Dignidade da mulher condicionada

05/08/2016

Por Grazielly Alessandra Baggenstoss – 05/08/2016

Em decisão proferida no ano de 2014, a 16ª câmara Cível do TJ/MG reduziu de R$ 100 mil para R$ 5 mil a indenização por danos morais devida a um homem à sua ex-namorada, por ter realizado a gravação e a divulgação de momentos íntimos do casal pela webcam.

Tal situação fática enquadra-se no fenômeno pornografia de vingança (revenge porn), tema que foi tratado na obra intitulada “Pornografia de Vingança: contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro”, da autora Vitória de Macedo Buzzi, publicado pela Editora Empório do Direito. Na obra, busca-se a reflexão sobre as estruturas que legitimam a apropriação e a divulgação de material íntimo como forma de vingança, sobre as razões pelas quais a sexualidade, o desejo feminino e a exposição do corpo feminino são tomados como motivo de vergonha e degradação moral[1].

Nesse texto, a abordagem que será realizada refere-se à fundamentação jurídica utilizada pelo desembargador revisor do caso mencionado e o discurso moral contido no voto divergente.

Nos relato dos autos, a autora narrou que imagens de cunho erótico foram transmitidas para seu namorado, o qual as capturou e as retransmitiu a terceiros. Verificado o dano moral, o juízo de 1º grau condenou-o ao pagamento correspondente no montante de R$ 100 mil. Em grau recursal, o TJMG tenha mantido a condenação, reduzindo a condenação para R$ 5 mil. No voto vencedor, objeto de exame neste texto, apresentado pelo desembargador Francisco Batista de Abreu, foi defendido que a autora teve culpa pelo ocorrido – apesar de o relator defendido a condenação com uma moderada redução (para R$ 75 mil), ao argumento de que “pretender-se isentar o réu de responsabilidade pelo ato da autora significaria, neste contexto, punir a vítima.”

Antes de se expor os argumentos do magistrado que estruturou tal voto divergente, é necessário explanar sobre a função jurisdicional decisória.

A Constituição Federal, em seu art. 93, inciso IX, determina que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade [...]”. De tal dispositivo constitucional, tem-se que as decisões judiciais devem ser fundamentadas, ou seja, é imprescindível que o magistrado apresente as razões jurídicas pelas quais decidiu de determinada forma, sob pena de o ato decisório ser considerado nulo. Em definição:

Fundamentar significa o magistrado dar as razões, de fato e de direito, que o convenceram a decidir a questão daquela maneira. A fundamentação tem implicação substancial e não meramente formal, donde é lícito concluir que o juiz deve analisar as questões postas a seu julgamento, exteriorizando a base fundamental de sua decisão. Não se consideram “substancialmente” fundamentadas as decisões que afirmam “segundo os documentos e testemunhas ouvidas no processo, o autor tem razão, motivo por que julgou procedente o pedido”. Essa decisão é nula porque lhe faltou fundamentação[2].

Tem-se que o ordenamento jurídico pátrio adotou o Sistema de Persuasão Racional, de modo que o convencimento do juízo, apesar de livre, não é ilimitado e deve ser respaldado nas provas do processo (art. 371, CPC[3]), bem como em todas as demais dispositivos legais que tangenciem o ato decisório, em uma percepção sistemática do nosso Direito.

Nesse sentido, importante pontuar que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei º 4.657/42) também dá parâmetros para a fundamentação da decisão judicial, ao indicar que, inicialmente, o magistrado decidirá pela lei; caso esta seja omissa, sua decisão basear-se-á em analogia, costumes e princípios gerais do Direito[4].

O exercício da função jurisdicional deve-se pautar pelo equilíbrio entre a observância das balizas orientativas ao ato decisório - e das demais normas jurídicas atinentes ao caso - e a supressão das convicções íntimas do magistrado.

Ora, conforme deve ser reconhecido e de acordo com os dizeres de Luigi Ferrajoli, o magistrado não é uma máquina que não apresente o mínimo de subjetividade no exercício decisório, em que haverá um espaço de liberdade (tido como discricionariedade) para formar a norma jurídica em concreto, direcionada ao caso sub judice. Contudo, não são suas convicções pessoais que devem fundamentar uma decisão judicial, mas sim as normas do ordenamento jurídico.

Na busca por tal equilíbrio, deve ser abandonada a concepção independente dos funcionalismos do sistema jurídico para que se possa adotar uma perspectiva de vinculação com o sentido daquele que opera o Direito – no caso, o magistrado. A sua atuação, como ocupante de cargo de caráter instrumental no dinamismo do sistema jurídico (pois não é um fim em si mesmo), deve ter em conta, além dos parâmetros mencionados acima, também a sua função de manter a estrutura do Direito. Esta, faticamente, (a) é resultado de processos históricos e da evolução do pensamento político-jurídico e (b) representa o produto da comunicação de diversos juízos axiológicos do grupo social correspondente, os quais atravessam o processo legislativo e tornam-se normas jurídicas.

