DIFERENÇAS ENTRE A PARALISAÇÃO DOS MOTORISTAS DE CARGA E A GREVE E O LOCKOUT: UMA ANÁLISE JURÍDICA

12/06/2018

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador: Ricardo Calcini

No final de maio de 2018, a sociedade brasileira foi tomada de surpresa por uma paralisação no âmbito nacional de transportadores de cargas, autônomos e com vínculo empregatício, que desabasteceu de insumos todas as regiões do Brasil, com impacto social e econômico enorme, com grandes prejuízos a diversos setores da economia, no que pode ser apontada como uma nova crise dentro das muitas crises por que passamos nos últimos anos, mais notadamente, desde o irrompimento de uma série de ações legais dos órgãos policiais e do Ministério Público contra um estado de corrupção endêmico e institucional brasileiro.

Noticiou-se na imprensa, de modo mais que resumido, que pretendiam aqueles transportadores de cargas, autônomos e com vínculo empregatício, avalizados por empresas de transporte de carga e pela Confederação Nacional dos Transportadores Autônomos (CNTA), o congelamento, posteriormente a redução, do valor do óleo diesel nas bombas de combustível, a mudança na política de preços da Petrobras baseada na paridade com as cotações internacionais; em momento um pouco posterior, a destituição de seu Presidente, como de fato aconteceu; e a derrubada de tributos sobre os combustíveis, como o PIS/Confins e a CIDE-combustíveis (contribuição de intervenção no domínio econômico).[1]

Mencionado o quadro sócio-político-econômico que envolveu a paralisação dos motoristas de veículos de carga, esclareça-se, conforme consta no título deste artigo, que ele não possui a intenção de estabelecer uma análise extrajurídica do fato que foi denominado, erroneamente, de “greve dos caminhoneiros”. O autor sequer possui conhecimento técnico suficiente para estabelecer premissas analíticas de áreas bem diferentes do Direito, como a política, a ciência política e a economia.

O cerne da breve abordagem constante neste artigo é esclarecer que o que aconteceu no fato discorrido acima não foi um exercício do direito de greve, nem mesmo um locaute (lockout), conforme propagado na imprensa[2], pelo menos para os fins do Direito do Trabalho.

O art. 9º da Constituição assegura como direito sociofundamental de todo trabalhador o exercício de greve, sendo essa a paralisação da prestação do labor contratualizado, cuja decisão da melhor oportunidade compete unicamente aos trabalhadores, bem como a definição de suas pretensões de interesse; nesse ponto, aloca-se a primeira identidade a diferenciar a paralisação inespecífica do trabalho em geral de uma legítima greve.

Conquanto não haja uma definição constitucional do direito de greve, coube à Lei 7.783/89 regulamentá-la, em seu art. 2º, prevendo que, para os fins da Lei, considera-se legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador.

Conforme arguta observação de Manoel Jorge e Silva Neto[3] “[n]ão se poderá entender que a outorga de prerrogativa aos trabalhadores para que decidam sobre os interesses que devam ser defendidos por meio de greve tenha instalado direito de cariz absoluto”.

Amauri Mascaro Nascimento[4] complementa esse inicial alerta: “(...) o que a Constituição protege é a greve. Não dá respaldo a outros atos coletivos de protesto, não enquadráveis no conceito de greve. Estes, não tendo o respaldo constitucional, afiguram-se como atos ilícitos”[5].

Portanto, como bem denota a doutrina brasileira[6] e comparada[7], a greve é uma interrupção coletiva e voluntária, concertada do trabalho, ligada a uma reivindicação de cunho profissional para harmonização dos interesses conflitivos entre o trabalho e o capital.

Aponte-se que a greve não surge do nada! O art. 4º da Lei 7.783/89 prevê que

Caberá à entidade sindical correspondente convocar, na forma do seu estatuto, assembleia geral que definirá as reivindicações da categoria e deliberará sobre a paralisação coletiva da prestação de serviços. (grifos nossos)

Isso quer dizer que o sindicato representativo de classe declarará a greve, mas não a realizará.

O que houve àquela ocasião, a tal “greve dos caminhoneiros”, se constituiu, na visão desse autor, como protesto de cunho político geral, e não em busca de melhores condições sociolaborais. Não houve tensão entre empregadores e empregados, mas sim entre esses dois pólos e o Estado. Já está, portanto, esquadrinhada a diferença daquela (a paralisação como instrumento de manifestação política) para a efetiva suspensão temporária da atividade laborativa que se constitui em greve.

Caso se queira definir a paralisação ocorrida como greve, e está-se a tratar de uma análise jurídica, e não de uma análise prático-vulgar, então pode-se, no esteio da lição do mencionado Amauri Mascaro[8], afirmar ter havido, no mínimo, uma denominada “greve de zelo”, com a finalidade de provocar atrasos de produção econômica, que a aproxima de uma boicotagem. Greve de zelo é ilegal e abusiva.

