Dilma e Janaina: o que as une? Ou, a misoginia nossa de cada dia

04/05/2016

Por Gisela Maria Bester e Letícia Bittencourt - 04/05/2016

Na votação que na Câmara dos Deputados recentemente aprovou a abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, em meio a tantas atitudes antidemocráticas não faltou também aquela da já tradicional afronta ao gênero feminino, traduzida pelo sexismo na política partidária. Com a clássica baixa representatividade das mulheres eleitas no Brasil, no caso de menos de 10% de deputadas federais, vimos nas placas fartamente exibidas pró-impeachment a mensagem “Tchau, querida”, ouvimos as vaias à deputada que não foi à votação por estar de licença-maternidade, além, é claro, da chocante e psicopática fala do deputado reverenciando horrendo torturador, o qual, conforme uma de suas vítimas mulher relatou, fez questão de mostrar os atos de torturas que lhe eram acometidos aos seus pequenos filhos, de 4 e de 6 anos (BRANDÃO, 2016). Outra de suas vítimas foi torturada mesmo estando grávida. (LEITÃO, 2016). Há várias histórias semelhantes.

No dia seguinte ao da votação, uma revista semanal eletrônica dedicou manchete de “bela, recatada e ‘do lar’” a Marcela Temer, esposa de Michel Temer e aspirante ao posto de primeira-dama da nossa República. O contraste do seu com os perfis das duas protagonistas do titulo deste artigo é latente. Dilma, segundo a capa de outra recente revista publicada foi descrita como mandona, agressiva e propensa a “surtos de descontrole”; Janaína Paschoal, sua ardorosa opositora, por sua vez é descrita como louca, histérica, desequilibrada. Dois pesos e duas medidas, dentro de um jogo político complexo, cuja arquitetura se faz notar.

Um olhar feminista orienta-nos a dizer que mulheres devam ser criticadas por suas ações equivocadas da mesma forma que os homens o sejam. É evidente que mulheres também oprimem, igualmente podem ser autoritárias, cometer deslizes de toda ordem; por isso mesmo, não devem estar ao abrigo de toda crítica (BEAUVOIR, 1967). No entanto, Janaína e Dilma – “acusadora” e “acusada” – são chamadas de desequilibradas e de outros tantos termos deletérios, ofensas que não vemos sendo dirigidas aos parlamentares ou a integrantes homens do Poder Executivo, por mais destemperos que demostrem em público e no trato dos temas públicos. Defender um reconhecido torturador, contra todos os valores constitucionais previstos no texto de 1988, não seria um ato insano, desequilibrado, autoritário?

Críticas machistas, em uma ordem constitucional fundada no princípio da igualdade, são inaceitáveis, independentemente a quem se dirijam e de quem provenham.

Não se pode ter seletividade quando o assunto é o combate ao machismo, de igual modo que também é certo que o feminismo não autoriza a reprodução do machismo na lógica inversa.

O machismo não diferencia ideologias. Com efeito, não há nada mais parecido com um “machista de direita” do que um machista “de esquerda”. Isto foi facilmente verificado em muitas reações a um vídeo viral de Janaína Paschoal, a “advogada do impeachment”.

Indiscutivelmente, há uma desproporcionalidade entre os gêneros nas esferas políticas, posto que a igualdade de direitos não garantiu a igualdade real entre homens e mulheres em vários setores, como o do proporcional acesso ao poder. Por inúmeras razões, já tanto estudadas, o exercício da soberania popular por meio do sufrágio universal não garantiu o acesso paritário aos cargos eletivos de poder, seja no Executivo, seja no Legislativo (BESTER, 1996; BIROLI; MIGUEL, 2014).

Neste contexto, gênero é uma categoria central para analisar-se e pensar-se criticamente o universo da política. Pelos seus estudos, vislumbram-se as posições das mulheres nas sociedades contemporâneas, abrindo-se portas para questionamentos e lutas por mudanças. Como as relações de gênero atravessam toda a sociedade, sendo o tema, por isso mesmo, chamado de “transversal”, acabam também gerando efeitos que se espraiam por todos os âmbitos e abrangendo a totalidade humana, envolvendo e vinculando aspectos de raça, de classe e de sexualidade.

Mas, dito isto, afinal, o que as protagonistas da epígrafe deste texto, aparentemente antagônicas, têm em comum?

O trato dispensado a elas revela a violência psicológica a que são submetidas todas as mulheres, em pleno século XXI, independente de serem elas chefes do Poder Executivo do País, lavadeiras, “do lar”, ou professoras universitárias. São sujeitas passivas de uma sociedade patriarcal que secularmente tenta ratificar a hegemonia masculina por meio da submissão e da estereotipação da mulher. Trata-se de uma forma de violência de gênero, reforçada por estigmas vários (GOFFMAN, 1988; BACILLA, 2010).