Ora, diante da impossível imparcialidade da pessoa humana e da possibilidade de prática de arbitrariedade no exercício da função jurisdicional, vertem brechas em que podem surgir pragmatismos pessoalizados. Caso as decisões dos magistrados não se revestirem da necessária instrumentalidade que os legitima no poder, as suas escolhas conterão alvedrio pessoal e tornar-se-ão uma arbitrariedade albergada pelo manto da discricionariedade[5].

Pois bem. Parte-se ao exame do voto mencionado.

O desembargador Francisco Batista de Abreu afirmou que “a vítima dessa divulgação foi a autora embora tenha concorrido de forma bem acentuada e preponderante. Ligou sua webcam, direcionou-a para suas partes íntimas. Fez poses. Dialogou com o réu por algum tempo. Tinha consciência do que fazia e do risco que corria”.

Ainda, ao declarar que “a moral é postura absoluta” e que “quem tem moral a tem por inteiro”, magistrado continua:

"As fotos em posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher não são sensuais. Fotos sensuais são exibíveis, não agridem e não assustam. Fotos sensuais são aquelas que provocam a imaginação de como são as formas femininas. Em avaliação menos amarga, mais branda podem ser eróticas. São poses que não se tiram fotos. São poses voláteis para consideradas imediata evaporação. São poses para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro. Não para um ex-namorado por um curto período de um ano. Não para ex-namorado de um namoro de ano. Não foram fotos tiradas em momento íntimo de um casal ainda que namorados. E não vale afirmar quebra de confiança. O namoro foi curto e a distância. Passageiro. Nada sério."

Disse, por fim: “Quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida.”

Pelo exposto, o magistrado sustentou que a vítima para o fato causador do dano (exposição de imagens íntimas na internet) e, pelo fato de ter assumido o risco, a indenização deveria ser reduzida para R$ 5 mil (cinco mil reais).

Por essas transcrições, analisa-se a fundamentação do voto (a) pela tese jurídica (que seria) cabível ao caso e (b) pela argumentação tecida pelo desembargador. Além disso, verifica-se o discurso moral contido no mesmo.

De plano, traz-se a pertinência jurídica cabível ao caso, sediada na responsabilidade civil, que é a Teoria da Causalidade Adequada. Tal teoria, adotada pelo nosso ordenamento jurídico, estabelece que responsável pelo ilícito será aquela ação ou omissão que por si só ou preponderantemente causa o dano.

Ora, somente com tal diretriz seria possível solucionar o caso. Diante do questionamento sobre o que causou os danos à mulher, responde-se, nitidamente, que não foi a sua imagem em um ambiente privado (na webcam, em uma conversa virtual entre duas pessoas). A ação que causou os danos morais à mulher foi a exposição de sua imagem para toda a rede virtual, a qual foi praticada pelo seu ex-namorado. Diante disso, o fato desencadeador do dano experimentado pela mulher não foi a sua conduta, mas a do seu ex.

No entanto, o voto divergente não apresenta tal roupagem jurídica em seus argumentos, mas se utiliza de outra forma discursiva. Assim, observa-se a argumentação tecida pelo desembargador:

Há a eleição de um protagonista exclusivo do contexto fático: a mulher, aquela que se expõe. E essa exposição é feita em poses que não deveriam ser exibíveis. Para a construção desse argumento, tem-se a gradação das poses das mulheres, como segue:

I) as mais brandas são as poses sensuais, que provocam a imaginação de como são as formas femininas e podem (ou devem, né) ser fotografadas; II) as poses eróticas referem-se às que não se tiram fotos, pois são voláteis para consideradas imediata evaporação. Por isso, são destinadas para um quarto fechado, no escuro, ainda que para um namorado, mas verdadeiro (namorado verdadeiro? Oi?).

III) as mais “acentuadas” são as poses classificadas como posições ginecológicas que exibem a mais absoluta intimidade da mulher e que agridem e assustam - por isso, não devem ser consideradas exibíveis em fotos. E são essas as que são a base do pedido exordial.

Finalmente, há o questionamento sobre a moral da mulher, pois “quem ousa posar daquela forma e naquelas circunstâncias tem um conceito moral diferenciado, liberal. Dela não cuida”.

A mulher, aquela se expõe, segundo a argumentação do magistrado, não cuidou de sua “moral”, pois ofertou imagens suas, em poses ginecológicas, a um namorado não-verdadeiro.

