Dignidade na luta contra o câncer: os caminhos da imunoterapia e da autonomia

17/04/2016

Por Pedro Mollica da Costa Ribeiro - 17/04/2016

A Agência de fiscalização sanitária (ANVISA) acaba de aprovar, no dia 05 de abril, o registro do primeiro imunoterápico contra o câncer de pulmão no país. Trata-se do Opdivo® (nivolumabe), produto biológico inovador, indicado para o combate ao melanoma em estágio avançado e ao câncer de pulmão[1].

Tratamentos inovadores, anunciados recentemente no campo da imuno-oncologia, acendem as esperanças de indivíduos que, de acordo com os recursos terapêuticos convencionais, apresentam quadro de saúde considerado irreversível.

No último encontro anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência, encerrado em 15 de fevereiro deste ano em Washington, foram divulgadas duas novas técnicas preliminares, orientadas para o estímulo do próprio sistema imunológico de pacientes com leucemia já disseminada no organismo[2].

As novas propostas terapêuticas utilizam as chamadas células-t, reimplantadas no sistema imunológico do indivíduo, após serem geneticamente modificadas em laboratórios.

Ensaio teste aplicado pelo Fred Hutchinson Cancer Research Center, nos Estados Unidos, alcançou a remissão completa para 90% pacientes, antes em quadro de leucemia considerado terminal[3]. Por sua vez, um estudo experimental aplicado pelo Instituto Científico São Rafael, em Milão, na Itália, revelou que as mesmas células-t podem ainda atuar como memória imunológica para combate ao tecido infectado. A partir de manipulação genética, as células reinseridas preservaram as mesmas características por muitos anos no organismo humano[4].

Como ressalva o Instituto Nacional do Câncer (INCA), a imunoterapia, que promove a estimulação do sistema imunológico, por meio do uso de substâncias modificadoras da resposta biológica, ainda é um método experimental, devendo-se aguardar resultados mais conclusivos sobre sua eficácia e aplicabilidade clínica[5]. Apesar da cautela, este campo terapêutico foi considerado o avanço do ano já em 2013, pela revista Science Transnacional Medicine, desde os primeiros estudos iniciados a respeito há mais de 40 anos[6].

A notícia dessas descobertas reveladoras, pela superveniência de método de assistência precursor, parece, de fato, alentadora. Contudo, a realidade terapêutica é outra, apresentada pelas sucessivas sessões de radio ou quimioterapia. Além disso, a administração dos dois tipos de terapias de forma combinada é frequente. Até o fim, reiteradas etapas de exposição podem estender uma condição de saúde já debilitada.

Quando o diagnóstico for conclusivo, com a superação dos recursos disponíveis, ainda existem aqueles chamados extraordinários. Muitas vezes, recorre-se ao frio suporte vital por aparelhos, instrumentos específicos em unidades de terapia intensiva. A sobrevida do enfermo pode ser prolongada, sem que esses expedientes apresentem qualquer perspectiva de recuperação.

Em horas como essas, há consenso de que a medicina contemporânea precisa voltar-se não apenas para o tratamento da doença. Não se pode perder de vista o enfoque dedicado a cada doente e não apenas à patologia diagnosticada.

A chamada Ortotanásia surge nesses momentos pela suspensão destes procedimentos extraordinários, mantendo-se apenas os secundários, como a alimentação e os cuidados paliativos – contra a dor, por exemplo.

CONSENTIMENTO INFORMADO E O REGIME DE SUSPENSÃO DE PROCEDIMENTOS

O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 1805/06, regulamentando a ortotanásia, com a seguinte disposição: “Na fase terminal de doenças graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva duma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou do seu representante legal”.

Ressalva-se, aqui, que esta vontade do indivíduo pelo regime de suspensão ou limitação de tratamentos, como descreve a resolução, não pressupõe uma deliberação sem critérios. É essencial que a escolha seja esclarecida antes de sua emissão, por meio do chamado termo de consentimento detalhadamente informado pelo médico. Tal decisão também deverá ser justificada e registrada no prontuário médico. Por isso, este ato normativo do Conselho de Medicina, também salienta que “o médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação”, além de assegurar “ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica”.

Convém esclarecer que a validade desta Resolução do CFM veio a ser confirmada judicialmente[7]. No curso da debatida ação civil pública que questionava a legalidade da resolução pelo MPF, outro parecer do Parquet foi emitido, em favor da validade dos procedimentos previstos naquele ato normativo. Em seguida, a decisão que revogou a antecipação de tutela inicialmente, pelo juízo da 14ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, aderiu textualmente àquela nova promoção ministerial. Com a subsequente desistência do MPF nesta ação, os caminhos para o regime da ortotanásia no Brasil foram abertos[8].

A IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA NA APLICAÇÃO DA MEDICINA PALIATIVA

A maior contribuição no debate da causa já descrita, porém, parece ser a atenção dedicada à inserção dos princípios da Medicina Paliativa no regime da ortotanásia. Os cuidados paliativos seguem esta especialidade médica, destacada pela Organização Mundial da Saúde, como necessidade humanitária no tratamento do câncer[9]. A fundamentação decisória registrava o seguinte:

“Diagnosticada a terminalidade da vida, qualquer terapia extra se afigurará ineficaz. Assim, já não se pode aceitar que o médico deva fazer tudo para salvar a vida do paciente (beneficência), se esta vida não pode ser salva. Desse modo, sendo o quadro irreversível, é melhor - caso assim o paciente e sua família o desejem - não lançar mão de cuidados terapêuticos excessivos (pois ineficazes), que apenas terão o condão de causar agressão ao paciente. Daí é que se pode concluir que, nessa fase, o princípio da não-maleficência assume uma posição privilegiada em relação ao princípio da beneficência - visto que nenhuma medida terapêutica poderá realmente fazer bem ao paciente”[10]

Como se observa, o regime de suspensão de certos tratamentos, que apenas prolongam a fase final de doenças incuráveis, está em sintonia com os princípios bioéticos da beneficência[11], não maleficência[12] e autonomia do individuo[13]. Esses preceitos são indissociáveis da dignidade da pessoa humana. A diferença decisiva parece residir no papel desempenhado pela escolha de cada um.