Há uma histórica expectativa de que a mulher ocupe espaços coadjuvantes ou secundários, nas esferas privadas da vida; já dos homens, espera-se a ocupação do espaço e do poder públicos. A figura “do lar”, de preferência materna, é necessária para legitimar todo um discurso de alijamento das que dele saem para ocupar espaços públicos de luta política, de trabalho e, por conseguinte, de evidência. Na maior parte das vezes não o sabem, mas é assim que a engrenagem funciona. E isto não significa que não devam existir as dedicadas preponderantemente, ou exclusivamente, ao lar, aos assuntos domésticos. O importante é que se assumam e se aceitem – ou não! - esses papeis todos com consciência dos seus substratos. Essas atribuições sociais destinadas a homens e mulheres fundamentam-se em valores socioculturais, dominantes, ainda hoje, na sociedade brasileira, por mais que a Constituição Federal diga o contrário e que as políticas públicas procurem densificar e concretizar outros valores, princípios, postulados e direitos fundamentais em combate a este estado de coisas.

Portanto, a mulher, que é professora universitária ou que presida a Republica, estaria ocupando um lugar que não é seu. É uma invasora, merecendo a expulsão, devendo ser retirada de um cargo ou de um espaço que não lhe pertença. Se isso não for possível, merece então ser silenciada ou ridicularizada, para que perca totalmente a credibilidade e a força.

Dilma sofreu desde o início de seu primeiro governo e de forma acentuada vem sofrendo inúmeras violências, que expressam de forma contundente a misoginia e deixam claro a vulnerabilidade a que as mulheres brasileiras estão expostas. Ataques de toda ordem, pessoais, morais, provindos de uma concepção de mundo pautada pelo ódio puro e simples à mulher – isto é misoginia! – e, portanto, aversão também ao que ela representa, ao que ela faz.

Em orbe misógino, o discurso do ódio assume variadas formas, mas não esconde seus reais intuitos e dimensões: tipificar a mulher de incapaz e inviabilizar suas ações. São praticas que visam a fomentar a hegemonia masculina, perpetuando a ideia de que o feminino deva ser e estar subordinado na sociedade.

Quando a presidente é intitulada como doente, anormal e desarrazoada, busca-se, por tal via, atacar o seu espaço institucional, camuflando as reais intenções no jogo da disputa política e econômica. O mesmo tipo de ataque ocorreu à professora Janaína, uma das pessoas titulares do discurso mais inflamado contra Dilma. Os tons elevados das falas daqueles dias tensos podem ser considerados, mas o que se observou foi a redução a um sonoro enunciado: mulher louca, desiquilibrada.

Coincidência? Não: gaslighting! Este fenômeno é uma das formas de abuso psicológico, caracterizando-se por distorções de informações, suas omissões seletivas de modo a favorecer o abusador, ou simplesmente a sua invenção, com a intenção de fazer a vítima duvidar de si mesma quanto a suas memória, percepção e sanidade. A origem da nomenclatura é o filme dramático “À meia-luz” (GASLIGHT, 1944), no qual um homem, com intuito de apossar-se da fortuna de sua esposa, fez-lhe torturas psicológicas progressivas, para que ela fosse tida como louca e, consequentemente, internada em um sanatório. Em cenário de um casamento por interesse, vê-se arrastar-se uma opressão psicológica à personagem feminina (SANTIAGO, 2010). A partir daí, o termo gaslighting passou a, basicamente, significar o processo de desestabilização de uma mulher, em qualquer nível ou circunstancia, taxando-a de louca, exagerada, dramática, emocionalmente frágil, histérica.

Por outro lado, ainda que modestas, houve conquistas nos últimos anos, com relação à ampliação dos direitos das mulheres brasileiras e à ocupação de espaços, porém, também é certo que a violência contra elas cresceu drasticamente, permanecendo como fruto do legado patriarcal. O mapa da violência, de 2015, focado na violência de gênero, especificamente quanto aos homicídios de mulheres no Brasil, demostra que houve um aumento de 252% nos anos de 1980 a 2013, sendo que a taxa, que em 1980 era de 2,3 vítimas por 100 mil habitantes, passou para 4,8 em 2013, significando um crescimento de 111,1%, dando ao País o 5º lugar mundial no ranking de mortes de mulheres (WAISELFISZ, 2016). Um recorte nos estudos, especificadamente às mulheres negras e pobres, revela uma situação ainda mais gritante. Se não são vítimas do feminicídio, as mulheres são vítimas do aniquilamento de suas identidades e de constantes desqualificações, mediante a violência psíquica, perpetrada em distintos ambientes, como o laboral e o político.