Pois bem. Veja-se que não se encontra categoria jurídica em tal fundamentação, nem argumento que possa ser considerado objetivo: a construção judicial não é baseada em lei alguma, ou traz analogia, princípios, costumes, ou qualquer outro parâmetro de fundamentação judicial.

À classificação das poses femininas nem ao menos é indicada alguma referência de autoridade mais robusta, como algum marco teórico da sociologia, da ética, da filosofia, das artes, ou de qualquer outra área que possa ser a tecnicidade suficiente para tais delimitações. Além disso, por mais que o Direito apresente estruturações morais, a própria moral, mencionada pelo desembargador, não diz respeito à Moral estudada juridicamente, mas sim à própria moral da pessoa que escreveu o voto, o que indica que tal argumento, bem como o mencionado anteriormente, é de cunho estritamente íntimo – e, logo, desprovido da juridicidade necessária à fundamentação da decisão judicial.

Em última consideração, há o discurso moral contido no acórdão. De acordo o mencionado acima, a sexualidade, o desejo feminino e a exposição do corpo feminino ainda são vistos como reflexo de degradação moral. Mas não é toda a sexualidade.

Segundo Michelle Perrot, há uma sexualidade consentida (ou mesmo exigida): é a sexualidade conjugal[6], ou um pouco menos formalizada, mas desde que seja em um “namoro verdadeiro” – aquele que, segundo o desembargador, possa conduzir a relação a um casamento, e aquele que (este, sim!) seja digno de se requerer confiança do parceiro.

Nessa mentalidade, o comportamento da mulher é observado a partir de qual função possui ao parceiro e na condição de corpo-meio para outros fins. Se está em uma relação “digna” e “duradoura” com o homem, a mulher pode enviar imagens suas como bem entender porque será uma relação “confiável” – somente nesse caso não seria culpabilizada pela ação de exposição à rede feita pelo homem. Se não é nesse cenário, ela, a vítima, tem culpa.

É o reflexo, conforme já mencionado nesta coluna, do “pensamento de sexo para a mulher considerada honrada está ligada à dessexualização do corpo: sob tal ideologia, a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais. Além disso, deveria manter a castidade, mesmo no casamento, de modo que deveria se relacionar sexualmente apenas para a procriação”[7].

Note: pelo discurso extraído, condicionam-se os direitos fundamentais da mulher. Seus direitos à imagem e à privacidade (os quais o magistrado chama de “moral”) são modulados ao alvedrio das definições do julgador, e não por razões judiciais calcadas no ordenamento jurídico.

Tal decisão judicial diante do dinamismo do sistema jurídico, evidencia-se a inserção de elementos morais (altamente subjetivos e estritos do magistrado mencionado e do julgador que o acompanhou no voto) no Direito, independemente do devido processo legislativo, o qual cumpre a função de formatar os juízos axiológicos em termos com juridicidade. O risco, além do enfraquecimento do próprio Direito (pois relegado a segundo plano), é da colonização das funcionalizações do sistema pelas preferências pessoais dos magistrados. Como a função jurisdicional é de legitimada pelo próprio sistema, o risco se agrava: que a jurisdição torne-se um fim em si mesma.

No entanto, aos direitos fundamentais das mulheres, nos termos mencionados, o risco já não existe, pois a reprodução de moralismos pessoais é evidente, assim como o desrespeito à própria dignidade da pessoa mulher. Assim, como “corpo desejado, o corpo das mulheres é também, no curso da história, um corpo dominado, subjugado, muitas vezes roubado, em sua própria sexualidade”[8]. Em seus direitos, consequentemente, não é diferente.


Notas e Referências:

[1] Cf < http://emporiododireito.com.br/pornografia-de-vinganca/>

[2] NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 175-176.

[3] Art. 371.  O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.

[4] Art. 4º.  Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

[5] BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra. Teoria dos sistemas humanizada: a modelagem garantista das funções jurisdicional e legislativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, p. 189.

[6] PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo, Contexto: 2013, p. 66.

[7] PERROT, 2013, p. 75. Cf. <http://emporiododireito.com.br/entre-lilith-e-eva/>

[8] PERROT, 2013, p. 76.


Grazielly Alessandra Baggenstoss

Grazielly Alessandra Baggenstoss é Doutora e Mestra em Direito pela UFSC, Professora do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão dos Sistemas Sociais: Direito, Estado Sociedade e Política, Coordenadora e pesquisadora do Projeto de Pesquisa e de Extensão “Direito das Mulheres” da UFSC, Coordenadora do Projeto de Extensão Sociedade de Debates da UFSC.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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