José de Oliveira Ascensão traça um panorama detalhado sobre os limites da escolha na terminalidade da vida. O autor português aborda a distinção entre a emissão de vontade, quando proveniente de um doente comum e aquela emitida por um internado em estado terminal, nos seguintes termos: Pode fazer-se uma aproximação com o que se passa quando a pessoa se encontra em situação normal, ou seja, não terminal. Pode recusar um tratamento, uma intervenção cirúrgica, por exemplo. Mas não há que levar muito longe esta analogia, porque aqui a situação é muito mais grave. No estado terminal a recusa de tratamentos não altera o desfecho, enquanto que a mesma recusa por não terminais pode pôr efetivamente a vida em jogo.[14]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os recursos extraordinários disponíveis nas UTIS hospitalares são capazes de estender artificialmente a sobrevida das pessoas. Nesses casos, prolonga-se uma condição quase desumanizada. Assim, o propósito inaugural de fazer o bem, pelo esforço terapêutico excessivo, leva a uma contraditória nocividade. Para a resolução a dessa contradição, a bioética lança suas luzes através da não maleficência.

Quando o desenlace da existência bate à porta, a indicação pela ortotanásia precisa ser compreendida, resguardada a autonomia do indivíduo em situação de sofrimento extremo.

O alvorecer dos novos caminhos da imunoterapia, contudo, desponta a possível superação desse paradigma: uma virada no estado da arte da assistência médica, que inclua a resposta imunológica personalizada, orientada para a realização de tratamentos contra o câncer ancorados na dignidade.


Notas e Referências:

[1]Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/wps/content/anvisa+portal/anvisa/sala+de+imprensa/menu-+noticias+anos/201616/produto+biologico+novo+para+tratamento+de+cancer+e+aprovado+pela+anvisa>. Acesso em 11 de abril de 2016.

[2] USA. AAAS 2016 Annual Meeting. Disponível em: <https://aaas.confex.com/aaas/2016/webprogram/Paper16827.html> Acesso em: 13 de mar.2016.

[3] Disponível em: <https://www.fredhutch.org/en/news/center-news/2015/12/immunotherapy-trial-participants-remission-preliminary-results.html>  Acesso em: 13 de mar. 2016.

[4] Disponível em: <http://www.ansa.it/english/news/science_tecnology/2016/02/16/new-cancer-therapy-gains-wide-attention_d5be2756-8b07-473e-8f3a-996ebf8985f2.html>

[5] Disponível em: < http://www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=104>. Acesso em 10 de abr. 2016.

[6] Disponível em: http://www.jb.com.br/ciencia-e-tecnologia/noticias/2013/12/20/science-imunoterapia-uma-nova-arma-no-combate-ao-cancer/. Acesso em 11 de abr.2016.

[7] Disponível em:< http://arpen-sp.jusbrasil.com.br/noticias/2495312/juiz-valida-resolucao-que-permite-ortotanasia>. Acesso em 10 abr. 2016.

[8] Ministério Público Desiste da Ação e Abre Caminho para a Ortotanásia no País. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,ministerio-publico-desiste-de-acao-e-abre-caminho-para-ortotanasia-no-pais-imp-,602333>. Acesso em 10 de abr.2016.

[9] Disponível em: < http://www.who.int/cancer/palliative/definition/en/>. Acesso em 12 de abr.2016.

[10] Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 14ª Vara federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, Ação Civil Pública, Processo nº 2007.34.00.014809-3, Autor: Ministério Público Federal, Réu: Conselho Federal de Medicina, Sentença publicada em 06 de dezembro de 2010.

[11] A fundamentação conceitual do dever de beneficência foi desenvolvida por David Hume, tal como pode se consultada em:  http://www.humesociety.org/hs/issues/v14n1/vanterpool/vanterpool-v14n1.pdf

[12] As raízes da não-maleficência remontam à Hipócrates, quando o filósofo helênico aconselhava, no parágrafo 12, primeiro livro de A Epidemia, Tenha, em relação às doenças, duas coisas em vista: seja útil ou, ao menos, não prejudique. Este princípio, também conhecido como pelo brocardo latino Primum non nocere foi incorporado pela deontologia médica, tal como consagrado pela escola de bioética por nas obras de Beauchamp e Childress. Para informações completas a respeito conferir em: BEAUCHAMP TL, CHILDRESS JF. Principles of Biomedical Ethics. 4ªed. New York: Oxford, 1994, p.260. ROSS, David. The right and the good. Oxford: Oxford University Press, 1939, p.21.

[13] A noção de autonomia da vontade foi extensamente tratada por Immanuel Kant, em sua obra Metafísica dos Costumes, como pode ser consultada em: KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. São Paulo, Edipro: 2003.

[14] ASCENSÃO, José Oliveira de.  A Teminalidade da Vida in: ASCENSÃO, José Oliveira de. (Coord.). Estudos de Direito da Bioética , Vol. IV, Lisboa: Almedina, 2010, p.423/445.


Pedro Mollica da Costa Ribeiro. Pedro Mollica da Costa Ribeiro é Professor da Faculdade Nacional do Rio de Janeiro da UFRJ, integrante do Grupo de Pesquisa Institucional da FND/UFRJ, intitulado Preservando a Dignidade no Fim da Vida. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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