar de todos os direitos fundamentais inerentes a todo ser humano, não se pode olvidar a condição especial do infante, enquanto individuo ainda em formação, submetendo-o a tratamento igual ao aplicado a alguém já formado. O art. 6º do ECA enfatiza a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
A lei se preocupou com as características peculiares dessa categoria. Assim, no que tange a segurança nutricional, oferta de alimentos ao público infantil e das políticas públicas para o combate à desnutrição, deve-se considerar o caráter especial dessa população, além da prioridade de atendimento, prestação e destinação de recursos, decorrentes do princípio da prioridade absoluta.
Soma-se a estes, o princípio da proteção integral, que determina que o dever de proteção das crianças e adolescentes é responsabilidade de toda a sociedade. No contexto da segurança alimentar é dever da família, Estado e sociedade garantir a oferta adequada de alimentos aos infantes, com vista ao pleno desenvolvimento da infância e juventude, bem como o de adotar medidas de caráter protetivo e preventivo da insegurança alimentar dessa população.
O consumo inadequado de nutrientes, em crianças, pode ocasionar carências ou excesso em relação ao estado nutricional. Para que haja um bom desenvolvimento durante a fase infantil é necessário um aporte nutricional que supra as necessidades neste ciclo da vida, com alimentação e controle sanitário de qualidade (Carvalho, 2015)[10].
A desnutrição diante do conceito de segurança alimentar não está vinculada apenas ao peso, mas a deficiência nutricional, desta maneira a ingestão excessiva ou desequilibrada de energia e nutrientes, pode acarretar a obesidade que maquia o problema da desnutrição se considerados apenas gráficos e tabelas como indicadores nutricionais.
Diante disso, temos o cenário de crianças e adolescentes que aparentam estar bem alimentados, contudo, a ingestão excessiva de alimentos, e sobretudo de açúcar, sal e gorduras, nem sempre lhes garante o suprimento nutricional correspondente, ensejando doenças das mais diversas ordens, sendo as mais comuns: cardiopatia; hipertensão; diabetes; obesidade; e, hipercolesterolemia. Consequentemente, gerando diversos problemas de saúde pública.
Diante do conceito do direito à alimentação já exposto e do quadro atual supramencionado, a efetividade da lei perpassa pela implementação de políticas públicas, sua concreta funcionalidade e controle social. Esta prevê a necessidade de programação de reserva e uso de verbas públicas que custeiem esses programas, não esquecendo o princípio da prioridade absoluta que embasa os direitos das crianças e adolescentes, dando-lhes preferência na atuação do Estado.
Nesse aspecto, o Ministro Celso de Mello reconheceu na ADPF nº. 45 a possibilidade do controle judicial de políticas públicas como modo de efetivação dos direitos sociais, quando o Estado se mostrar inerte no cumprimento de seus deveres constitucionais de implementação daqueles direitos. Ademais, quanto a alegação da “reserva do possível”, afirmou que o Estado não pode invocá-la “com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade” (apud Mânica, 2008)[11]
Conclusão
Assim, diante do avanço da ciência e dos estudos sobre a importância nutricional no desenvolvimento físico e mental das crianças e adolescentes, percebe-se que o entendimento de alimentação deixou de ser meramente de comida, de modo que a legislação e sua interpretação pelos operadores do direito devem sempre agasalhar as necessidades da sociedade. Como demonstrado, o conceito do direito à alimentação e sua interpretação deve ser entendido por meio da segurança alimentar e nutricional.
O efetivo cumprimento desse direito combina a proporção entre a quantidade de calorias e a qualidade dos nutrientes ingeridos, razão pela qual não podem ser destacados do objetivo maior, qual seja, a disponibilidade de alimentos para todos, indistintamente, respeitando-se os seus aspectos culturais, regionais, étnicos, etário, entre outros. Não sendo plausível diante da importância desse direito que os responsáveis se esquivem ou negligenciem do dever que lhes é imputado pela lei.
Notas e Referências
[1] Cf. CHEHAB, I.M. C.V. O direito fundamental à alimentação adequada: contexto histórico, definição e notas sobre a sua fundamentalidade. Revista Âmbito Jurídico. 2009. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-69/o-direito-fundamental-a-alimentacao-adequada-contexto-historico-definicao-e-notas-sobre-a-sua-fundamentalidade/. Acesso em: 28 jun. 2019
[2] Assim definido no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, art. 11: “1. Os Estados Partes no presente Pacto reconhecem o direito de todas as pessoas a um nível de vida suficiente para si e para as suas famílias, incluindo alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como a um melhoramento constante das suas condições de existência. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas destinadas a assegurar a realização deste direito reconhecendo para este efeito a importância essencial de uma cooperação internacional livremente consentida. 2. Os Estados Partes do presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de todas as pessoas de estarem ao abrigo da fome, adotarão individualmente e por meio da cooperação internacional as medidas necessárias, incluindo programas concretos: a) Para melhorar os métodos de produção, de conservação e de distribuição dos produtos alimentares pela plena utilização dos conhecimentos técnicos e científicos, pela difusão de princípios de educação nutricional e pelo desenvolvimento ou a reforma dos regimes agrários, de maneira a assegurar da melhor forma a valorização e a utilização dos recursos naturais; b) Para assegurar uma repartição equitativa dos recursos alimentares mundiais em relação às necessidades, tendo em conta os problemas que se põem tanto aos países importadores como aos países exportadores de produtos alimentares.” Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm
[3] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm
[4] Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
[5] Cf. LENZA, P. Direito constitucional esquematizado. 21 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
[6] Cf. CARVALHO, O.F. Direito fundamental á alimentação e a sua proteção jurídico-internacional. In: Revista de Direito Público, Londrina, v. 7, n. 2, p. 181-224, 2012.
[7] Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.htm
[8] Brasil. Ministério da cidadania. Secretaria Especial do Desenvolvimento Social. SISAN-Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/seguranca-alimentar/direito-a-alimentacao/sistema-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-sisan.
[9] HENRIQUES, P. et al. Políticas de Saúde e de Segurança Alimentar e Nutricional: desafios para o controle da obesidade infantil. In: Ciência & Saúde Coletiva, v.23, n.12, p.4143-4152, 2018.
[10] CARVALHO, A.C. et al. Consumo alimentar e adequação nutricional em crianças brasileiras: revisão sistemática. Re. Paul de pediatria, v. 33, n. 2, p. 211-221, 2015.
[11] Cf. MÂNICA, F. B. Teoria da reserva do possível: direitos fundamentais a prestações e a intervenção do poder judiciário na implementação de políticas públicas. Mimeo, 2008. Cf. http://fernandomanica. com.br/site/wp-content/uploads/2015/10/teoria_da_reserva_do_possivel.pdf
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