São diversas as formas de dirigirem-se tais ofensas às mulheres, passando elas, muitas vezes, a convencerem-se de que não possuem equilíbrio emocional para comandar seu negócio, sua vida privada, seu labor, e que suas opiniões não merecem qualquer atenção, uma vez que seu choro, seu riso, sua aparência física, sua fala, suas vestimentas, tudo, enfim, tudo, é inapropriado e, portanto, desqualificador de si mesma. A violência, em geral, está, também, em fazer a vítima acreditar que ela mesma gerou todos os seus infortúnios, ou seja, transforma-se a vítima em vítima de si mesma. Os estudos vitimológicos explicam muito bem tudo isso (HIRIGOYEN, 2001).

Mais perverso do que esse processo em si é pensar que estas mesmas mulheres possam reproduzir em relação a outras as agressões que outrora sofreram, esquecendo-se que eventuais diferenças sociais, políticas ou ideológicas não afastam o gênero que as unem. É o não perceber que ao desqualificar sua “adversária” atingem todo o gênero, e que o resultado dessa ação não traz nenhuma vencedora, apenas vencidas.

O que se defende aqui não é nenhuma posição política, pois o feminismo é suprapartidário. Defende-se a tolerância e o respeito pautados no pensamento crítico-humanista e no diálogo, com vistas a um futuro conscientemente direcionado à melhoria da condição de vida de todas as mulheres.

Em comum, Dilma e Janaína têm, sobretudo, a misoginia. Que não é delas, mas que as afeta indistintamente. Que não é nossa, mas que afeta a muitas mulheres, mesmo aquelas que ainda não a percebam. Portanto, estamos diante da misoginia nossa de cada dia. Reflitamos a respeito.

Já quanto à reflexão, o desejável é que sempre leve à ação. Por isso, empoderem-se mulheres! Recusem-se veementemente a reproduzir o discurso patriarcal misógino. O gênero nos une umbilicalmente, apesar das diferenças que comungamos na espécie humana. Neste contexto, não permitamos espaços para ódios, sobretudo em uma ordem constitucional que elegeu a cultura da paz para aplacar quaisquer conflitos (institucionais, nacionais, internacionais, interpessoais).


Notas e Referências:

BACILA, Carlos Roberto. Estigmas – Um estudo sobre os preconceitos. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

BESTER, Gisela Maria. Direitos políticos das mulheres brasileiras: aspectos históricos da luta sufrágica e algumas conquistas políticas posteriores. Dissertação. 183 f. (Mestrado em Direito). Universidade Federal de Santa Catarina, 1996. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/106440>. Acesso em: 30 abr. 2016.

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. V. 2. A experiência vivida. 2. ed. Trad. de Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967.

BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

BRANDÃO, Marcelo. Mulher conta o que viveu nas mãos do Cel. Ustra, homenageado por Bolsonaro. Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/04/mulher-conta-o-que-viveu-nas-maos-do-cel-ustra-homenageado-por-bolsonaro.html>. Acesso em: 1 maio 2016.

GASLIGHT (À meia-luz). Drama. Filme dirigido por George Kucor. EUA, 1944, 1h54min.

GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Trad. de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.

LEITÃO, Matheus. Grávida torturada por Ustra diz que voto de Bolsonaro incita crime. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/gravida-torturada-por-ustra-diz-que-voto-de-bolsonaro-incita-crime.html>. Acesso em: 30 abr. 2016.

HIRIGOYEN, Marie-France. El acoso moral en el trabajo. Barcelona: Paidós Contextos, 2001.

SANTIAGO, Luiz. Crítica. À meia-luz. Disponível em: <http://www.planocritico.com/critica-a-meia-luz/>. Acesso em: 9 dez. 2010.

WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: ONU, 2015. Disponível em: <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em : 30 abr. 2016.


Gisela Maria BesterGisela Maria Bester é Professora de Direito Constitucional. Colaboradora convidada no Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e no Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestre (UFSC), Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) e Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Integrou o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT/CEP), e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça. Consultora da CAPES. Pesquisadora do CNPq. Advogada constitucionalista. Diretora Geral da ESA-TO (Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Tocantins). Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB TO. Integrante Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Professora Titular do PPGD da UNOESC.


Letícia Bittencourt. Letícia Bittencourt preside a Comissão de Proteção e Defesa da Mulher, da OAB TO. Advogada. Coach pela SBC. Professora da Faculdade Católica Dom Orione, de Araguaína (FACDO). Especialista em Direito Civil e Processo Civil, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Gestão de Pessoas e Inovação Tecnológica. Convidada desta Coluna, para este artigo em coautoria..


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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