Adicione-se que se a greve não tem pressuposta intenção temporária, caso fossem ultrapassados 30 dias de paralisação da atividade, haveria a configuração de abandono de emprego a suscitar a rescisão por justa causa dos empregados com vínculo laborativo. Quanto aos trabalhadores autônomos, em uma hipótese como a abordada, é certo carecer uma solução normativa efetiva.

Outro ponto, é que a greve deve ser pacífica, sob pena de igual rescisão de contratos de trabalho por justa causa. As notícias demonstraram o uso de recursos coativos e/ou violentos para a parada forçosa de motoristas que não aderiram à paralisação (ou que passaram a não mais desejar a paralisação), bem como dos veículos de transporte, nas estradas[9]. Ou seja, sob essa ótica, mais do que a acima mencionada e suposta “greve de zelo”, ter-se-ia ora sabotagem, ora piquetes.

Invertida a ótica de análise, não houve, por igual, o lockout.

O ordenamento brasileiro veda o locaute[10] (informalmente denominada “greve do empregador”) no art. 17 da Lei 7.783/89, uma vez que afronta dois fundamentos republicanos: o valor social do trabalho e o da livre iniciativa, conforme precisa observação de João Amarante[11]. Essa figura significa a paralisação das atividades econômicas por iniciativa do empregador com a finalidade específica de frustrar as negociações decorrentes da greve ou dificultar o atendimento das reivindicações dos respectivos empregados.

Em assim sendo, afirme-se que se não houve deliberação sindical a respeito da greve, ou se não houve publicização de reivindicações laborais de determinada categoria, seja no âmbito nacional, seja nos âmbitos regionais, então não há o denominado lockout.

Embora seja muito recente pretender-se analisar a paralisação nacional dos motoristas de carga por quase duas semanas, as intenções recônditas e/ou aparentes por trás do movimento, que podem estar inclusive vinculadas à não solução, até a data de elaboração desse artigo, da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 48 proposta pela Confederação Nacional do Transporte em face da Lei 11.442/2007[12] (tema de um futuro artigo), e as reais consequências advindas do movimento, ainda não totalmente curadas ou sequer pacificadas, o ligeiro artigo tem como finalidade e conclusão final estabelecer as premissas em torno do legítimo exercício do direito de greve e do proibido exercício do lockout em cotejo às paralisações havidas, que corporificam, do ponto de vista estritamente jurídico, um direito constitucional de manifestação do pensamento e de liberdade de expressão, ressalvadas distorções no uso desse direito fundamental.

Aponte-se, por fim, as provocações indagativas de Henry David Thoreau[13] escritas no século XIX, in verbis

Leis injustas existem: devemos nos contentar em obedecê-las? Ou nos empenhar em aperfeiçoá-las, obedecendo-as até obtermos êxito? Ou devemos transgredi-las imediatamente? Em geral, sob um governo como o nosso, os homens julgam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar as leis. Pensam que, se resistissem, o remédio seria pior que os males. (...) Por que ele [o governo] não se mostra mais inclinado a se antecipar e a providenciar as reformas? Por que não valoriza suas minorias sensatas? Por que ele chora e resiste antes mesmo de ser ferido? Por que não encoraja seus cidadãos a estar alertas para apontar suas falhas, e assim melhorar sua atuação para com eles? Por que ele sempre crucifica Cristo, excomunga Copérnico e Lutero e declara Washington e Franklin rebeldes?

Notas e Referências

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. www.stf.jus.br. Acesso em 05. jun. 2018.

AMARANTE, João Armando Moretto. Lei de Greve Comentada. 1.ed. São Paulo: Almedina, 2015.

CAMERLYNCK, Guillaume Hubert; LYON CAEN, Gérard. Derecho del Trabajo. Trad. Juan M. Ramírez Martinez. 5.ed. Madrid: Aguilar Ediciones, 1974.

CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho: de acordo com a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). 14.ed. rev., atual. e ampl. 3.reimp. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.

GASPARI, Elio. Chegou a hora de cobrar a conta do locaute. O GLOBO, Rio de Janeiro, p. 5, 3 jun. 2018.

MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2013.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro (in memoriam); NASCIMENTO, Sônia Mascaro; NASCIMENTO, Marcelo Mascaro. Compêndio de Direito Sindical. 8.ed. São Paulo: LTr, 2015.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. rev. e atual. nos termos da Reforma Constitucional (até a EC 45/04). São Paulo: Malheiros, 2005.

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Atual. até a EC 56, de 20 de dezembro de 2007. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012.

Notícias de jornal impresso e eletrônico

A origem e os efeitos da crise que parou o país. O GLOBO, Rio de Janeiro, pp. 28-29, 30 mai. 2018.

Caminhoneiros denunciam agressões: entidades que representam a categoria dizem que infiltrados impedem grevistas de voltar ao trabalho. Fonte: https://oglobo.globo.com/economia/caminhoneiros-denunciam-agressoes-22730878. Acesso em 06 jun. 2018.

Saída Estratégica: Parente deixa presidência da Petrobras, mas Temer diz que política de preços não muda. O GLOBO, Rio de Janeiro, p. 19, 2 jun. 2018.

Marcelo Ferreira Machado é Advogado. Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela LFG/Anhanguera/UNIDERP. Pós-Graduado em Direito do Estado e Administrativo pela Universidade Estácio de Sá. Professor de Direito, Processo e Prática do Trabalho da graduação da Universidade Estácio de Sá (RJ). Professor convidado da UCAM/RJ nas disciplinas de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e Administrativo. Professor convidado do IDS – Instituto Latinoamericano de Direito Social. Palestrante convidado em cursos de graduação e pós-graduação. Sócio fundador do escritório Ferreira e Machado Advogados Associados (RJ).

[1] Sobre o assunto: A origem e os efeitos da crise que parou o país. O GLOBO, Rio de Janeiro, pp. 28-29, 30 mai. 2018; Saída Estratégica: Parente deixa presidência da Petrobras, mas Temer diz que política de preços não muda. O GLOBO, Rio de Janeiro, p. 19, 2 jun. 2018.

[2] Como exemplo, GASPARI, Elio. Chegou a hora de cobrar a conta do locaute. O GLOBO, Rio de Janeiro, p. 5, 3 jun. 2018.

[3] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de Direito Constitucional. Atual. até a EC 56, de 20 de dezembro de 2007. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.734.

[4] NASCIMENTO, Amauri Mascaro (in memoriam); NASCIMENTO, Sônia Mascaro; NASCIMENTO, Marcelo Mascaro. Compêndio de Direito Sindical. 8.ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 545.

[5] Não concordamos com a solução final apontada pelo autor que, aparentemente, induz uma contextualização sempre ilícita, quando haja paralisações de labor. A ilicitude atribuída pode ser aquela de cunho estritamente de Direito Laboral. Se assim o for, correto está o jurista. O art. 15 da Lei 7.783/89 clarifica que os campos de responsabilidade dos atos praticados durante a greve serão apurados não só mediante a legislação trabalhista, como também a civil e a penal. Contudo, é prudente ponderar o argumento de que é de natureza jusfundamental a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento. A análise do caso concreto pode restringir a consequência normativa, como no exemplo do abuso do direito de greve e a rescisão do contrato de trabalho (justa causa); não seria surpreendente que, em um caso concreto específico, de que seria exemplo um rompimento institucional e político profundo no país a afetar todas as instâncias sociais, inclusive as laborais, o direito potestativo do empregador restasse limitado mediante uma negociação coletiva, ou mesmo uma decisão judicial, para somente poder aplicar uma determinada punição (ou até nenhuma) que não aquela mais trágica, a justa causa do empregado. O corpo do presente artigo evoca o aspecto de que manifestações políticas gerais não são, de fato, acobertadas pelo direito sociofundamental da greve.

[6] CASSAR, Vólia Bomfim. Direito do Trabalho: de acordo com a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017). 14.ed. rev., atual. e ampl. 3.reimp. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 1295; SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. rev. e atual. nos termos da Reforma Constitucional (até a EC 45/04). São Paulo: Malheiros, 2005. p. 304.

[7] CAMERLYNCK, Guillaume Hubert; LYON CAEN, Gérard. Derecho del Trabajo. Trad. Juan M. Ramírez Martinez. 5.ed. Madrid: Aguilar Ediciones, 1974. p. 472; MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2013. pp. 1110-1118.

[8] NASCIMENTO, Amauri Mascaro (in memoriam); NASCIMENTO, Sônia Mascaro; NASCIMENTO, Marcelo Mascaro. Compêndio de Direito Sindical. 8.ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 553.

[9] Como exemplo, Caminhoneiros denunciam agressões: entidades que representam a categoria dizem que infiltrados impedem grevistas de voltar ao trabalho. Fonte: https://oglobo.globo.com/economia/caminhoneiros-denunciam-agressoes-22730878. Acesso em 06 jun. 2018.

[10] Trata-se de um neologismo, pois a própria lei brasileira utiliza do termo anglicano “lockout”.

[11] AMARANTE, João Armando Moretto. Lei de Greve Comentada. 1.ed. São Paulo: Almedina, 2015. p. 162.

[12] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação pede que STF declare constitucional lei que regula transporte de cargas por terceiros. http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=356414. Acesso em 05 jun. 2018.

[13] THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2012. p. 17.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Atolado // Foto de: Lindomar Cruz  // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/lindomarcruz/3251638122

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura